Contato de risco: composto químico raro fora do Brasil afeta fertilidade masculina Pesquisadores da UFPR investigam como um ftalato chamado DiPeP, associado ao plástico de fabricação nacional, pode estar agindo já nas gestações para uma exposição inferior à necessária de fetos masculinos à testosterona
Bloqueio na produção hormonal causada por químicos pode afetar qualidade e quantidade de espermatozoides; no primeiro caso, há dificuldade na concepção, no segundo, infertilidade. Foto: Mitchell Griest/Unplash

Ftalatos são substâncias químicas das quais pouca gente ouviu falar, mas a que certamente todos já foram expostos. Esses compostos, cuja toxicidade para a fertilidade humana tem se mostrado questão relevante para a ciência, chegam ao organismo humano por meio da exposição do corpo a objetos que fazem parte do cotidiano de populações do mundo todo. Um desses compostos, que mostrou alto potencial de interferência no sistema hormonal humano, tem sido objeto de estudos de pesquisadores da Universidade Federal do Paraná (UFPR), especialmente porque parece ser típico do Brasil.

Em um estudo do qual participaram 50 grávidas de Curitiba, pesquisadores dos departamentos de Farmacologia e de Fisiologia da UFPR comprovaram a presença de um ftalato raramente encontrado no organismo de pessoas fora do Brasil. Os resultados da pesquisa estão no artigo “Unexpected, ubiquitous exposure of pregnant Brazilian women to diisopentyl phthalate, one of the most potent antiandrogenic phthalates“, publicado no volume 119 da revista científica Environment International. Também participaram do estudo cientistas da Ruhr University Bochum, da Alemanha, e da Icahn School of Medicine at Mount Sinai, de Nova York.

O Brasil é, até agora, o único país com registros de populações constantemente expostas ao DiPeP

As gestantes foram monitoradas ao longo da gestação e, em todas as amostras, foram encontrados metabólitos do ftalato em questão, chamado de Diisopentil ftalato (DiPeP). Constatada a presença constante dessa substância, os pesquisadores testaram a tendência dela a desregular o sistema endócrino. Esse efeito é comum a todos os ftalatos, que são desprendidos no contato com plásticos maleáveis, cosméticos, materiais de limpeza e remédios. No estudo com ratos, porém, o DiPeP mostrou ter impacto mais grave do que a média dessa substâncias, reduzindo significativamente a produção de testosterona pelos testículos dos fetos masculinos.

Segundo o estudo, esse é um indicativo de que o contato com o DiPeP por grávidas pode prejudicar o desenvolvimento reprodutivo de meninos ainda durante a gravidez. Na dose mais baixa utilizada no estudo (de um total de três), a exposição ao DiPeP foi capaz de reduzir a produção de testosterona dos testículos do feto para 1/3 do verificado em grupos de controle. Na maior dose, a produção ficou próxima de zero. Os resultados foram comparados com exposições a outro ftalato mais comumente encontrado no organismo humano, o Di-n-butyl ftalato, que apresentou influência menos significativa na queda da produção de testosterona.

Desequilíbrio hormonal na gravidez ocasiona problemas em adultos

O estudo alerta para o risco de a exposição a esse ftalato durante a gestação de meninos ocasionar malformações genitais no feto e baixa contagem de espermatozoides na vida adulta — este último problema já havia sido apresentado em outro estudo do Departamento de Fisiologia, publicado em 2017. Foram esses os efeitos que, em altas doses, a exposição ao DiPeP provocou nos fetos de ratas grávidas.

“A exposição química durante a gestação é mais grave porque gera efeitos adversos permanentes, que influenciam no desenvolvimento do feto”, afirma o pesquisador Anderson Joel Martino Andrade, do Laboratório de Fisiologia Endócrina e Reprodutiva Animal (Labfera) da UFPR. “Os efeitos em indivíduos adultos são geralmente temporários, porque os ftalatos são eliminados do corpo pelo metabolismo. Mas também é preciso considerar que o fluxo dessas substâncias no organismo é constante, por causa da exposição frequente”.

Nos experimentos com cobaias realizados pelos cientistas, a exposição ao ftalato foi em doses maiores do que o verificado na exposição humana, a fim de viabilizar a investigação das consequências do contato. Mas os pesquisadores alertam que pessoas têm contato com produtos cotidianos que desprendem (DnBP)ftalatos — o que gera efeito “cumulativo” de difícil monitoramento.

Vidro e porcelana são alternativas para que grávidas reduzam contato com substâncias químicas

“A descoberta da exposição ao DiPeP no Brasil foi uma grande surpresa, porque, numa perspectiva mundial, consideramos esse ftalato irrelevante em termos de produção, uso e, por consequência, exposição [de humanos]”, avalia o pesquisador Holger Koch, da Ruhr University Bochum, que participou do estudo da UFPR. Ainda que o DiPeP motive poucos estudos, Koch explica que a presença dele seria identificável na busca por outros derivados com cadeia similar — foi o que ocorreu.

