O professor e arqueólogo Fabio Parenti, do Departamento de Antropologia da Universidade Federal do Paraná (UFPR), liderou a parte arqueológica da equipe que descobriu ferramentas de pedra lascada que podem recontar a trajetória evolutiva da humanidade. A datação revelou em 2019 que as peças têm entre 1,9 e 2,4 milhões de anos e assim sugere que a primeira espécie do gênero Homo a deixar a África tenha sido o Homo habilis, pois o Homo erectus, espécie que pensa-se ter sido a primeira, ainda não teria surgido na época.

Parenti, que é especialista no reconhecimento de artefatos como os encontrados no vale do rio Zarqa, na Jordânia, explica que essas interpretações estão entremeadas por diferentes posições no campo da arqueologia, até mesmo a divisão entre as espécies é contestada por algumas linhas, contudo, segundo apontamentos do professor Walter Neves (Universidade de São Paulo – USP) que coordenou a equipe, tal interpretação explicaria uma série de descobertas de fósseis que se fizeram no Oriente Médio, Europa e Ásia anteriormente.

“Essas peças foram lascadas de uma forma bastante sofisticada que nenhum chimpanzé, nenhum Cebus atual faz”

Fabio Parenti, professor e arqueólogo do Departamento de Antropologia da Universidade Federal do Paraná (UFPR)

O contato de Parenti com o sítio começou em 1996, quando ainda era arqueólogo autônomo na Itália, sua terra natal, quando uma equipe italiana escavou o local. Ao se estabelecer no Brasil, teve a oportunidade de retomar o trabalho que havia sido encerrado. O professor tem uma forte ligação com o Brasil desde o seu doutorado, feito a partir de escavações nos sítios de Pedra Furada, no Parque da Serra da Capivara (Piauí), de grande riqueza arqueológica e paleontológica. Parenti ajudou a estudar esses sítios em uma parceria que se mantém até os dias atuais com a Fundação do Homem Americano. Nesta entrevista à Ciência UFPR, ele fala mais sobre a sua carreira e a sua área de conhecimento.

Para começar poderia falar um pouco sobre o seu trabalho no Piauí e sobre os sítios no Parque da Serra da Capivara?

O meu doutorado foi publicado há 30 anos, portanto é um trabalho passado, congelado no tempo. Para mim foi um trabalho maravilhoso, muito bom, eu estava bastante isolado, com poucas pessoas, a Fundação [do Homem Americano] tinha sido criada em 1987 então era muito recente, os pesquisadores apareciam apenas ocasionalmente, agora temos um rodízio, tendo muito mais volume e massa crítica de pesquisas. Na época era praticamente só arqueologia e o que estava ajudando muito a fundação era a parte de saúde pública com a presença da Fiocruz [Fundação Oswaldo Cruz], do Rio de Janeiro. E teve também no final dos anos 80 uma contribuição italiana de cooperação para a educação, então foram montadas escolas e postos de saúde, o que ajudou muito a lançar a área do parque, declarado patrimônio da Unesco em 1991. Ao longo dos anos continuei escavando lá várias vezes, publicamos cerca de 25 trabalhos em parceria com alunos brasileiros e, em parte, com colegas italianos. Há mais de 1,5 mil sítios cadastrados em uma área pequena, então é uma densidade enorme, tem cerca de 25 a 30 sítios escavados e talvez seja a maior coleção de fósseis do Pleistoceno [período entre 2,6 milhões e 12 mil anos atrás] do Brasil e talvez uma das maiores da América Latina. Comparável com aquela que está na Argentina, no Museu de La Plata. É uma coleção enorme de mamíferos fósseis, maravilhosamente conservada em São Raimundo Nonato, muito bem estudada por uma equipe francesa. Outros achados importantes são as datações de camadas arqueológicas antigas, os estudos de clima, estudos de arte rupestre, que é muito rica no Nordeste todo, estudos de Antropologia feitos tanto pelo Walter Neves, como por outros pesquisadores. Atualmente está sendo extraído o material genético dos esqueletos encontrados lá, então é um centro de pesquisa de referência onde se podem fazer muitas coisas em várias direções.

Como se deu a formação dos sítios no vale do Zarqa e qual a relação com a datação das peças?

