“Enquanto houver viventes nesta lida, há de viver meu verso e te dar vida”. As palavras foram escritas por William Shakespeare em um de seus 154 sonetos na Inglaterra de 1593. A promessa se cumpre até hoje. Os versos do autor, poeta e dramaturgo inglês continuam vivos 403 anos após sua morte, em 1616. O amor de Romeu e Julieta, a vingança de Hamlet, as perdas de Rei Lear e as tramas de outros personagens das 38 peças shakespearianas ecoam no teatro, no cinema, na literatura e na memória de pessoas ao redor do mundo.

Apesar de ter publicado suas obras no final do século 16 e início do 17, foi no século 18 que o primeiro filho sobrevivente de John e Mary Shakespeare se tornou o que conhecemos hoje – o Bardo cujo legado transcende línguas. É o que mostra uma pesquisa em torno da obra de William Shakespeare desenvolvida pela professora Liana de Camargo Leão, do Departamento de Letras Estrangeiras Modernas (Delem) da Universidade Federal do Paraná (UFPR).

Canal no YouTube disponibiliza dezenas de vídeos com trechos das obras interpretados por atores como Marieta Severo, Fernanda Montenegro e Diogo Vilela

Os resultados serão disponibilizadas no projeto Shakespeare Digital, que contém outros materiais e vídeos gravados por artistas e professores da UFPR e de outras instituições de ensino nacionais e internacionais. A proposta também é escrever um livro sobre Shakespeare no século 18, fazendo um recorte para o olhar brasileiro.

Os vídeos hoje estão disponíveis em um canal no YouTube com mais de 10 mil inscritos. O canal traz três playlists principais: “atores interpretam”, com clipes de interpretações de obras; “professores explicam”, com estudiosos de literatura inglesa no Brasil e no exterior; e “extras”, que inclui material divulgado pela imprensa e eventos, entre outras formas de conteúdo.

O objetivo da pesquisa é trazer ao conhecimento do público a importância do século 18 no mundo da edição, da crítica literária, do teatro e da popularização de Shakespeare como um nome maior da literatura de língua inglesa. Nesse sentido, é traçado o contexto cultural e social em que isso ocorre.

A pesquisadora Liana explica que os brasileiros sabem em geral que Shakespeare é um grande nome, mas não percebem que houve uma época em que não era, que ele tinha sumido do cenário. “É realmente no século 18 que ele cresce. É quando Shakespeare se torna Shakespeare, o momento de canonização do autor. Então acho que é importante conhecer isso, porque você vai entender todos os outros movimentos que vêm depois”, acrescenta.

As adaptações teatrais contemporâneas de Shakespeare são exemplo disso. “Quando Gustavo Gasparani adapta Shakespeare para a cultura musical da escola de samba, com Otelo da Mangueira, ele está fazendo algo que os ingleses já propunham no século 18, tornando Shakespeare seu contemporâneo”, pontua Liana, que pesquisa Shakespeare há 20 anos.

“Trazer ao leitor brasileiro essa história da canonização de Shakespeare é fundamental para se compreender tanto as obras propriamente quanto como para avaliar as montagens teatrais brasileiras”  

Liana Leão, professora de literatura inglesa na UFPR e coordenadora do Shakeaspeare Digital

A necessidade de seguir o texto shakespeariano ao pé da letra é algo que surge apenas no final do século 18 e que se consolida ao longo dos séculos 19 e 20. “Desse modo, trazer ao leitor brasileiro essa história da canonização de Shakespeare é fundamental para se compreender tanto as obras propriamente quanto como avaliar as montagens teatrais brasileiras”, avalia a pesquisadora.

Para Marlene Soares dos Santos, professora emérita da Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), a importância das pesquisas brasileiras reside no fato de ser o olhar diferenciado com que cada país, com a sua história e a sua arte, contempla a obra shakespeariana. Ela explica que toda pesquisa deve ter por objetivo uma área ainda não ou pouco estudada e que a pesquisa da professora Liana não é dife­rente.

“Pode-­se acrescentar que, em geral, alguns pesquisadores se debruçam ou sobre o texto teatral ou sobre o teatro shakespeariano, enquanto a pesquisa da professora Liana se concentra na importância dos dois ao mesmo tempo e no mesmo período”, afirma. Marlene ainda ressalta a importância do diálogo entre as universidades. “Infelizmente poucas universidades brasileiras desenvolvem pesquisas sobre Shakespeare e o diálogo não tem a abrangência que poderia/deveria ter”.

A pesquisa começou a ser desenvolvida em novembro de 2017 e deve seguir até 2020. Para chegar aos resultados, estão sendo analisadas edições do século 18, além de publicações em jornais e material relativo ao mundo do teatro e como as peças chegavam ao palco. Entre as edições estudadas destaca-­se a de Nicholas Rowe, de 1709, que escreve a primeira nota biográfica sobre Shakespeare, e a de Samuel Johnson, de 1765. Liana examina os princípios gerais de organização, os prefácios, os tipos de anotações e notas no texto, e quais eram as discussões. Para isso, ela foi duas vezes ao The Shakespeare Institute, na Inglaterra, no ano passado.

Da pesquisa acadêmica ao público de teatro

Mesmo quem ainda não assistiu ou leu Shakespeare tem a oportunidade de descobrir o autor com acesso gratuito a materiais no site Shakespeare Digital Brasil (www. shakespearedigitalbrasil.com.br), organizado pela professora Liana. O site disponibiliza 69 vídeos com trechos das peças shakespearianas interpretados por atores como Fernanda Montenegro, Miguel Falabella, Thiago Lacerda, Maitê Proença, Vera Holtz, Marcello Antony, Diogo Vilela, Cláudio Fontana, Gustavo Gasparani, Eduardo Semerjian, Charles Fricks e Veronica Reis. No YouTube, em novembro deste ano, os 92 vídeos do canal Shakespeare Brasil – UFPR somavam um total de cerca de 493 mil visualizações.