Os pesquisadores concluíram que o Brasil deve ter como fonte regular de DiPeP produtos muito consumidos no mercado doméstico, considerando a frequência dos metabólitos nas amostras e as dosagens, que fogem à regra dos estudos de biomonitoramento registrados no mundo. Koch observa que, em geral, as amostras de outros países mostraram raros sinais de DiPeP, e em concentrações baixíssimas.

Segundo o estudo, a fonte mais provável do DiPeP que entra em contato com a população são plásticos maleáveis feitos à base de um álcool que é subproduto da fermentação de açúcares durante a síntese de etanol — o álcool isoamílico. Como ftalatos são sintetizados a partir da mistura de álcool com ácido ftálico, soube-se de antemão que a fonte específica de DiPeP é um álcool. Além de se encaixar na fórmula que leva ao ftalato, álcool isoamílico em larga escala é característico da economia brasileira.

DiPeP é encontrado em plásticos maleáveis à base de álcool isoamílico

“Tendo em vista a estratégia nacional de substituir combustíveis fósseis pelo etanol de cana-de-açúcar, existe uma grande produção de álcool isoamílico, o que pode ter favorecido a produção de DiPeP para a indústria local de plastificantes”, afirma Martino Andrade. “O DiPeP possui potencial para ser utilizado como plastificante em produtos plásticos à base de PVC e como aditivo em outras aplicações industriais”.

Fonte provável do composto que chega à população são plásticos à base de um álcool que é subproduto do etanol

De acordo com os cientistas, o estudo aponta a necessidade de o Brasil discutir a necessidade de políticas de regulação industrial específicas, que espelhem as substâncias químicas com que a população convive no dia a dia. Os estudos também têm apontado a necessidade de o Brasil produzir mais estudos de biomonitoramento, assim como epidemiológicos e em modelos animais que demonstrem as relações entre exposições e efeitos adversos à saúde da população.

Parceira de pesquisas do Departamento de Fisiologia da UFPR, a professora Shanna Swan, do Mount Sinai Health System, em Nova York, investiga temas de fertilidade humana há 40 anos Foto: Roger Meissen/Universidade do Missouri/Divulgação
Parceira de pesquisas do Departamento de Fisiologia da UFPR, a professora Shanna Swan, do Mount Sinai Health System, em Nova York, investiga temas de fertilidade humana há 40 anos Foto: Roger Meissen/Universidade do Missouri/Divulgação

Problema é global, avalia cientista americana que é coautora do estudo

Parceira de pesquisas do Departamento de Fisiologia da UFPR, a professora Shanna Swan, do Mount Sinai Health System, em Nova York, investiga temas de fertilidade humana há 40 anos. Entre suas publicações mais importantes estão os resultados da mais ampla compilação de estudos sobre fertilidade masculina, que abrangeu cerca de 42 mil homens no mundo todo entre 1973 e 2011, e o registro do método por meio do qual é possível relacionar a exposição de fetos meninos a hormônios masculinos à fertilidade deles na vida adulta.Com base no que tem observado, é taxativa em dizer que a queda de fertilidade é um fator real e preocupante no mundo todo.

Distopias literárias estão em alta, e uma delas, “O Conto da Aia” [livro de Margaret Atwood lançado em 1985, série de TV desde 2017 pela Hulu], trata de uma crise de fertilidade e suas consequências [uma delas é a exploração da gravidez em nível econômico]. É uma perspectiva próxima da realidade?

“O Conto da Aia” reflete uma preocupação real. A taxa de gestações de aluguel tem aumentado paralelamente à diminuição da contagem de espermatozóides.

Quais as principais explicações para o declínio da qualidade de esperma no mundo todo?

Os declínios na qualidade do esperma são muito rápidos, de cerca de 1% ao ano, para serem o resultado de mudanças evolutivas. Eles refletem uma combinação de fatores ambientais, como [exposição a] produtos químicos e farmacêuticos, e de estilo de vida, por exemplo, tabagismo, estresse, obesidade e dieta. Tanto diretamente quanto pela influência de fatores ambientais na leitura genética, por exemplo, a epigenética [alterações genéticas motivadas por fatores externos ao organismo].

Como os ftalatos se inserem nesse contexto?

Avalia que há falhas em regulações estatais ou até desinformação generalizada? Os ftalatos são uma classe de substâncias de exposição onipresente, algumas das quais demonstraram alterar o desenvolvimento genital masculino quando o feto é exposto. Na maioria dos países, os ftalatos, como a maioria dos produtos químicos, não são regulamentados ou são mal regulamentados.

