Reproduzir células animais em laboratório até se tornarem tecido, depois quilos de carne, para daí vendê-la no atacado e no varejo até que vire bife na mesa. Em um país como o Brasil, que produz 15% da carne de frango do mundo, 16% da bovina e 3% da suína, a consolidação desse processo, que está na contramão do que se conhece sobre pecuária, poderia trazer mudanças profundas para a forma como as pessoas veem a sua alimentação e os próprios animais. Essas constatações estão em uma dissertação de mestrado defendida em maio no Programa de Pós-graduação em Ciências Veterinárias da Universidade Federal do Paraná (UFPR).

Há em todo mundo por volta de 60 startups trabalhando em várias vertentes do tema e se estima que os primeiros produtos com carne celular sejam comercializados ao público em menos de cinco anos. Apesar disso, o Brasil ainda se mantém conservador em relação à inclusão da pesquisa no país. Em “Carne celular: percepção profissional e consequências para o bem-estar animal”, a pesquisadora Marina Heidemann analisou impactos e buscou soluções para eventuais obstáculos que verificou à popularização da carne de laboratório.

Para essas investigações, o trabalho partiu de uma projeção “conservadora”, proposta por uma consultoria de mercado em 2019, que projeta uma queda no consumo de carne convencional para 40% do mercado, após aumento da procura pela carne celular e pelas carnes à base de plantas.

Se disseminada, a carne de laboratório poderia mudar percepção utilitarista sobre a vida dos animais, conclui pesquisa

“Com a possível ampliação da comercialização da carne celular, prevemos redução no sofrimento de animais de produção devido à diminuição do número de animais envolvidos na produção de alimentos. E parece provável que haverá menos aceitação da necessidade de sofrimento dos animais nos sistemas produtivos quando a produção de carne for desacoplada da criação e abate de animais, com a redução de barreiras relevantes à proteção dos animais”, afirma Marina, que foi orientada pelos professores Carla Molento, do Laboratório de Bem-estar Animal da UFPR, e Germano Reis, do Programa de Pós-Graduação em Administração.

Carne artificial ou natural

Cultivar células para produzir carne é uma inovação que pode mudar a cadeia da carne, especialmente o setor de produção animal. A técnica consiste em extrair células de tecido muscular de um animal e promover a proliferação e diferenciação in vitro das células em carne, em meio de cultura apropriado.

Apesar de parecer algo saído da ficção científica, basicamente é uma nova aplicação de métodos milenares de proliferação de células, utilizados no processo de produção de iogurtes, queijos e cervejas. O Departamento de Zootecnia da UFPR passou a abordar a carne celular no segundo semestre de 2020, com a disciplina Zootecnia Celular.

Através de questionários, Marina constatou que a falta de conhecimento sobre o tema e a associação com a artificialidade foram destacados como pontos negativos da carne celular. Dessa forma, as estratégias propostas para reduzir essa resistência foram o ensino de ponta e a motivação para especialistas em produção animal se engajarem e contribuírem para a nova cadeia.

Além disso, como lembra Carla Molento, a ideia de artificialidade é subjetiva, uma vez que mesmo a produção de carne nos moldes atuais não é “natural”, tendo alto grau de alteração genética dos animais e controles rígidos de todas as etapas de vida animal.

Adaptações do setor econômico

Do ponto de vista econômico, o professor Germano Reis ressalta que, sendo o Brasil um dos maiores exportadores de carne do mundo, ficar fora de uma inovação como essa pode causar prejuízos à economia nacional. A tendência, portanto, é que as grandes empresas da área se engajem nos projetos existentes ou criem os seus próprios.

“Existem várias possibilidades econômicas em torno do produto, desde as mais convencionais até as mais inusitadas. Em Israel, uma empresa está elaborando modelos de franquias para produção de carne celular em pequena escala, na forma de açougues de bairro. Esse é só um exemplo”, conta ele.

Até agora, o sucesso obtido com a carne celular nas pesquisas levou à produção de amostras pequenas, que lembram carne moída

A perspectiva de ter a carne celular difundida no mundo, com preços competitivos como é esperado, leva à discussão de aspectos éticos. O abate do animal como aceitável para a alimentação humana pode ser um tema submetido a uma reanálise não apenas comportamental, mas jurídica.

“Ao se ter a possibilidade de consumir a carne sem abater o animal, as pessoas talvez visualizem os animais com outros olhos. Ainda, poderemos finalmente esperar uma legislação que considere os animais não como coisas, mas como sujeitos de direito, inclusive com direito à vida”, analisa Carla.

Desafio é reproduzir “mix” de tecidos

Até agora, o sucesso obtido com a carne celular nas pesquisas levou à produção de amostras pequenas, que lembram carne moída. Produzido a partir de células de tecido muscular, o primeiro hambúrguer celular foi apresentado em 2013. O resultado foi descrito como um ­produto meio seco e com paladar estranho, explica a pesquisadora Marina Heidemann.

“Quando consumimos uma carne, ela nunca é apenas um só tecido. Além da fibra muscular, tem gordura, ossos, cartilagem, fluídos. Juntando tudo isso temos o resultado que conhecemos no paladar. A carne celular tende a evoluir para isso, produzindo a partir de células variadas e então criando um mix”, diz.

Entre as startups que estão na pesquisa ­atualmente, muitas delas no Vale do Silício americano, há produções com frango, peixe e carne bovina. O desafio é alimentar as células e conseguir a proliferação rápida. Segundo Marina, “existe uma perspectiva de que os primeiros nuggets de frango celular cheguem ao mercado gourmet da Ásia nos próximos dois anos. Não ­sabemos, porém, se a pandemia pode atrasar esse lançamento”.

📖 Publicado originalmente na edição 6, ano 4, da Revista Ciência UFPR (2020).
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