Autor de livros sobre teatro, Torres Neto cita obras de Henrik Ibsen a Paulo Santoro para indicar dramaturgia que faz uso de temas científicos. Foto: Theo Doré/Acervo Pessoal

Na primeira pergunta desta entrevista, sobre qual seria a relação entre ciência e teatro, Walter Lima Torres Neto nos lembra do teor polissêmico da palavra “teatro”. Estamos falando dos prédios onde ocorrem espetáculos ou da prática social? Ou ainda de teoria, de dramaturgia, de direção, de crítica, de arquitetura, de estética? Todo esse conjunto de técnica e conhecimento faz parte de uma bagagem que a Humanidade começou a juntar desde as primeiras danças primitivas criadas para representar mitos, ainda na Pré-História.

De qualquer forma, teatro em quase todos os seus sentidos tem relação com ciência, afirma o professor titular do Departamento de Letras Estrangeiras Modernas (Delem) da Universidade Federal do Paraná (UFPR) — onde leciona estudos teatrais, especialmente dramaturgia francesa. É possível representar essa ligação pelas inspirações de personagens e histórias na dramaturgia ou pela tecnologia com a qual hoje se recria o gorila gigante de King Kong como marionete computadorizado em um palco da Broadway.

Mas, acima disso, ciência e teatro têm conexão em seus papéis de forma de ver o mundo. “Ciência e teatro formulam, cada um à sua maneira, modos de ver, descrever, analisar e interpretar tanto os fenômenos da natureza, quanto os fenômenos humanos”, compara Torres Neto. Formado em artes cênicas com habilitação em interpretação e direção teatral, o professor é autor e organizador de diversas obras sobre teatro. Nesta entrevista, ele fala sobre esses estudos, dá indicações de peças de teatro com temas científicos e fala sobre cultura de palco.

Torres Neto faz sua conferência nesta terça-feira (25), das 9h30 às 11 horas, no Anfiteatro 13 do Setor Ciências Biológicas, localizado no Centro Politécnico da UFPR, em Curitiba (confira a programação científica do evento aqui).

Começando pelo começo: você falará sobre o uso do teatro em educação científica ou sobre o teatro como objeto científico?


Walter Torres Neto | Nenhuma das duas alternativas. Contextualizando melhor sua indagação, eu diria que o teatro pode ser sim um meio associado à educação para ciência. Já sobre o teatro como um objeto a ser estudado, igualmente sim. Muitas disciplinas elegem o teatro como um objeto de estudos por conta das diversas ramificações de questões e temas associados à atividade teatral. Disciplinas como Administração, Arquitetura, Engenharia, Economia, Geografia, Antropologia, História, Sociologia, Direito entre outras podem se dedicar ao estudo de aspectos associados ao teatro.

GALERIA | Cenas de quando teatro e ciência se encontram
O marionete computadorizado de seis metros de altura do musical australiano Kong, que estreou na Broadway em 2018.
A Vida de Galileu, de Brecht, se baseia na história do processo movido pela Igreja contra o naturalista italiano no século XVII. Na foto, o ator alemão Wolfgang Heinz interpreta Galileu.
O ator Marcello Santos, do curitibano Teatro de Sombras Karagozwk, interpreta Santos-Dumont na peça Alberto, o menino que queria voar.
O ator Carlos Palma em cena na peça A Dança do Universo, baseada no livro do físico Marcelo Gleiser, em 2014.
A atriz Maria Manoella e o ator Felipe Ramos na montagem de O Teste de Turing, de Paulo Santoro, em 2016. A peça apresenta uma situação em que três especialistas são chamados a aplicar o teste criado pelo cientista em uma máquina inteligente.
Cena de O Universo está vivo como um animal, dirigida por Nadja Naira, que se baseia na vida do inventor Nikola Tesla.
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O marionete computadorizado de seis metros de altura do musical australiano Kong, que estreou na Broadway em 2018.
A Vida de Galileu, de Brecht, se baseia na história do processo movido pela Igreja contra o naturalista italiano no século XVII. Na foto, o ator alemão Wolfgang Heinz interpreta Galileu.
O ator Marcello Santos, do curitibano Teatro de Sombras Karagozwk, interpreta Santos-Dumont na peça Alberto, o menino que queria voar.
O ator Carlos Palma em cena na peça A Dança do Universo, baseada no livro do físico Marcelo Gleiser, em 2014.
A atriz Maria Manoella e o ator Felipe Ramos na montagem de O Teste de Turing, de Paulo Santoro, em 2016. A peça apresenta uma situação em que três especialistas são chamados a aplicar o teste criado pelo cientista em uma máquina inteligente.
Cena de O Universo está vivo como um animal, dirigida por Nadja Naira, que se baseia na vida do inventor Nikola Tesla.
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Resta saber o que estamos querendo dizer quando falamos “teatro”. Qual o nosso foco? Qual o nosso recorte? Qual a nossa metodologia? O que queremos saber ao estudar o teatro? E sobretudo, qual a nossa intenção como pesquisador?