Existem lacunas científicas que impedem de entender melhor o fenômeno da queda de fertilidade? Como os pesquisadores brasileiros podem ajudar?

A maioria dos químicos comercializados não foi estudada. Um exemplo é o fato de recentemente a Universidade Federal do Paraná ter reportado a presença de ftalato antiandrogênico não identificado em amostras humanas antes. Como a qualidade do esperma está conectado à saúde do homem? Contagem reduzida de espermatozóides, motilidade, morfologia e aumento do dano ao DNA espermático estão todos ligados à infertilidade. Já a má qualidade do esperma está associada à dificuldade para concepção. Além disso, estudos recentes mostraram que homens inférteis e homens com baixa qualidade do sêmen têm expectativa de vida menor.

Qual é a base da metodologia em que é medida a distância entre os órgãos genitais e o ânus dos fetos de meninos para explicar a exposição a hormônios durante a gravidez?

Tive a sorte de poder examinar a distância anogenital [AGD ou períneo, localizada entre os genitais e o ânus] em uma população na qual colhi amostras de urina pré-natal e observei a concentração de ftalato na gravidez em relação à AGD. Este estudo teve inspiração em um conjunto de estudos toxicológicos que mostram que, em ratos expostos, no pré-natal, a ftalatos capazes de reduzir a testosterona, os filhotes machos desenvolveram a “síndrome do ftalato”. Procurei essa síndrome em bebês humanos e a encontrei.

Mulheres gestantes que participaram da primeira fase da pesquisa receberam orientações sobre o risco da exposição a ftalatos durante a gravidez. Foto: Free Photos/Pixabay
Mulheres gestantes que participaram da primeira fase da pesquisa receberam orientações sobre o risco da exposição a ftalatos durante a gravidez. Foto: Free Photos/Pixabay

PARA EVITAR ITENS QUE PODEM SER TÓXICOS, GESTANTES DEVEM SUBSTITUIR MATERIAIS

Uma das preocupações do grupo de pesquisadores da UFPR tem sido orientar as gestantes que participam dos estudos de biomonitoramento (que medem o impacto do ambiente sobre o organismo) sobre perigos nem sempre reconhecidos em objetos do cotidiano. Para mapear com mais precisão as fontes de exposição ao DiPeP, os pesquisadores da UFPR pretendem ampliar o estudo para um grupo maior de gestantes — cerca de 300, que começaram a ser recrutadas em março de 2019. A ideia é verificar quais os hábitos mais comuns entre as grávidas, em especial as que apresentarem maiores doses de exposição ao ftalato.

O pesquisador Anderson Martino Andrade conta que as grávidas que participaram da primeira fase da pesquisa receberam orientações sobre o risco da exposição a ftalatos durante a gravidez. A coleta das amostras ocorreu em 2015, entre gestantes acompanhadas em três unidades de saúde básica de Curitiba.

Principais conselhos: reduzir o consumo de bebidas e alimentos em latas ou embalagens plásticas (dar preferência a vidro ou porcelana e limpar a caixa d’água para poder usar a água filtrada da torneira), nunca aquecer comidas ou bebidas em recipientes plásticos e prestar atenção ao código de reciclagem do plástico

Os cientistas entregaram a elas um folder com recomendações quanto ao uso de plásticos, cosméticos, remédios e alimentos. Entre as orientações estão reduzir o consumo de bebidas e alimentos em latas ou embalagens plásticas (dar preferência a vidro ou porcelana e limpar a caixa d’água para poder usar a água filtrada da torneira), nunca aquecer comidas ou bebidas em recipientes plásticos e prestar atenção ao código de reciclagem do plástico, que traz dicas sobre a composição dele.

“O código no símbolo de reciclagem traz uma escala de 1 a 7. Os plásticos 1, 2, 4 e 5 são os mais inertes. Os 3, 6 e 7, porém, devem ser evitados porque liberam agentes que podem ser tóxicos”, explica Martino Andrade. O pesquisador alerta que o fato de o plástico ser livre de bisfenol A (o BPA), proibido pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) em 2012, não garante segurança. “O selo de ‘BPA free’ não significa que o plástico não expõe o consumidor a ftalatos”.

É necessário também que grávidas evitem agrotóxicos, consumindo alimentos orgânicos na medida do possível, além de consultar o médico antes de usar qualquer medicamento. Também não é recomendável o uso de perfumes (ou produtos com fragrância, como sabonetes e hidratantes), esmaltes e maquiagem. Uma opção é escolher produtos de higiene e cosméticos que tenham poucos produtos na composição e tragam aviso sobre não conterem parabenos nem ftalatos.

📖 Publicado originalmente na edição 5, ano 3, da Revista Ciência UFPR (2019).
Tags:

Comentário de

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *