Ensinamentos da gripe espanhola, a pandemia do século passado

Ensinamentos da gripe espanhola, a pandemia do século passado
Orientação em poucas linhas da coluna "Consultório da Mulher", da Revista da Semana de 19 de outubro de 1918, para prevenção contra a "influenza espanhola", um mês antes do presidente Rodrigus Alves ser impedido de tomar posse por estar doente. Reprodução: Acervo "Brasiliana Fotográfica" Memória BN/Arquivo Nacional

As semelhanças entre a trágica gripe espanhola, de 1918, que matou milhões de pessoas no mundo, e o início da pandemia do novo coronavírus são marcantes para pesquisadores do tema, ainda que as comparações entre passado e presente demandem cautela, a começar pela distinção no tipo de vírus responsável pela doença. O que mais chama a atenção são as recomendações de isolamento e distanciamento social, o que também ocorreu de forma muito intensa na época.

Mas há diferenças, a começar pelo tipo de vírus em circulação. Antes, o influenza; agora o Sars-CoV-2, da família Coronavírus. “Ainda é complicado falar em legado para a pandemia que estamos vivendo agora, mas é possível falar sobre a necessidade de uma atenção permanente e sobretudo estimular pesquisas que busquem produzir vacinas e medicamentos”, comenta a professora Liane Maria Bertucci, do Departamento de Teoria e Fundamentos da Educação da Universidade Federal do Paraná (UFPR), estudiosa do tema. Essa é, aliás, é outra das distinções marcantes provocadas pelo avanço da ciência em cem anos: há expectativas para o desenvolvimento de uma vacina a médio prazo.

“A grippe” mudou o cotidiano no Brasil de 1918 e acendeu o alerta sobre novos vírus

Em 1918, os conselhos sobre higiene e isolamento social eram muito semelhantes aos que se vivencia agora. A informação por parte dos jornais, por exemplo, foi importante naquela época, apesar do grande número de analfabe­tos. “Essas pessoas poderiam ouvir os comentários das notícias e sobre os meios de prevenção da gripe, também podiam observar ilustrações dos jornais — muitas delas alertavam sobre a doença”. Por outro lado, também houve censura sob a alegação de evitar o pânico.

No livro O mez da grippe, cuja primeira edição pela Casa Romário Martins, da Fundação Cultural de Curitiba, é de 1981, o autor Valêncio Xavier reconstrói esse momento histórico através de recortes de jornais da época. Os meses de outubro, novembro e dezembro de 1918 foram difíceis para a capital paranaense.  O então diretor do Serviço Sanitário do Estado, Trajano Reis, aconselhava habitantes que não se visitassem até que terminasse o ciclo da epidemia e que evitassem aglomerações. Segundo a historiadora, tanto na cidade, como em outras regiões do Brasil, os chamados conselhos ao povo resumiam, em poucas linhas, prescrições médicas. “Os jornais publicavam comentários de médicos sobre a doença e, em alguns casos, como fez O Estado de S. Paulo, reproduziam números oficiais de doentes e mortos”, pontua.

A informação pode ter feito diferença no impacto da pandemia. A professora Lucy Ono, do Departamento de Patologia Básica da UFPR, estimou, a partir dos dados do livro de Xavier, que 62% de toda a população de Curitiba em 1918 foi atingida.  Desses, 0,85% morreram, o equivalente a 0,52% da população na cidade. “Podemos apenas especular, pois temos poucos dados, que em Curitiba pode ter havido a implementação maior de medidas de distanciamento social em 1918, pois esse valor de mortalidade de 0,84% está abaixo dos 2,5% relatados nos Estados Unidos para a pandemia de 1918”.

Incertezas científicas, mas em graus diferentes

A gripe espanhola teria deixado entre 20 e 50 milhões de mortos no mundo — cerca de 35 mil deles no Brasil. Na época, como relembra Liane, os médicos identificavam os sintomas da doença, que já classificavam como microbiana, endêmica e mundial e sem tratamento específico. A comunidade científica discutia se ela era causada por um bacilo ou um vírus: foi a gripe epidêmica que impulsionou essas pesquisas. Em setembro daquele ano, no Brasil, houve um impasse sobre os primeiros casos suspeitos. A dúvida é se eram de gripe espanhola ou uma gripe comum. “Isso pode ter acarretado atraso em medidas de combate à doença”, observa a pesquisadora.

