RNA não codificante ajuda a entender doenças desafiadoras, revela estudo sobre uso de dados em medicina Pesquisadores indicam que estudos de medicina que usam grandes bancos de dados perdem informações relevantes ao excluir dos sistemas computacionais partes do genoma humano que não atuam na produção de proteínas. Pré-eclâmpsia, artrite reumatoide e Doença de Crohn estão entre as doenças que poderiam ter fatores esclarecidos
Em artigo no periódico 𝑃𝑟𝑜𝑐𝑒𝑒𝑑𝑖𝑛𝑔𝑠 𝑜𝑓 𝑡ℎ𝑒 𝑁𝑎𝑡𝑖𝑜𝑛𝑎𝑙 𝐴𝑐𝑎𝑑𝑒𝑚𝑦 𝑜𝑓 𝑆𝑐𝑖𝑒𝑛𝑐𝑒𝑠 (𝑃𝑁𝐴𝑆), dupla de cientistas do Brasil e da Hungria registrou ganhos em testes com a inclusão do RNA não codificante em ferramentas de diagnóstico e tratamento. Foto: Ian Glover/Flickr

Talvez você nunca tenha ouvido falar em medicina em rede (em inglês, network medicine), mas provavelmente já usou algum tratamento ou medicamento criado com base nessa tecnologia. Esse campo de pesquisa, que está em expansão, reúne conjuntos de dados e evidências em sistemas computacionais para compreender melhor como as doenças funcionam. Isso inclui dados genéticos, que são estudados nesses sistemas de forma complexa.

Afinal, a ideia por trás da medicina em rede é que as doenças não são causadas por falhas em um único gene ou molécula, mas são o resultado de perturbações em vários genes, todos conectados por redes intrincadas de interações biológicas.

A questão é que a medicina em rede pode estar perdendo informações importantes ao dispensar dados de elementos do genoma humano que não atuam na produção de proteínas, sendo por isso chamados de “não codificantes” ou “não traduzidos”. A conclusão está no artigo publicado no periódico Proceedings of the National Academy of Sciences (PNAS) pelos pesquisadores Deisy Morselli Gysi, professora do Departamento de Estatística da Universidade Federal do Paraná (UFPR), e Albert-László Barabási, da Northeastern University (Estados Unidos).

Infográfico: "“VIZINHANÇA” GENÉTICA AJUDA A EXPLICAR DOENÇAS". "É por meio de um “mapa” complexo do que ocorre no interior das células que a bioinformática consegue projetar como doenças funcionam. Veja neste infográfico como esse mapa é construído e por que o RNA não codificante tem se mostrado uma fonte importante de informações". Em www.ciencia.ufpr.br.Por não serem responsáveis diretamente pela produção de proteínas, que é uma das formas de expressão dos genomas (conjunto de genes) nas características do ser vivo, os RNAs não codificantes (ncRNAs) foram tradicionalmente menos estudados pela ciência, portanto, menos compreendidos. Consequentemente, são menos considerados pela medicina. O resultado é que, por muitos anos, a medicina de redes se concentrou apenas nos genes capazes de codificar proteínas.

Esse cenário está em mudança faz tempo, porque, pensando bem, cerca de 97% do genoma humano é composto por RNAs não codificantes. Mais do que isso, esses elementos — existem vários tipos de ncRNA — são cada vez mais associados por cientistas ao desenvolvimento de doenças, mesmo que indiretamente. Isso porque os ncRNAs têm o papel de regular processos biológicos importantes, apesar de não estarem diretamente envolvidos neles.

“Podemos pensar em um exemplo. O miRNA124 é um microRNA [tipo de ncRNA] importante para a neurogenese, que é a formação de neurônios. Quando esse RNA não é expresso, isto é, quando ele é ‘deletado’, diversos outros miRNAs passam a funcionar de maneira semelhante para cumprir seu papel. Porém, se o ‘deletamos’ junto com um dos genes que ele regula, o ZNF787, não temos a formação de neurônios”, explica Deisy.

“Deletar”, no caso, é um termo técnico para alguma incapacitação do gene, seja virtual ou real. Genes podem ser “deletados” durante os testes, para que a pesquisa possa entender melhor suas funções, e, biologicamente, quando ocorrem as mutações que criam as chamadas variações genéticas.

Sistemas medem evolução e tratamento de doenças, assim como enfermidades relacionadas

Assim, para testar a importância do RNA não codificante para a medicina em rede, os cientistas criaram dois sistemas computacionais que foram comparados, um tradicional, com foco apenas no RNA codificante, e outro que contava também com a presença do ncRNA.

Durante o estudo foram realizados testes com dados para cerca de 800 doenças, das quais três foram destacadas no trabalho.

Duas dessas enfermidades, a artrite reumatoide e a Doença de Crohn, são autoimunes, ou seja, disfunções no sistema imunológico que fazem com que ele passe a agredir o próprio organismo. Também são crônicas, sem cura. A artrite reumatoide, que causa inflamações nas articulações, atinge de 0,5% a 1,5% da população, principalmente mulheres. Já para a Doença de Crohn, uma síndrome (conjunto de problemas) que compromete o intestino, são registrados 9,57 novos casos a cada 100 mil habitantes no Brasil.

Interactoma (grafo) resultante das avaliações do estudo: em amarelo estão os genes associados a algumas doenças. Em azul, genes não associados a nenhuma doença. O tamanho de cada nó representa a quantidade de interações de um gene. Ilustração: Deisy Gysi/UFPR

A terceira doença investigada é a pré-eclâmpsia, também chamada de Síndrome Hipertensiva da Gravidez, uma complicação que leva ao aumento da pressão arterial em pessoas grávidas nas semanas finais de gestação. Em muitos casos é fatal.

