Joana [nome fictício para proteger a identidade da entrevistada] é mãe de três meninos. Eles têm oito, cinco e dois anos. Ela teve prisão preventiva decretada por tráfico de drogas em casa. No ano passado, o ministro Ricardo Lewandowski, do Supremo Tribunal Federal (STF), concedeu habeas corpus de ofício para converter a prisão preventiva em prisão domiciliar. No relato ele cita a pesquisa de mestrado da juíza federal Tani Maria Wurster, defendida no Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal do Paraná (UFPR) e orientada pela professora Ana Carla Harmatiuk Matos. O estudo analisa o impacto de ordem coletiva do STF à prisão domiciliar a gestantes e mulheres encarceradas com filhos de até 12 anos.

“Ainda, porque compõem a camada mais baixa do crime organizado são exatamente as mesmas que auferem menores lucros, dispõem de menor proteção, estão mais expostas aos riscos de apreensão e são facilmente substituídas. […] Em sendo assim, porque derivado das atribuições socialmente atribuídas às mulheres, o fato de o crime ser cometido em residência não poderia ser reconhecido como motivo para negar a elas o direito à concessão do benefício”, referencia Lewandowski a dissertação de Tani em um dos trechos do relato.

Das mulheres presas objeto do estudo, todas gestantes ou mães de filhos de até 12 anos, apenas 16,6% haviam sido beneficiadas em razão da maternidade

A pesquisa avalia o desencarceramento de mulheres presas na Penitenciária Feminina do Paraná a partir do habeas corpus coletivo 143.641/SP, proferido pelo STF em fevereiro de 2018. A decisão concedeu ordem coletiva de prisão domiciliar a gestantes e mães de filhos de até 12 anos, desde que elas não tivessem cometido crime com violência ou grave ameaça ou contra seus descendentes.

“A principal descoberta foi o reco­­­­nhecimento do baixo impacto da ordem emanada do habeas corpus coletivo no desencarceramento de mulheres na Penitenciária Feminina do Paraná em 2018”, conta Tani, que também é coordenadora da Comissão Ajufe Mulheres, da Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe).

O habeas corpus deu cumprimento coletivo à norma do artigo 318 do Código de Processo Penal que prevê a possibilidade de concessão de prisão domiciliar a presas provisórias (sem condenação), gestantes e mães de filhos de até 12 anos. “Embora essa norma tenha sido incluída no Código de Processo Penal em 2016 pelo Estatuto da Primeira Infância, havia a suspeita de que ela não vinha sendo aplicada”, comenta Tani.

Com o título “O outro encarce­rado: ser mulher importa para o sistema de justiça?”, a pesquisa também buscou discutir em que medida ser mulher importa para o sistema de justiça. “Além disso, o trabalho aborda de que maneira a invisibili­dade das particularidades que caracterizam o feminino influenciam os desenhos institucionais e as ­decisões judiciais sobre mulheres, que podem determinar violações de direi­­tos sob uma perspectiva de gênero”, acrescenta Tani.

A relação entre manutenção de vínculos e ressocialização

Dados do Departamento Penitenciário Nacional (Depen), ligado ao Ministério da Justiça e Segurança Pública, mostram que, em junho do ano passado, 37,8 mil mulheres estavam presas no Brasil. Em 2018, eram 36,4 mil. Ainda de acordo com o Depen, em junho de 2016, a população prisional feminina atingiu 42 mil mulheres privadas de liberdade — destas, 74% são mães. Na Penitenciária Feminina do Paraná, localizada em Piraquara, na Região Metropolitana de Curitiba, das 309 presas em maio deste ano, 127 são mães — 94 delas têm filhos menores de 12 anos.

Falta de dados sobre famílias no sistema penal é obstáculo à manutenção do vínculo entre mães e filhos prevista em lei

Para a diretora da Penitenciária Feminina do Paraná, Alessandra Antunes do Prado, é muito importante que a sociedade tenha ciência do que acontece no sistema prisional, especialmente no que tange o encarceramento feminino. “Para que assim entenda a importância de se oferecer tratamento penal adequado às presas, com vistas à resso­­cialização e quebra do ciclo de reincidência. Somente com o conhecimento das ações será possível o engajamento da sociedade nesse trabalho”, afirma referindo-se aos resultados apresentados pela pesquisa da UFPR.

Professora do Departamento de Direito Civil e Processual Civil da UFPR e orientadora da pesquisa, Ana Carla Harmatiuk Matos ressalta que o trabalho colocou luz a um problema que é de certo modo ligado ao patriarcalismo. “Essas mulheres estão sendo muitas vezes responsabilizadas a tipos penais relacionados ao tráfico porque geralmente é um trabalho de empacotar e entregar drogas ilícitas, que é algo que se pode fazer domesticamente já que elas precisam ficar com seus filhos. Há ausência de vaga em creche e toda uma falta de infraestrutura para um trabalho formal da mulher que comporte atendimento simultâneo a seus filhos. Contudo, muitas decisões tinham preconceito em relação a isso e as indicavam como mães não suficientemente aptas para bem atenderem seus filhos justamente por estarem ligadas ao tráfico”.

Estereótipos de gênero nas decisões judiciais

O baixo impacto da ordem emanada do habeas corpus coletivo apontado pelo estudo é explicado por questões como a fragilidade no tratamento das informações sobre o número de mulheres, grávidas ou mães de filhos de até 12 anos e sobre as mães com filhos vivendo fora da prisão. “O sistema penitenciário nacional não recolhe, de modo adequado, informações sobre essas circunstâncias. Desconhece quem são as mães dos filhos de até 12 anos que vivem fora da prisão, dado crucial que representa um obstáculo para o exercício de direito dessas mulheres”, explica Tani.

Outro dado apontado pelo traba­lho é a baixa aplicação pelo poder judiciário da ordem do habeas corpus coletivo, assim como a baixa mobilização da circunstância da gravidez ou da maternidade nos processos judiciais. Do total de mulheres presas objeto da pesquisa, todas gestantes ou mães de filhos de até 12 anos, em fevereiro de 2018, apenas 16,6% delas haviam sido beneficiadas pela prisão domiciliar em razão da gravidez ou maternidade.

Com a leitura das decisões judiciais que negaram o pedido de prisão domiciliar, as pesquisadoras verificaram a utilização pelo poder judiciário de discursos influenciados por estereótipos de gênero. “Além disso, pré-compreensões a respeito do lugar ocupado pela mulher na sociedade e expectativas em relação ao seu comportamento, o que atravessa o olhar a partir do qual o Estado mede a mulher e interfere nas dinâmicas de reconhecimento de direitos”, diz Tani.

Para analisar os fundamentos utilizados pelo poder judiciário para negar a substituição da prisão provisória pela prisão domiciliar, foram avaliadas decisões judiciais de 24 processos de mulheres grávidas e/ou acompanhadas de seus filhos na Penitenciária Feminina do Paraná. Os números de mulheres presas antes da decisão de ordem coletiva e a quantidade de presas na unidade prisional seis meses após a concessão da ordem foram comparados a partir de questionário encaminhado à administração penitenciária.

Tese sugere neecssidades de políticas públicas

Entre outros aspectos, a pesqui­­sa colabora para revelar a invisibili­dade que caracteriza o ­aprisionamento feminino e aponta para a necessidade de políticas de tratamento de dados sobre as pessoas presas. “Há um déficit histórico e injustificável em termos constitucionais, e por que não dizer em termos morais e civilizacionais”, diz Tani.

Nesse sentido, o estudo indica a necessidade de políticas públicas de tratamento de dados sobre a presença da gravidez e da maternidade mediante a coleta de dados sobre nome, número de filhos, suas idades e situação de custódia ou guarda.

Para a professora Ana Carla, é necessário um cadastro detalhado que auxilie na proteção dessa mulher e no resgate dos filhos. “No que se refere ao passado precisaríamos de uma busca ativa, de toda uma pesquisa para localizar os membros familiares e voltar a ter a teia de vínculos entre mãe e filhos, porque em muitos casos nem se sabe onde estariam as crianças dessas mães encarceradas”.

“Há ainda a necessidade de desen­­volvimento de cursos formação inicial e continuada de magistrados sobre a importância de se adotar uma perspectiva de gênero e de raça no julgamento dos processos”, acrescenta a pesquisadora.
A reportagem entrou em contato com o Grupo de Monitoramento e Fiscalização do Sistema Carcerário do Paraná, ligado ao Tribunal de Justiça do Estado do Paraná (TJPR), mas não obteve retorno até o fechamento desta reportagem.

Por Chirlei Kohls
📖 Publicado originalmente na Revista Ciência UFPR (V. 5, nº 6, 2020).
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