O professor Eric Morier-Genoud se destaca por seus trabalhos em história da política, religião e resolução de conflitos de países do sul da África, com foco especial em Moçambique. Sua última obra, escrita em colaboração com o cientista político moçambicano Domingos M. do Rosário e com o historiador francês Michel Cahen, recentemente lançada, trata em detalhes da guerra civil que eclode nesse país em meados da década de 70 e dura até 1992.
Com interesse diversificado, o professor vem estudando temas como o nacionalismo, a religião e o processo de descolonização africanos, com especial interesse por países de língua portuguesa. Convidado para oferecer um curso ao Departamento de Antropologia da UFPR, conversamos com o professor sobre seus estudos e temas relacionados.
Poderia falar um pouco sobre Moçambique, país foco de algumas de suas pesquisas?
Moçambique é um país africano típico e atípico ao mesmo tempo. Típico porque faz parte deste continente rico, dinâmico e fascinante, com uma história complexa e um presente cheio de problemas e oportunidades. O país é atípico na medida que faz parte da África austral com um passado colonial português. Sofreu muitos anos de guerra, colonial e civil, e, paradoxalmente, tem hoje uma sociedade bastante aberta, em particular em relação a questões de raças e de religião. Em termos acadêmicos, é um país onde se faz pesquisa sem grande dificuldade e onde há um meio intelectual vibrante com debates vivos e construtivos.
“[A África é um] continente rico, dinâmico e fascinante, com uma história complexa e um presente cheio de problemas e oportunidades”
Algumas ex-colônias portuguesas tiveram processos complicados de libertação, seguindo conflitos internos, quais os motivos disso?
É verdade que a descolonização portuguesa não foi seguida por anos de paz nos dois maiores países saídos do Terceiro império português, isso é Angola e Moçambique. Ao mesmo tempo, não houve conflitos na Guiné-Bissau, em Cabo Verde e em São Tome e Príncipe após a independência. As causas das guerras civis que seguiram a independência em 1975 em Angola e Moçambique são complexas. Há a questão da problemática descolonização portuguesa. Houve também, no caso de Angola, as divisões profundas do nacionalismo angolano (MPLA, FNLA e UNITA) e, logo em 1975, a questão da guerra fria que se sobrepôs e inflamou o conflito local – intervieram desde 1975 tanto Cuba como a União Soviética, os Estados Unidos e a África do Sul. No que diz respeito a Moçambique, houve divisões dentro das tendências nacionalistas também, sobre as quais não se sobrepôs tanto a guerra fria, mas lutas regionais para as quais os regimes racistas da Rodésia e África do Sul decidiram fomentar uma guerra civil para enfraquecer, senão derrubar, um regime africano socialista vizinho, que era o regime moçambicano.
Como o professor caracterizaria a relação Europa-África na atualidade? Portugal mantém influência em suas ex-colônias?
A Europa continua envolvida com a África por interesses econômicos, políticos e culturais. Portugal, mais especificamente, faz grandes esforços para manter boas relações com as suas antigas colônias. Nos últimos anos, Angola e Moçambique tiveram um crescimento econômico muito forte, o que levou a uma nova migração de portugueses para a África assim como investimentos angolanos importantes em Portugal, numa reversão de dinâmicas econômicas, sociais e culturais, o que levou a muitos comentários e debates nos jornais e na sociedade portuguesa. Nestes últimos dez anos, a China veio também a ser um dos maiores investidores na África, acrescendo autonomia aos países africanos. Esta cruzada de dinâmicas está a transformar as relações entre Portugal, a Europa e África de maneira importante.
Havia muitas diferenças entre o modo de dominação colonial português e britânico?
De fato, existiu bastante diferenças entre o modo de dominação colonial britânico e português. Há diferenças de meios, de religião, e de duração, entre outras. A descolonização britânica aconteceu muito mais cedo; o governo britânico tinha mais meios para desenvolver as suas colônias, e a ideologia religiosa e política era bastante diferente, entre um liberalismo e o protestantismo britânico, por um lado, e uma ditadura e o catolicismo português, por outro. Ao mesmo tempo, estes colonialismos eram vizinhos e havia bastante influências, migrações e tráficos através das fronteiras. Os nacionalismos africanos moçambicanos e angolano desenvolveram-se em territórios britânicos e depois ex-britânicos. Hoje em dia, sente-se ainda estas diferenças históricas e culturais, mas ao mesmo tempo há semelhanças apesar das fronteiras. Por exemplo, sente-se uma homologia e colaboração política forte na África austral entre os regimes que travaram guerras de libertação (África do Sul, Namíbia, Angola, Moçambique, Zimbábue, e Tanzânia). Portanto a este nível (e outros níveis) as diferenças no modo de dominação colonial já não têm relevância.