A expectativa sobre as avaliações da medicina em rede é que elas consigam projetar situações de interesse médico com precisão e contexto. Por exemplo, avaliar como a doença pode avançar ou retroceder — a chamada “evolução”. Ou quais são os melhores tratamentos para determinado paciente.

Outro aspecto chave é a compreensão de como doenças se relacionam entre si no mesmo organismo. Uma doença pode agravar a evolução de outra — que é o que chamamos de comorbidade — ou uma doença pode gerar outra enfermidade.

Segundo os pesquisadores, a presença do ncRNA na medicina em rede mostrou sua importância exatamente nesse aspecto.

A leitura desse fator é possível devido a uma regra básica: doenças semelhantes costumam estar relacionadas ao mesmo agrupamento de genes. É por causa disso que o mapa formado por interações no interior das células, o interactoma, é uma peça essencial da medicina em rede. É a partir do que se sabe sobre as interações das macromoléculas das células que o sistema consegue entender o que ocorre em cada conjunto de gentes, ou seja, em cada “vizinhança”.

“Um interactoma é um grafo que representa as interações entre moléculas biológicas. Cada ponto é um nó e representa uma molécula, ou seja, um gene ou seu produto. Quanto mais interações, maior é esse nó. Já uma linha entre dois nós representa que dois genes interagem”, explica Deisy.

Ausência de RNA não codificante impede leitura de contextos para cada doença

Deisy compara o conhecimento que os interactomas fornecem sobre doenças com o conhecimento que os mapas cartográficos informam sobre as cidades.

“Podemos pensar o interactoma como um mapa de uma cidade. Casas e estabelecimentos comerciais são os nossos genes. Comércios que vendem coisas parecidas estão próximos uns aos outros e fazem os nossos bairros terem certas características. Da mesma maneira, nossos genes se organizam nessa rede, o interactoma, de acordo com suas funções”, compara.

No interactoma, genes, proteínas e outras moléculas seriam as construções do mapa. Os genes se agrupam como os bairros se formam: genes associados às mesmas doenças estão na mesma vizinhança. Essa vizinhança com marcas próprias recebe, no interactoma, o nome de “módulo” da doença.

Genes associados à artrite, por exemplo, estão mais próximos uns dos outros do que em relação a outros genes que não estão ligados à doença.

Sendo assim, a análise do contexto desse conjunto, do módulo inteiro, que abrange também o ncRNA, se mostrou capaz de aumentar muito o entendimento sobre as doenças. “Quando não incluímos os ncRNAs para identificar os módulos das doenças perdemos muita informação”, afirma Deisy.

No estudo, a pré-eclâmpsia se mostrou um caso drástico, em que a perda de contexto não permite entender quase nada dos processos biológicos da doença. Apesar de algumas condições de risco serem conhecidas, não se sabe o que causa essa complicação, que nem sempre acarreta sintomas.

“Quando focamos na pré-eclâmpsia apenas pelo ponto de vista dos genes codificadores, pouco se sabe sobre a doença, e pior, não somos capazes de definir uma vizinhança para ela. Em resumo, sem os ncRNAs não sabemos como a doença pode se manifestar, pouco se sabe sobre sua biologia e também não conseguimos definir quais outras doenças estão na sua vizinhança”, avalia Deisy.

Já a artrite reumatóide tem suas informações aprimoradas com a inclusão de ncRNAs nos sistemas de projeção.

“Pelos RNAs codificadores, a única doença que está próxima da artrite reumatoide é a Doença de Chron. Porém sabemos que artrite reumatóide apresenta diversas comorbidades, que só aparecem quando incluímos os ncRNAs no interactoma”.

Condições genéticas também ajudam a explicar endemias brasileiras

A medicina em rede tem ganhado espaço na chamada medicina personalizada ou medicina de precisão, um campo ainda elitizado que direciona as escolhas médicas para as necessidades particulares do paciente, mas tem potencial para ajudar na saúde pública brasileira.

É uma área de pesquisa que ajuda a agilizar o desenvolvimento de medicamentos para doenças novas, como foi a Covid-19.

As endemias, que são as doenças recorrentes que sempre preocupam regiões do país; as enfermidades negligenciadas, que são as endemias de países tropicais; além das raras, que afetam percentual baixíssimo da população, também poderiam ser combatidas com auxílio da medicina em rede.

Entre os planos de pesquisa de Deisy Gysi está usar a medicina em rede para entender melhor as arboviroses, que são as doenças causadas por vírus e transmitidas por mosquitos. O grupo inclui dengue, zika, chicungunha e febre amarela, que serão o foco da pesquisa.

“Nenhuma dessas doenças apresenta cura e muito menos tratamento adequado. A proposta do projeto é compreender as bases genéticas e os mecanismos pelos quais a doença se manifesta para propor tratamentos, principalmente utilizando medicamentos já aprovados”, diz.

Essa seria uma nova fase em relação aos estudos que a pesquisadora desenvolveu nos Estados Unidos, onde atuou na Northeastern University e na Harvard Medical School, em Boston.

➕ Leia detalhes no artigo “Non-Coding RNAs Improve the Predictive Power of Network Medicine“, publicado no periódico Proceedings of the National Academy of Sciences (PNAS).
Edição: Camille Bropp
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