O fato de a comunidade científica e o sistema de saúde estarem diante de um vírus novo, de uma família diferente, evoca, hoje, outro tipo de incerteza. Para Liane, a nova faceta do microrganismo mostrou que nenhum sistema de saúde do mundo estava preparado para esse tipo de pandemia, forçando o questionamento sobre a melhor forma de usar os recursos disponíveis. “Em uma epidemia, agir com rapidez é importante. Como estar preparado para uma doença que vai exigir centenas de leitos a mais nos hospitais, além de grande número de equipamentos e medicamentos? Seria possível manter e atualizar constantemente estruturas assim em diferentes partes do mundo?”.

A historiadora recorda como a última epidemia mundial, de H1N1, em 2009, foi um momento em que a história reforçou as urgências do presente. “Foi um alerta sobre o período potencial de uma gripe — que até hoje não tem tratamento específico e é causada por um vírus que pode sofrer mutações letais”. Segundo ela, houve uma “redescoberta” da gripe espanhola que pode ter ajudado a agir com prontidão diante dos riscos do novo Influenza. “É uma hipótese. A história serve para nos dar um alerta, para pensarmos em como agir”.

Lucy Ono também compara o passado ao tempo presente. “Se não tivéssemos sistema de saúde, se não tivéssemos os medicamentos antibióticos que temos para tratar infecções bacterianas secundárias, se tivéssemos as mesmas condições da época, com uma população atual de quase 2 milhões de habitantes, a cidade poderia ter 16,8 mil mortes pelo vírus da gripe espanhola”, comenta, fazendo um adendo de que o cenário não é mais realístico.

Medo e solidariedade emergiram

Há dez anos, a Liane Bertucci publicou o artigo A onipresença do medo na influenza de 1918. Naquele 2009, a população mundial voltaria a se preocupar com a influenza por conta do H1N1, enquanto Liane retomava um período de incertezas, medo e solidariedade impulsionada pela gripe espanhola.

Em outubro de 1918, por exemplo, o jornal O País dizia que era necessário combater duas epidemias, a de gripe espanhola e a do medo. A historiadora conta que os brasileiros foram, então, “forçados a mais enraizados”. Atividades familiares foram interrompidas, doentes isolados e as cidades ficaram em silêncio. “Em 1918, os brasileiros tiveram seu cotidiano modificado devido à gripe espanhola, e assistiram os locais públicos serem fechados; as reuniões noturnas, inclusive as religiosas, tornarem-se proibidas (a diferença de temperatura, dentro e fora desses locais já favoráveis à propagação da doença, poderia ser fatal para as pessoas e a difusão da moléstia), e os enterros com acompanhamento a pé serem vedado. Visitas foram condenadas e beijos e abraços desaconselhados. Até cumprimentar com aperto de mão passou a ser ato indesejado”, escreve. O medo do contágio transformou o cotidiano, aumentando a vigilância dentro das comunidades. Como a hospitalização tinha público privilegiado, os mais pobres, os que viviam em péssimas condições sanitárias, foram considerados inimigos.

Por outro lado, o livro de Xavier mostra a preocupação com o acolhimento à população de baixa renda, à qual se ofereciam refeições, divulgadas em anúncios nos jornais. historiadoraesses movimentos em seu estudo. “Uma expressão desta solidariedade pode ser detectada na intensa divulgação de fórmulas caseiras com a explícita intenção de, gratuitamente, ajudar as pessoas a curar a doença ou evitá-la. Difundidas por todo o Brasil em 1918, as práticas de cura da medicina popular revelavam aspecto significativo do dinâmico universo cultural nacional”, registrou Liane.

📖 Publicado originalmente na edição 6, ano 4, da Revista Ciência UFPR (2020).
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