Em linhas gerais, podemos afirmar que o teatro é uma prática social coletiva condicionada por um imaginário comum, que dá coesão a uma determinada sociedade, numa relação entre agentes criativos e uma plateia, um auditório com seus espectadores.

Mas também podemos dizer que — “aquele prédio ali é um teatro”, isto é, o edifício teatral. Ou ainda podemos dizer que — “hoje à noite vamos ao teatro”, mas de fato o que queremos dizer é que vamos assistir a um espetáculo.

Portanto, quando falamos “teatro” é necessária uma definição, pois existem formações específicas para as artes cênicas: teoria do teatro, direção teatral, interpretação (atuação), cenografia, figurino (indumentária), estética teatral, dramaturgia… Isso pra não entrarmos na dança, na ópera, no circo e na arte da performance.

Quanto à conferência que farei, nela eu procuro chamar atenção para as relações entre Ciência e Arte, com particular destaque para os pontos de contato entre tecnologia e teatro. Tanto do ponto de vista da aplicabilidade de uma tecnologia aos edifícios teatrais ao longo do tempo; quanto acerca da apropriação, pela dramaturgia, de temas, personagens, situações e questões atinentes à ciência de um modo particular.

O que o teatro tem a ver com a ciência?


WTN | Essa relação remonta à própria origem do teatro, cujo prefixo em grego é o mesmo de teoria, ver, assistir, contemplar, examinar.

Ciência e teatro formulam, cada um à sua maneira, modos de ver, descrever, analisar e interpretar tanto os fenômenos da natureza, quanto os fenômenos humanos. Técnica e tecnologia servem ao desenvolvimento do teatro, e o teatro serve desde algum tempo como local de promoção de uma narrativa para debater os conhecimentos e temas científicos da atualidade.

Esses dois modos de apreender o mundo possuem mais afinidades do que podemos imaginar.

Apesar de cada área produzir um discurso específico, pode-se verificar essa afinidade, quando lemos textos teatrais como por exemplo, Um inimigo do povo de [Henrik] Ibsen, A Vida de Galileu de [Bertolt] Brecht ou Os Físicos de [Friedrich] Dürrenmatt.

Em uma entrevista concedida em 2005, o diretor Carlos Palma, do projeto “Arte e Ciência no Palco”, comentou que havia “dificuldades enfrentadas ao trabalhar temas científicos em um país onde não há dramaturgia disponível sobre o assunto”. Continua uma situação parecida ou houve avanços?


WTN | Carlos Palma é um pioneiro nessa área. Ele e o seu grupo fazem um esforço incrível para trazer à cena teatral um conteúdo científico relevante e que promova o debate entre arte e ciência. Ele, à frente do projeto “Arte e Ciência no palco”, faz um trabalho dos mais importantes para a difusão de aspectos vários atinentes à ciência. Mas sobretudo é importante dizer que ele faz um bom teatro ou um teatro de qualidade. Tive a oportunidade de assistir Einsten, Copenhagem, Da Vinci, Pintando o Sete… São espetáculos impecáveis do ponto de vista da linguagem teatral.

De fato, o Carlos Palma é mais ator e diretor e é verdade também que a nossa dramaturgia contemporânea não tem se debruçado com a mesma intensidade em questões relativas à ciência porque vislumbra contemplar outras questões mais emergenciais, ou porque, talvez siga determinados modismos que acabam sendo importados.

Mas, indiscutivelmente, temos muitos jovens autores que, se forem incentivados, certamente voltariam seus olhares para temas associados à ciência e à inovação tecnológica.

Apesar de não ser um autor estreante, o Paulo Santoro escreveu O Teste de Turing, recebendo em 2015 o prêmio do Festival de Pequenos Formatos Cênicos promovido pela Secretaria de Cultura de São Paulo, sendo o texto editado pela editora do Centro Cultural São Paulo.

Recentemente, pude assistir aqui em Curitiba, acho que foi ano passado [em setembro de 2022], o espetáculo O universo está vivo como um animal, inspirado na biografia de Nikola Tesla. Foi uma iniciativa bem oportuna no intuito de chamar nossa atenção para vida e obra desse inventor. Repare que, no caso desse espetáculo, seu projeto de encenação centrou-se numa narrativa que tinha como fio condutor a própria tecnologia e toda parafernália associada aos estudos do cientista austríaco.

Uma figura muito explorada entre nós é a de Santos-Dumont, o inventor. Ele já foi personagem em diversos espetáculos. Recentemente, acho que foi esse ano, foi apresentado aqui em Curitiba também o espetáculo destinado a um público infanto-juvenil, Alberto, o menino que queria voar, da Companhia de Teatro de Sombras Karagozwk.

Enfim, a iniciativa pioneira como a de Carlos Palma acabou suscitando iniciativas para se levar a cena esse conteúdo específico.

Você também pode constatar uma produção que vem sendo promovida por instituições científicas, museus de ciências que possuem núcleos de divulgação científica e que apostam no teatro como linguagem eficiente para se aproximar da sociedade.

Acredita que existem obras clássicas da dramaturgia que servem como divulgação científica?


WTN | Como divulgação científica explícita, em termos de uma propaganda ou de uma peça publicitária que se apropria de elementos da dramaturgia ou da cinematografia para promover, explicitamente, um objeto da ciência, eu penso que não. O que nos interessa é uma boa dramaturgia, um bom teatro que seja prazeroso de assistir e que também aborde de modo eficiente questões humanas relacionadas à ciência e à tecnologia.

Como mencionei antes, textos como o de Ibsen, Brecht ou Dürrenmatt são obras referenciais porque discutem o papel da ciência, a sua aplicabilidade, oferecendo personagens confrontados com dilemas éticos e morais. Essas são obras que explicitam conflitos políticos e sociais. É o que se passa na peça encenada no começo dos anos 2000 pelo próprio Carlos Palma, Copenhagen, de Michael Frayn.

Nessa peça, a situação dramática está centrada no encontro em 1941 entre os dois físicos, Neils Bohr e Werner Heisemberg. O físico alemão Heisenberg visita o seu ex-professor, Neils Bohr de origem judaica e discutem sobre a fissão nuclear, bomba atômica e as aplicações e consequências dessas aplicações do conhecimento da física nuclear para os destinos da humanidade.

Falando de Heisemberg, seria impossível não lembrar da série Breaking Bad, onde um professor de química, portanto um homem de ciência, emprega seus conhecimentos científicos para fabricação de uma super-droga, e com isso, naturalmente acaba se envolvendo com o crime organizado norte-americano e internacional e acaba sofrendo as consequências desse tipo de decisão.

Você enxerga motivação social, de promoção da cidadania, no teatro que se fundamenta na ciência?


WTN | Desde quando Jean-Paul Sartre visitou o Brasil em 1960, fazendo suas conferências e encontrando vários intelectuais brasileiros, muitos artistas de teatro se aperceberam da importância de produção de uma “arte engajada”, assim como fora preconizado por Sartre, em vista de uma “literatura engajada”.