Estes sítios se formaram com o preenchimento de um vale que tinha se criado entre 4 e 5 milhões de anos atrás. Primeiro foi preenchido por basalto vindo da Síria, depois por sedimento fluvial, esse sedimento continha também restos de animais e de artefatos, então é tudo misturado. O rio traz esse material e deposita não só na vertente, mas também nas beiras, os animais e os humanos vão até ali porque têm um recurso muito importante, sobretudo em uma região árida, a água, então naquele lugar se junta toda a vida da região. Assim se formaram os sítios, são cerca de 7 a 8 quilômetros quadrados entupidos de material, é bem grande. Essa formação é importante para a datação porque na base temos minerais vulcânicos, que nos permitem saber quando foram depositados, no meio, onde estão os artefatos, é possível datar através de paleomagnetismo, verificando as marcas deixadas pelas mudanças de polaridade magnética da Terra, e no topo têm urânio e chumbo contidos no calcário.
O urânio começa a perder isótopos com o passar do tempo e com isso é possível calcular quando foi depositado, essa é uma técnica bastante nova capaz de fazer uma medição mesmo com uma quantidade mínima de material. Ela é um pouquinho experimental ainda, foi desenvolvida por um laboratório alemão, único capaz de realizá-la até agora em períodos tão recentes (geologicamente). Isso permitiu datar o topo da sequência que contém essa carapaça de carbonato de cálcio, dura como cimento, que foi a que preservou os sítios. São estes três métodos que permitem obter com uma boa aproximação a idade em que todo este material foi depositado e assim saber a idade das peças encontradas. Foi assim que amarramos aquele pacote de sedimento em uma idade entre dois e meio e dois milhões de anos atrás.

Poderia falar do impacto deste estudo, o que levou a toda essa repercussão?

Bem, isso aconteceu porque envolve indiretamente a evolução humana, mas, veja, a descoberta dos objetos é uma coisa antiga, de 23 anos atrás, já a datação é uma coisa mais recente dos últimos anos e a publicação é recente, fazer as datações leva meses de trabalho, as descobertas são fatos casuais e o estudo demora muito tempo, o que ainda não acabou, só que com a datação firme, como essa, a coisa tem uma perspectiva mais charmosa, afinal o arqueólogo procura entender coisas antigas, então a idade é fundamental. O estudo teve essa repercussão porque, segundo o Walter [Neves], explicaria a grande diversidade dos fósseis encontrados na Ásia; por que tem tanta diversidade? Isso é estranho. De fato com esses resultados estaremos documentando um momento muito precoce, muito antigo, da expansão para fora da África. Que seja o [Homo] habilis é difícil dizer, inclusive arqueólogos discutem a própria existência do Homo habilis como táxon independente, mas isso não me pertence, sobretudo não nos pertence, porque não temos fósseis, então é tudo abstrato; temos unicamente pedras, quem fez essas pedras? Não sabemos. Poderia ser habilis? Sim ou algo de equivalente em termos de idade, que seria o antecessor do que foi descoberto lá na China há 2,1 milhões de anos atrás.

O professor poderia falar um pouco sobre o lascamento de pedras pelos primatas, que é sua especialidade?

Essa característica, essa tendência de bater e de lascar é antiga evolutivamente. Nós batemos pedras há pelo menos dois milhões de anos. Outros primatas americanos, que são bem separados de nós, coisa de milhões de anos, têm também essa tendência, então é possível pensar que seja algo de comum a muitos gêneros de primatas no mundo. Eu tenho observado o material relacionado ao estudo publicado na Nature sobre as peças do Piauí feitas por Cebus que são primatas atuais, que são muito simples, porque é resultado de lascamento involuntário, e tem algo de parecido com as indústrias antigas [as primeiras pedras lascadas utilizadas por antepassados do ser humano atual].

Mas as peças encontradas no vale do Zarqa são muito diferentes destas lascadas involuntariamente? É possível saber para que eram utilizadas?

Essas peças foram lascadas de uma forma bastante sofisticada que nenhum chimpanzé, nenhum Cebus atual faz, então, são, como se diz vulgarmente, humanas, mas não sabemos de qual Homo; o uso é difícil de se averiguar porque as peças são muito roladas dentro da torrente, salvo algumas poucas, isso apaga os eventuais traços de uso, então o que nós vamos procurar agora em 2020 são lugares, porções de afloramento, onde as peças sejam bem conservadas, pouco roladas, justamente para fazer esses exames microscópicos. Achar lugares de baixa energia no preenchimento do vale, esse é o nosso objetivo.

Mas apesar de não se saber exatamente o uso das pedras tem-se uma ideia para que elas serviam, como rasgar carcaças de animais, certo?

Sim, ou descarnar animais já mortos, tirar pele, tirar tutano, para se alimentar, é a coisa mais provável. Claro, para falar que eram caçadores depende de como se interpreta o termo, porque predação, ou seja, comer outros animais, é uma coisa que muitos primatas fazem, inclusive os Chimpanzés. Mas nós somos onívoros, agora, caça como se entende vulgarmente, ou seja, matar através de instrumentos, é um fato mais recente na história evolutiva, talvez essa seja a época, um momento entre 2 e 1 milhão de anos atrás, em que se começa a utilizar as pedras para fazer algo, a primeira coisa é lançar, antes que virem uma lança, ou seja um objeto simétrico pontiagudo e penetrante, isso demora, mas pode-se lançar seixos para quebrar o crânio de uma gazela, de um herbívoro. Um seixo balanceado é uma arma poderosa, mas, fora isso, a maioria desses sujeitos provavelmente aproveitava de cadáveres que já tenham sido caçados por outros predadores. Lá vem o problema da competição, um grande predador não pode ser atrapalhado enquanto está se alimentando porque fica, como se diz, uma fera, então isso tudo implica um conhecimento do contexto dos predadores da época, ou seja da paleontologia, e nós não temos isso, nós não encontramos nenhum fóssil de carnívoros ali. Temos em outros sítios, de outras idades, mas aí a comparação fica difícil, não adianta saber o que tinha na África na mesma época, porque a África, o rift africano, tem 4 mil quilômetros de distância. É como comparar a população daqui com a população, sei lá, de Detroit, ou do México, longe de mais. Então para dizer qual era a população de carnívoros, precisaria encontrar ossos de carnívoros naquela região, daquela idade, e então, boa sorte!

Então era uma relação de dependência com esses predadores?

Bem, se você quer explorar trabalho alheio, tem que ter alguém para ser explorado, ou seja, alguém que tenha o trabalho de matar um cavalo, de matar uma jovem gazela, ou, sei lá, um elefante. Um elefan­­te era bem cobiçado porque tem muito material, mas ninguém mata um elefante a pedrada, tem que ser um belo tigre ou uma pantera, para fazer o trabalho, depois um qualquer caçador ou coletor pode explorar. Um elefante até hoje em dia consegue-se matar apenas com armas de fogo, então tem que ter prudência ao imaginar a caça, a não ser de animais médios ou pequenos, isso sim, como fazem os chimpanzés, caçam animais pequenos, comendo ratos ou coisa parecida. Não é perigoso caçar uma pequena gazela, o que seria o equivalente aqui de uma capivara, ou de um catitu. Animais de médio ou pequeno porte, não carnívoros, são grandes oportunidades para um grupo de caçadores não especializados e sem armas, ou usando um pedaço de madeira, porque um cacete de madeira pode ser uma arma bem eficaz, mas, naturalmente, não contra… Um tigre-dente-de-sabre.

É possível se falar em saltos ou momentos de grande aceleração evolutiva?

Sim, tem momentos de aceleração evolutiva, tanto física quanto cultural, se você pensar no bipedalismo, no crescimento do cérebro, com uma explosão muito grande no final do Pleistoceno inferior, no uso de artefatos, na invenção do fogo, tudo aquilo que está nos livros de escola primária é realmente muito importante. A invenção do fogo, a pirotecnologia, como se chama, muda tudo radicalmente, você pode ter acesso a um monte de alimentos e transformar matéria de muitas formas. Por isso, podemos falar que há acelerações, para nós é quase óbvio dizer, hoje em dia, que as acelerações são rapidíssimas. Nos últimos 200 anos as mudanças de estruturas físicas na nossa vida social são muito próximas uma da outra, pense na passagem entre a construção de ferrovias e a digitalização do mundo, passaram-se apenas 150 anos. Isso não é nada em termos evolutivos, são cinco gerações. E está sendo muito diferente, até arqueologicamente, tanto é que se fala em antropoceno. Os depósitos provocados por essas transformações, o que está sendo espalhado de plástico na terra, vai deixar evidentes traços no registro sedimentar, são transformações recentes assustadoras, realmente é muito rápido. No mundo camponês da Europa de 300 anos atrás as pessoas praticamente morriam com aquele mesmo tipo de ambiente técnico que tinham conhecido quando nasceram, os filhos mais ou menos o mesmo, podiam inventar um arado um pouco diferente, mas era a mesma coisa. Do neolítico para adiante o negócio ficou meio paralisado até a Revolução Industrial, hoje, a cada três anos, temos que trocar os programas do computador, temos até que aprender novas relações sociais. Parafrasendo o grande biólogo americano, Edward Wilson, nós temos corpos e instintos paleolíticos, com instituições e crenças medievais e possibilidades astronáuticas. As possibilidades são maravilhosas, mas arrastamos instituições antigas, se formos pensar nas nossas instituições sociais, crenças e tudo mais, e temos uma estrutura instintual de caçadores e coletores, porque nós passamos 3 milhões de anos caçando, a agricultura é uma atividade muito recente, dos últimos 10 mil anos, então é tudo muito contraditório.

📖 PUBLICADO ORIGINALMENTE NA REVISTA CIÊNCIA UFPR (V. 5, Nº 6, 2020).
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