O professor Aldo José Gorgatti Zarbin, do Departamento de Química da Universidade Federal do Paraná (UFPR), se destacou nos últimos anos não só na sua área de pesquisa, a química de materiais aplicada à nanotecnologia, mas também na representação dos interesses da comunidade científica. Há pelo menos 20 anos ele divide o seu tempo entre a pesquisa e a atuação em sociedades científicas.

Já presidiu a Sociedade Brasileira de Química (SBQ), tornou-se fellow da centenária Royal Society of Chemistry (RSC) em 2018, e é membro de várias outras entidades, como a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), a Sociedade Brasileira de Pesquisa em Materiais (SBPMat), a American Chemical Society (ACS) e a Materials Research Society (MRS).

“O desenvolvimento de um país tem relação direta com os investimentos públicos em ciência e tecnologia”

É por meio dessas associações que Zarbin busca dar vazão à mobilização para demandas da área e pela divulgação científica. São atividades que considera essenciais para a saúde da ciência mundial e, particularmente, para a produzida no Brasil. “Política científica e educacional deve ser pensada por cientistas e educadores”, acredita.

Nessa linha, Zarbin defende empenho extra dos pesquisadores na tarefa da divulgação científica. “Alguma coisa está falhando”, avalia, ao mencionar a ascensão recente de ideias refutadas pela ciência. Especialista no desenvolvimento de filmes com aplicação ao setor de energia, Zarbin também comenta nesta entrevista os avanços da nanociência, ao mesmo tempo em que faz uma defesa da ciência básica.

Poderia falar um pouco sobre a sua pesquisa com nanomateriais?

Minha pesquisa é na área de química de materiais, o que significa que é voltada à preparação de novos materiais para alguma utilização específica. Qualquer coisa que tem uma utilidade, uma função, pode ser definida como um material, e essa função depende de algumas características desse material, como por exemplo a composição química e o tamanho das partículas que o compõem. Por exemplo: o vidro é rígido, transparente e quebradiço, enquanto que a borracha é flexível, maleável e opaca.

As características desses materiais tão diferentes se devem à composição química, à organização das moléculas ou dos componentes e ao tamanho das partículas de cada um. Recentemente se descobriu que materiais muito, muito pequenos – na ordem de alguns nanômetros [um nanômetro corresponde a um bilionésimo do metro, o equivalente ao tamanho de quatro ou cinco átomos enfileirados] têm propriedades muito diferentes, o que deu origem à nanociência e à nanotecnologia. Os materiais obtidos nessa faixa de tamanho são chamados de nanomateriais.

O primeiro ponto relacionado ao meu trabalho de pesquisa consiste exatamente no desenvolvimento de novas rotas químicas de preparação de nanomateriais, principalmente uma classe conhecida como nanomateriais de carbono, cujos representantes típicos recebem o nome de nanotubos ou de grafeno, além das chamadas nanopartículas metálicas e nanopartículas de materiais já conhecidos, como o azul da Prússia e derivados. Além disso, estudamos métodos de preparação de combinações desses materiais com eles próprios ou com outros, resultando nos chamados materiais nanocompósitos.

Essa é uma parte de ciência fundamental, básica, em que o interesse principal consiste em aprender a fazer esses materiais, a controlar as reações químicas que lhes dão origem, a compreender as suas estruturas e como essas estruturas dão origem às diferentes propriedades. Com essa compreensão pode-se moldar as propriedades, visando aplicações específicas. Nosso grupo foi pioneiro na preparação de alguns desses materiais e desenvolveu rotas totalmente inéditas para fazê-los, barateando custos e propiciando caminhos mais simples e eficientes de preparação.

Geração e armazenamento de energia são também o foco deste trabalho?

Sim, a segunda vertente do grupo consiste exatamente na aplicação desses materiais. Nosso foco é voltado para aplicação em células solares, baterias, sensores, eletrodos transparentes e catálise. Uma das maiores descobertas que fizemos foi encontrar uma maneira de processar esses materiais avançados e sofisticados na forma de uma fina camada que pode ser depositada sobre diferentes superfícies. Materiais com essas características são conhecidos como filmes finos. Para se ter ideia da importância disso, é um material na forma de filme fino que recobre celulares e tablets e permite que as informações sejam acessadas com um toque – o touch screen.

“A síntese de nanomateriais é uma parte de ciência fundamental, básica, em que o interesse principal consiste em aprender a fazer esses materiais, a controlar as reações químicas que lhes dão origem, a compreender as suas estruturas e como essas estruturas dão origem às diferentes propriedades”

Para várias aplicações importantes, o processamento de materiais na forma de filmes finos é fundamental para um bom desempenho. Inventamos uma maneira de preparar esses materiais na forma de filmes finos que podem ser depositados em várias superfícies, baseado na interface entre dois líquidos que não se misturam, como água e óleo por exemplo. Com isso, conseguimos explorar toda a potencialidade desses materiais.

Dentro das aplicações que temos encontrado com performances surpreendentes, posso citar células solares de corante e baterias de íons lítio, ambas operando em meio aquoso; sensores para diferentes compostos com baixíssimos limites de detecção e catalisadores para várias reações, como a degradação de poluentes ou de pesticidas.

Qual a importância para o Brasil dos investimentos continuados em Ciência e Tecnologia (C&T)?

O grau de desenvolvimento econômico e social de um país pode ser diretamente relacionado aos investimentos públicos em C&T, pois é daí que saem os avanços que trazem soberania e dão lastro à economia do país. Qualquer analista que decida dedicar um pouco de tempo a isso consegue encontrar a relação direta entre nível de desenvolvimento de uma nação e a quantidade de recursos investidos em C&T.

“Em ciência o tempo perdido é irrecuperável, além de perdermos pesquisadores. Grandes cientistas brasileiros estão sendo contratados por universidades e centros de pesquisa em países onde o investimento é seguro”

Assumi a presidência de uma das maiores sociedades científicas da América Latina, a SBQ, em 2016. A primeira medida do governo [Michel] Temer foi extinguir o Ministério de Ciência, Tecnologia e Inovação e colocar esses assuntos em um ministério híbrido com as comunicações. O investimento foi reduzido a ponto de, em agosto de 2018, o então presidente do CNPq [Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico] vir a público e anunciar que sequer as bolsas de pós-graduação poderiam ser pagas caso não houvesse mais aporte de recursos, indicando textualmente que a ciência brasileira iria parar. O quadro não chegou a esse patamar catastrófico muito pela ação das sociedades representativas, como a SBQ, capitaneadas por um trabalho gigantesco e perene da SBPC e da Academia Brasileira de Ciências (ABC).

Os recursos entretanto foram muito diminuídos em 2017 e 2018, e o orçamento de 2019 é sofrível, a ponto de o novo presidente do CNPq, do novo governo, vir a público e dizer o mesmo. E recentemente [em maio de 2019] se anunciou um contingenciamento dos parcos recursos. É urgente que esse quadro se reverta, pois em ciência o tempo perdido é irrecuperável, além de perdermos pesquisadores. Grandes cientistas brasileiros estão sendo contratados por universidades e centros de pesquisa em países onde o investimento é seguro, para conseguir realizar seu trabalho.

Como devem ser feitos os investimentos em C&T? Deve-se priorizar a vocação local?

Veja, eu sempre digo que o conhecimento científico não tem bandeira. Todo tipo de conhecimento, mesmo o que a princípio parece não ter serventia no mundo real, em determinado momento será usado em benefício da população. Ninguém esperava no início do século XX que a quântica serviria para algo além de um conhecimento básico da natureza e hoje temos computadores e celulares que se utilizam desse conhecimento.

Quero dizer que uma parte importante do investimento em C&T deve buscar o conhecimento per se, sem se preocupar com aplicação imediata. Entretanto, outra parte desses investimentos deve ser orientada para que se resolvam problemas locais de acordo com as diferentes vocações. O gestor de política de C&T deve ter clareza dessas realidades.

“Estamos falhando na comunicação científica, o que permite que absurdos que nos fazem pensar que estamos voltando à Idade Média, como terraplanismo, movimento anti-vacina e etc., encontrem adeptos em pleno século XXI”

Temos inúmeros exemplos para nos orgulharmos da ciência que se faz neste país: somos os maiores produtores mundiais de soja graças à ciência que permite safras absurdas em solo antes não cultivável; conseguimos extrair petróleo de águas profundas e até na camada do pré-sal. Recentemente a ciência brasileira mostrou ao mundo a associação entre a microcefalia e o zika vírus. Temos cientistas e estrutura associada à C&T de alto nível, que respondem quando chamados a fazê-lo.

Qual o papel da divulgação científica frente a movimentos que contestam até mesmo conhecimentos consolidados?

Essa é uma questão das mais importantes e que merece um mea culpa da comunidade científica. Estamos falhando na comunicação científica, o que permite que absurdos que nos fazem pensar que estamos voltando à Idade Média, como terraplanismo, movimento anti-vacina e etc., encontrem adeptos em pleno século XXI. Pessoas acessam informações ao toque dos dedos em qualquer lugar do planeta, mas acreditam em teorias tão toscas e ultrapassadas que beiram o inacreditável.

Lógico que uma boa formação científica e educacional é fundamental para evitar essa situação. Em 2017 o CGEE [Centro de Gestão e Estudos Estratégicos, do MCTIC] divulgou uma pesquisa sobre a percepção dos brasileiros sobre C&T e o resultado é surpreendentemente positivo. Entretanto, mais de 80% disseram desconhecer alguma instituição de pesquisa ou algum cientista brasileiro de renome.

“Todo tipo de conhecimento será usado em benefício da população. Ninguém esperava no início do século XX que a quântica serviria para algo além de um conhecimento básico da natureza e hoje temos computadores e celulares que se utilizam desse conhecimento”

Nós, cientistas, estamos falhando nessa comunicação com a população e está no momento de virar o jogo. Já começamos. A grande mídia está investindo mais em blogs e colunas de divulgação científica. Cientistas estão indo a escolas. Congressos científicos no Brasil estão cada vez mais se preocupando em organizar eventos para crianças. Mas há muito a ser feito.

Por que acha que o cientista deve se envolver com assuntos ligados à política e à gestão para a ciência e a educação?

Fazemos política até quando estamos dormindo. A banalização da política é um grande erro. Política científica e educacional deve ser pensada por cientistas e educadores. Quando um aluno recebe bolsa para fazer mestrado, essa bolsa é fruto de política educacional e científica. O mesmo quando um pesquisador recebe um auxílio para seu projeto de pesquisa. Além disso, temos que aprender a jogar o jogo, saber fazer lobby por essas áreas. Por isso é tão importante que tenhamos sociedades científicas fortes, que lutam pelos interesses da C&T. A maior parte dos pesquisadores no Brasil são estudantes de pós-graduação que dependem de bolsas, o que, no geral, leva a descontinuidades e sensação de fragilidade.

“Ainda estamos muito aquém do nível de doutores desejados para um país desenvolvido. Portanto, não há nenhum problema nisso, pelo contrário. O problema é estrutural”

É possível pensar melhor esse quadro? A questão remete a várias realidades a serem consideradas. É necessário que se saiba que 90% do conhecimento científico gerado no Brasil ocorre dentro de uma universidade, em programas de pós-graduação, por alunos de mestrado e doutorado. Desses, 90% se dão em uma universidade pública. Essa realidade precisa ser disseminada, pois o que difere e qualifica uma instituição de ensino é a qualidade da ciência que se produz, que afeta positivamente todos os outros polinômios, principalmente a qualidade do ensino.

Eu disse que C&T e educação são as chaves para o desenvolvimento de um país e é fácil perceber que as universidades públicas estão no coração desse processo. A universidade pública é um verdadeiro patrimônio do Brasil e dos brasileiros e deve ser continuamente defendida. A relação direta entre a ciência produzida aqui e a pós-graduação é importante porque alia o conhecimento científico de alto nível com a formação de recursos humanos qualificados. Ainda estamos muito aquém do nível de doutores desejados para um país desenvolvido. Portanto, não há nenhum problema nisso, pelo contrário. O problema é estrutural. Temos menos bolsas do que o desejado e o valor pago é desanimador.

Estudantes de mestrado e doutorado são profissionais com curso de graduação finalizado. É preciso que finalmente sejam olhados com os olhos adequados, porque contribuem com grande parcela da geração de conhecimento nesse país.

📖 Publicado originalmente na Revista Ciência UFPR (V. 4, nº 5, 2019).
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