Toda arte é política. Você não tem como escapar dessa afirmativa.

Portanto, muitos artistas brasileiros do período passaram a praticar esse engajamento mencionado por Sartre na produção de suas obras. No caso do teatro brasileiro esse engajamento tem seu ponto culminante nas reflexões de Augusto Boal, expostas no seu Teatro do Oprimido, dentre outras publicações.

O que está em jogo é de fato isso que você menciona como um objetivo associado às relações entre arte e ciência: “formar indivíduos críticos e engajados e promover a cidadania”. Mas esse não é um objetivo específico de um teatro utilitarista, e sim um objetivo dos artistas engajados numa relação de esclarecimento de questões sociais, contribuindo para um aperfeiçoamento do espírito cidadão, da cidadania.

Teatro não é sala de aula, é arte. As obras teatrais apesar de terem seu caráter pedagógico ou terapêutico podem se servir de qualquer tema ou questão. Ao mesmo tempo que uma aula pode se servir de procedimentos teatrais para melhor explicitar seus conteúdos. Mas aula é aula e teatro é teatro.

Quanto um espectador precisa saber sobre um determinado assunto para realmente poder refletir, após assistir a uma peça de teatro? Ou seja, o teatro consegue atingir um público que não está imerso em uma cultura com ênfase científica?


WTN | Aqui seria importante delimitar o que se entende por uma “cultura cientifica”. Qual é a minha, a sua “cultura científica”? É saber que Pasteur inventou a pasteurização? Que Santos-Dumont inventou o avião, que Galileu afirmou que era a terra que girava em torno do sol? Essas são perguntas de palavras cruzadas. Não constituem uma cultura científica.

Acredito que uma cultura científica não se consolida da noite para o dia. Trata-se de uma política pública, assim como esse evento mesmo, que estamos vivendo a 75ª Reunião Anual da SBPC.

Agora, cultura teatral, eu posso definir para você. Na minha opinião, uma definição parcial e razoável que compartilho com os estudantes é a seguinte. Quando me refiro a “cultura teatral”, digo a eles, refiro-me aos modos de ser e estar da arte teatral a serviço do universo simbólico de uma determinada sociedade.

Na fabricação da teatralidade, é a cultura teatral quem faz a mediação entre imaginário e realidade, palco e plateia. E a materialidade que sustém uma obra cênica repousa na sua teatralidade ou performatividade, não ganhando vida nunca espontaneamente. É sempre fundamental um trabalho teatral.

Para voltar à sua pergunta. Não é o “espectador” quem precisa saber para refletir. A narrativa, o espetáculo, o filme, é que precisam ser suficientemente coesos e claros. É sempre a obra que precisa explicitar suas convenções para que o espectador possa compartilhar do seu conteúdo e da sua forma. Para que o espectador possa fruir o que está acontecendo na sua frente.

É somente aos poucos, depois de ter assistido a uma narrativa, que o espectador vai decantando no seu espírito aspectos percebidos lá no momento da exibição da obra. São aspectos conscientes e inconscientes deixados pela exibição assistida.

Nem sempre somos capazes de formular uma opinião ou um juízo imediato, logo que saímos de um espetáculo teatral ou de uma exibição cinematográfica.

O espectador precisa de um tempo… Ele tem, sim, que abrir espaço no seu espírito para permitir que a obra, com seus valores, sua ideologia, sua historicidade, enfim com suas propriedades possibilitem a sua reflexão sobre os temas e questões tratadas.

O desenvolvimento do espectador está em criar seu repertório, como dizem… E aqui poderíamos falar de uma “cultura do espectador”, cujo primeiro mandamento seria talvez “baixar a guarda”, se esforçando para não ter preconceitos com essa ou com aquela forma, com esse ou com aquele assunto, inclusive com os assuntos atinentes à ciência e à tecnologia.


Esta entrevista faz parte de uma série de conversas da Ciência UFPR com conferencistas da Universidade Federal do Paraná que estão na programação da 75ª Reunião Anual da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), em Curitiba.
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