Nos vídeos, professores e dire­tores de instituições nacionais e internacionais também comentam a obra de Shakespeare e o diálogo com outros escritores, e estudantes realizam trabalhos sobre o autor. As gravações foram feitas em parceria com a UFPR TV. O público também pode acessar um livro, artigos e trechos de livros sobre Shakespeare, além de podcasts e outros materiais sobre o autor. O site organizado pela professora da UFPR tem parceria com o projeto Global Shakespeares, portal do Massachusetts Institute of Technology (MIT), dos Estados Unidos.

Liana conta que durante as pes­quisas sobre Shakespeare na UFPR sentiu necessidade de extrapolar o âmbito acadêmico e levar o resultado para a sociedade. “Eu desenvolvo a pesquisa e depois faço uma espécie de tradução numa linguagem sem jargão acadêmico para a comunidade. Quero que a pesquisa chegue de alguma forma para o público em geral”, diz.

Para a professora Patrícia da Silva Cardoso, do Departamento de Literatura e Linguística da UFPR, o site Shakespeare Brasil Digital possibilita a democratização do acesso de um público não especializado, não­acadêmico, ao autor e a uma reflexão de alta qualidade. “Trata­se de um projeto de grande alcance em pelo menos três frentes: viabilizar o acesso de um vasto público ao universo shakespeariano, promover a integração do Brasil no circui to shakespeariano internacional e levar a pesquisa altamente qualificada, como a produzida no meio acadêmico, a um público distante dos bancos universitários”, considera Patrícia, que também participou de gravações para o site.

Estudo embasou peças de teatro que ficaram em cartaz no Brasil inteiro

Do outro lado, no mundo teatral, o ator Gustavo Gasparani concorda com o acesso a Shakespeare possibilitado pelo projeto. “Acho que a discussão é acadêmica com vários países, mas chega no artístico, cultural e social, que têm acesso a esse conhecimento. Os espetáculos estão sendo atravessados por esse estudo todo, clareando a discussão a respeito das peças”, diz.
De acordo com a professora Liana, Shakespeare escreveu para um público amplo a partir da observação do comportamento humano, ignorando a questão das classes sociais. Assim como Shakespeare, ela pretende levar a obra ao alcance de todos, sem elitizar o autor, confirmando que: “ele escreveu uma obra que permaneceu no tempo”.

Gustavo Gasparani já interpretou e escreveu peças adaptadas de Shakespeare em três trabalhos principais que envolvem os personagens Otelo, Iago, Ricardo III e Romeu e Julieta. Para o ator, diretor e produtor do Rio de Janeiro, a pesquisa clareia a obra de Shakespeare e facilita a compreensão para o público leigo, que pode desfrutar melhor a obra. “Para os artistas, esse lugar teórico auxilia no processo criativo, para montarmos melhor os espetáculos e desfrutarmos de maneira mais aprofundada. Com essa pesquisa [da professora Liana leão], absorvemos melhor a ideia do autor”, diz.

O ator acredita que as peças de Shakespeare continuam sendo tão montadas no teatro porque trazem conceitos contemporâneos. “Ele fala na época dele, mas todos os personagens têm os mesmos anseios que temos hoje, 400 anos depois. Shakespeare traz um aprofundamento na própria existência humana e fala, independentemente da época, da falta de limite entre o bem e o mal”. É no século 18 que são publica­das as primeiras edições modernas de Shakespeare, com tamanhos menores. De acordo com Liana, a edição de Nicholas Rowe, de 1709, é a primeira que cabe na mão do leitor, o que faz com que Shakespeare passe a ser lido também pelo público. “É o início do mundo moderno e a valorização de Shakespeare está no centro desse processo”, conta Liana.

Entre os dramaturgos, William Shakespeare é o mais encenado na Inglaterra do século 18. “Suas peças divertem e alimentam a arte da conversação. São debatidas nos salões mais exclusivos e também nas páginas dos jornais e revistas”, relata Liana. Shakespeare é também o autor mais editado do século. Um editor reconhecido na época foi Samuel Johnson, que escreveu o primeiro dicionário de língua inglesa e preparou as edições das obras completas de Shakespeare.

Outro momento importante é o “Jubileu” que comemora os 200 anos do nascimento do autor em sua cidade natal, Stratford­upon­Avon. Peregrinação, inauguração de estátua, bailes e desfiles de personagens são organizados pelo ator David Garrick. Ele divulga Shakespeare e a si mesmo, as duas figuras se sobrepondo, como indica um comentário do século 18 coletado pela professora: “Shakespeare e Garrick são filhos favoritos da natureza, irmãos gêmeos. Shakespeare nasceu poeta, Garrick, ator. O primeiro, para escrever, Garrick, para ilustrar o que Shakespeare escreveu”. Garrick torna a profissão de ator respeitável, elevando­a ao patamar de arte liberal. Liana ressalta que Garrick e Johnson foram os maiores responsáveis pela divulgação e canonização de Shakespeare. “Um no mundo do teatro e das comemorações populares, e outro no das edições e dos comentários críticos”.

Por Chirlei Kohls.
📖 Publicado originalmente na edição 5, ano 3, da Revista Ciência UFPR (2019).
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