À primeira vista, a palavra “mundo” faz pensar em algo abrangente, literal e figurativamente. O professor Marco Antonio Valentim, do Departamento de Filosofia da Universidade Federal do Paraná (UFPR), explica, porém, que ocidentais desenvolveram um conceito de “mundo” muito mais restrito. Religiões e filosofia descrevem o mundo como essencialmente a vida humana; ou seja, é uma forma de separar a humanidade do restante dos seres vivos e do planeta. Mas o grande “mundo” ainda existe na visão de outras culturas, como as ameríndias, que não costumam separar ser humano e ambiente.
Valentim usou esse contraste para pensar a situação da filosofia ocidental em meio à divergência entre mundos e suas respectivas histórias. Esse é o tema do livro “Extramundanidade e sobrenatureza: ensaios de ontologia infundamental” (Ed. Cultura e Barbárie), lançado em junho.
“Impor o estudo dos chamados clássicos como condição para a formação filosófica é um expediente colonial”
“O livro é resultado de alguns anos de pesquisa sobre a divergência entre a filosofia ocidental moderna e o pensamento xamânico ameríndio, com foco no conceito de mundo”, diz o pesquisador. “A ideia era mostrar como, nos dois casos, o conceito de mundo é determinado pelo modo como se pensa e experimenta a diferença entre humanidade e não-humanidade”.
Valentim contrapõe as filosofias de Heidegger e Kant a um conjunto de etnografias, além da obra de Davi Kopenawa e Bruce Albert, “A queda do céu: palavras de um xamã yanomami”. O livro de Valentim foi lançado na UFPR em um debate do qual participaram os professores Alexandre Nodari (Letras) e Miguel Carid Naveira (Antropologia).
Na entrevista abaixo, o professor fala mais sobre o exercício de questionar o conceito antropocêntrico de “mundo”:
Antes de tudo: no seu entender, no que o conceito de “mundo” influenciou a vida no Ocidente quanto a costumes, leis, estruturas comunitárias e etc.?
De origens religiosas e filosóficas, o conceito de mundo é um dos mais importantes na tradição ocidental, pois ele estabelece os limites que separam a humanidade dos demais viventes. Mundo, em sentido ocidental, é o espaço-tempo em que transcorre a vida humana. A influência desse conceito em costumes, leis, estruturas comunitárias e políticas é imensurável. Tomem-se, por exemplo, a moral, o direito e a cidade: o que seriam delas, tais como as conhecemos até hoje, se a diferença entre humanidade e não-humanidade não fosse pensada como uma barreira, mas como uma passagem? Essas instituições seriam sem dúvida totalmente outras, se os animais não-humanos fossem considerados como verdadeiros agentes, co-constituintes do nosso mundo. Isso alteraria profundamente o mundo em que vivemos desde nossa legislação até nosso regime alimentar.
Por que a filosofia (lê-se filosofia ocidental) é uma área de conhecimento tão firmada em “clássicos” e o que faz um “clássico” nela? Avalia que as origens dos autores se refletem nessas definições?
Creio que isso tem a ver, certamente, com certo de regime de dominação que caracteriza a tradição filosófica ocidental em seu todo. Pense-se, por exemplo, na relação escolástica entre mestre e discípulo. Mas é algo que se acirra maximamente com a época moderna, caracterizada pelo conceito de história e pela instituição colonial. A história pressupõe tanto mestres, que devem ser imitados, de um lado, e subalternos, a serem dominados, de outro. Em testemunho disso, é o caso de considerar o quanto um clássico é tanto mais dominante como clássico na colônia que na metrópole. Nesse sentido, é evidente como a origem dos clássicos é predominantemente europeia. Impor o estudo dos assim chamados clássicos como condição de primeira ordem para a formação filosófica é, sem dúvida, um expediente colonial.
Por que os clássicos adotaram um ponto de vista antropocêntrico de mundo? Por que pontos de vista contrários recebem pouco espaço no ensino e na pesquisa?
Essa questão é super complexa. Há, sobretudo, razões de ordem mítica para tanto, que dizem respeito aos afetos que comandam a situação na qual os humanos, ou aqueles que se consideram como tais, se colocam perante seus outros, não-humanos e sub-humanos, no mundo. Lévi-Strauss, que é um pensador europeu que teve seu pensamento transformado pelo contato com uma tradição totalmente outra, ameríndia, concebe a filosofia, especialmente em seu desenvolvimento moderno, como o “mito da dignidade exclusiva da natureza humana”, entendendo que esse mito exprime fundamentalmente um “amor-próprio”. Tal afeto narcísico desencadeia, segundo ele, o especismo e o racismo que caracterizam o “ciclo maldito” da modernidade, a separar os humanos dos outros animais e segregar os humanos entre si.
O resultado disso é um “humanismo corrompido de nascença”. Até hoje os efeitos disso se fazem sentir no ensino e na pesquisa em filosofia, tanto mais na medida em que a consciência filosófica procura se manter à parte de outras formas de pensamento e discurso que souberam criticar aquele amor-próprio. É notável, por exemplo, como a ideia de consciência animal ainda causa escândalo na filosofia oficial, quando todo um conjunto de ciências já opera há tempos a partir da aceitação desse dado fundamental. Aceitá-lo, no caso da filosofia, significaria sem dúvida transformar radicalmente o mundo autocentrado da filosofia, rompendo-se com aquele mito fundador.
As concepções ameríndias têm um correlato atualmente na filosofia ocidental?
Sim, com certeza. Não só concepções ameríndias, mas também de outros povos extramodernos. Isso acontece por via de vários saberes e disciplinas, como as artes, a antropologia e até mesmo algumas ciências, como a etologia. No caso da teoria da comunicação, cabe mencionar as contribuições de Bruno Latour, outro pensador bastante influenciado pelo que outros saberes, além da filosofia, aportam. A ideia de “pensar em rede” força necessariamente uma crítica do antropocentrismo: se o próprio ser humano é um ator em rede com outros atores, não cabe mais pensar a condição humana unicamente por relação a si mesma, mas como constituída por relações complexas com seres não-humanos, sejam eles vivos ou não-vivos, técnicos ou naturais.
Que consequências para a filosofia podem vir dessas comparações com filósofos assim não intitulados?
Consequências, sem dúvida, drásticas. Isso significa o fim de uma história relativamente longa, ou ainda, o fim da própria História. Se horizontalizarmos a relação da filosofia ocidental com outros saberes, ocidentais e não-ocidentais, “tradicionais” ou não, as transformações seriam bastante profundas (ou melhor, já são, pois isso está acontecendo em escala cada vez maior). Pense-se, por exemplo, nas consequências para a história da filosofia: se a geografia for finalmente considerada como fator determinante da produção filosófica, contrariando assim a suposta universalidade de uma só tradição, multiplicar-se-iam exorbitantemente as histórias da filosofia.
Em sentido bastante concreto, os currículos universitários da área teriam de ser, e já começam a sê-lo, totalmente alterados, com a inclusão de outros mundos de pensamento além do ocidental-europeu-moderno, como objetos de estudo com igual importância. Não faria mais sentido (não faz mais sentido!) compreender, por exemplo, os fundamentos da subjetividade moderna apenas por recurso às meditações dos filósofos. Seria necessário relacionar a emergência do “cogito” cartesiano à invasão do Novo Mundo como sendo um de suas condições fundamentais: o “Penso logo existo” seria uma espécie de reação, aliás extremamente negativa, ao encontro com a alteridade radical de outros povos. Pensando contemporaneamente, o reconhecimento de Davi Kopenawa, xamã ianomâmi, talvez o pensador mais importante hoje no Brasil, como filósofo significaria uma reversão drástica do regime colonial que ainda persevera no meio filosófico acadêmico brasileiro.
Você escolheu contrapor o pensamento ameríndio a filósofos ocidentais que têm suas polêmicas pelo conteúdo racista de alguns escritos. Foi proposital ou é porque são clássicos?
Acho que foi inevitável. Em primeiro lugar, porque seria realmente difícil estabelecer uma tal contraposição sem tomar por referência um filósofo de inclinação racista. Entre os principais “clássicos”, é difícil encontrar um que não o seja. Em segundo lugar, essa escolha se deve à minha própria formação, pois Heidegger e Kant foram pilares dela, e isso não é nenhuma exceção. Nesse sentido, a escrita do livro, com o estudo que ela exigiu, foi para mim, pessoalmente, uma espécie de “exorcismo” especulativo. Para encontrar, ou reencontrar, um pensamento realmente outro, capaz de abalar as estruturas do nosso mundo por sua diferença, era preciso atravessar os subterrâneos (nem tão profundos assim) da nossa formação. Alguém poderia objetar dizendo que isso prova a relevância dos clássicos… Mas eu ousaria dizer que é um caminho sem volta. Uma despedida mesmo.
https://educapes.capes.gov.br/handle/capes/572818