“Nestes últimos dez anos, a China veio também a ser um dos maiores investidores na África, acrescendo autonomia aos países africanos”
Qual era a dinâmica africana antes do período colonial?
A historia da África antes do período colonial é relativamente pouco estudada nos países africanos de língua oficial portuguesa. Há estudos sobre escravatura, estudos sobre resistência ao colonialismo, e pouco mais. A dificuldade durante muito tempo foi que a história pré-colonial era também pré-nacional, por isso menos importante do que a história nacional emergente, na qual dificilmente se enquadrava. Hoje em dia, talvez haja mais apetite para este tipo de história, na medida que as histórias nacionais são agora bem desenvolvidas e dominantes e que a nova moda privilegia análises transfronteiriças, transnacionais, e globais. O meu próximo projeto é publicar o diário de um missionário suíço que passou três anos com o imperador Gungunhane até a conquista e prisão dele pelos portugueses (em 1895). Há muito interesse pela pessoa do Gungunhane hoje em dia, em particular na literatura. Mia Couto, o famoso escritor moçambicano, fez um romance de três volumes sobre Gungunhane e o autor moçambicano Ungulani Ba Ka Khosa acaba de publicar um segundo romance sobre o imperador. O império de Gaza era massivo e as suas últimas guerras chegaram a envolver até 40.000 soldados. Penso que este tipo de estudos sobre o período pré-colonial é muito necessário hoje, e creio que o número deste tipo de estudos vai aumentar nos próximos anos.
Há algum paralelo a se traçar entre o colonialismo português na África e no Brasil?
Há paralelos e diferenças importantes entre a África de língua portuguesa e o Brasil. As semelhanças têm a ver com o império português, a mútua experiência da colonização e a escravatura, entre outros elementos. As diferenças têm a ver com o período de colonização e descolonização (2º vs 3º império português), a natureza da descolonização (descolonização de colonos, no caso de Brasil), e a posição em relação a escravatura, africanos foram tirados da África e enviados violentamente para o Brasil. Nesta medida, a comparação entre o Brasil e a África é mais uma comparação de contrastes do que de similitudes. Uma comparação do que foi aqui mas não aconteceu lá, uma comparação do que que podia ter sido aqui e não lá, uma comparação do que é diferente entre um território e o outro, etc. Tal comparação abre horizontes e leva o investigador a fazer novas perguntas, pensar mais amplamente e mais comparativamente. É uma experiência muito enriquecedora e muito estimulante, do gênero que o pesquisador muitas vezes não faz, preferindo comparar coisas similares.
“O português é a quinta língua mais falada no mundo, portanto é potencialmente a base para uma comunidade de peso na cena mundial”
Qual a potencialidade e como o professor caracterizaria as relações entre Brasil e os países africanos de língua portuguesa?
As relações entre Brasil e as antigas colônias portuguesas tiveram altos e baixos. Nos últimos vinte anos, houve um crescimento significativo. Em 1996, o Brasil foi membro fundador da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP). Houve, consequentemente, maiores relações, sejam elas políticas, econômicas, culturais ou religiosas. Muitos estudantes africanos vieram fazer mestrados ou doutoramentos no Brasil e várias igrejas brasileiras expandiram-se na África. Houve o desenvolvimento e a celebração de uma cooperação sul-sul. Há espaço para um crescimento maior destas relações e um reforço tanto do Brasil como dos países africanos por meio delas. O português é a quinta língua mais falada no mundo, portanto, é potencialmente a base para uma comunidade de peso na cena mundial. De outro lado, a presente recessão econômica no Brasil e nos países africanos traz o risco de quebrar esta crescente dinâmica sul-sul, do internacionalismo brasileiro para com a África.
Parece haver um crescente interesse pela África nos últimos anos no Brasil, a sua recepção por aqui tem confirmado isto? Quais são os principais interesses?
Tem confirmado, sim. Os últimos anos foram de muito desenvolvimento tanto institucional como individual em relação a África. No curso que ministrei na UFPR, houve inscritos de vários lugares do Brasil. Noto também um número crescente de professores de estudos africanos no Brasil e um crescimento da qualidade da pesquisa feita. Há ligações fortes com o continente e, quando olho para a revistas brasileira de estudos africanos, noto não só alta qualidade, mas também um forte envolvimento de acadêmicos africanos o que não acontece na mesma quantidade no mundo britânico. O Brasil está se tornando um polo muito importante de estudos africanos.