Benzodiazepínicos, entre os quais o mais famoso é o diazepam, um ansiolítico comercializado desde os anos 60, podem funcionar no combate à dependência de drogas, por reduzirem a liberação de dopamina no cérebro. Esse foi um dos resultados de um estudo de pesquisadores do Instituto Nacional de Neurociência Translacional (INNT) que inclui o grupo de Neurociência do Departamento de Farmacologia da Universidade Federal do Paraná (UFPR), coordenada pelo professor e pesquisador Cláudio Da Cunha. A liberação do neurotransmissor dopamina no cérebro é um dos fatores ligados à dependência de drogas.
No cérebro de camundongos a substância reduziu a liberação da dopamina, neurotransmissor associado aos mecanismos de dependência de drogas
Segundo a pesquisa, publicada neste segundo semestre pela revista científica ACS Chemical Neuroscience, no cérebro de camundongos o diazepam teve como efeito a redução na liberação da dopamina, um neurotransmissor associado aos mecanismos de aprendizagem, motivação, atenção e dependência de drogas. Esse mecanismo é sensível aos efeitos provocados por escolhas, e os núcleos da base do cérebro, onde ocorre essa liberação, funcionam como um sistema fisiológico em que são processadas e “classificadas” as escolhas.
Assim, a quantidade de dopamina liberada funciona como uma medida do quanto a expressão de um comportamento teve uma consequência algo pior ou melhor que o esperado. Um aumento na dopamina reforça a escolha dessa ação; já uma diminuição reduz a probabilidade de esse comportamento ser repetido no futuro.
“As drogas de abuso aumentam a liberação da dopamina em uma parte de cérebro chamada de núcleo accumbens, que são parte dos núcleos da base, reforçando assim o uso dessas drogas. Dessa forma a dopamina age como um propulsor de um ciclo vicioso, uma vez que fortalece a escolha pela uso da droga”, explica Cunha, um dos autores do artigo “Diazepam Inhibits Electrically Evoked and Tonic Dopamine Release in the Nucleus Accumbens and Reverses the Effect of Amphetamine“.
Por atuar como um possível inibidor da liberação da dopamina, o diazepam poderia ajudar a quebrar esse ciclo, reduzindo a motivação do dependente em usar a droga. O mecanismo já é conhecido porque baseia o funcionamento dos antipsicóticos, que também competem com a dopamina pela ligação aos seus receptores. A diferença é que os antipsicóticos apresentam efeitos colaterais, tais como apatia e dificuldade de expressar emoções e sentimentos (o chamado embotamento afetivo), que não são observados em pacientes tratados com benzodiazepinas.
Protótipo permite medição de neurotransmissores em cobaias
Cunha conta que a descoberta de que o diazepam inibe a liberação da dopamina surgiu por acaso. Há cerca de três anos, a equipe havia acabado de receber de um dos maiores hospitais dos Estados Unidos, a Mayo Clinic, de Rochester (Minnesota), a concessão de um protótipo usado para medir de forma instantânea a liberação de dopamina no cérebro.
Além de ser um hospital, a Mayo Clinic conta com equipe de pesquisadores — que inclui médicos, neurocientistas e engenheiros biomédicos — e é responsável pelo desenvolvimento de tecnologias importantes para a medicina, como o primeiro coração artificial. “O protótipo cedido à UFPR é o produto do trabalho de quase uma década de um time de cerca de 180 cientistas”, afirma o pesquisador.
Desde então, os pesquisadores da UFPR têm buscado aproveitar em estudos o protótipo até hoje inédito no Brasil. No Laboratório de Fisiologia e Farmacologia do Sistema Nervoso Central da UFPR, em Curitiba, esse protótipo tem sido usada para medir a liberação de dopamina no cérebro de camundongos anestesiados. Isso ocorre da seguinte maneira: o que é medida é a corrente elétrica gerada pela oxidação da dopamina em microelétrodos de fibra de carbono. Os dados são enviados para um computador via Bluetooth e processados por um software que quantifica quanta dopamina foi oxidada.
Em um dos primeiros estudos feito pelos pesquisadores brasileiros, os camundongos receberam anfetamina seguida de diazepam. A ideia era verificar se as duas substâncias iriam causar um aumento contínuo da liberação do neurotransmissor dopamina no cérebro. A anfetamina, tal como esperado, aumentou a liberação de dopamina. Porém, com o dizepam ocorreu o contrário: ele reverteu o efeito da anfetamina, normalizando assim a liberação de dopamina.
Estudo aponta possibilidades de redução de danos para tratar dependência
Os resultados preliminares apontam, portanto, que o diazepam tem potencial para quebrar o ciclo vicioso que leva o dependente a abusar da droga: ao aumentar a liberação da dopamina, a droga aumenta a vontade de usar a droga, o novo uso faz liberar mais dopamina, e assim sucessivamente.
Esse tratamento estaria inserido em um contexto de redução de danos, uma vez que o uso em longo prazo do diazepam também pode ocasionar dependência — só que com efeitos menos graves para a vida social do que drogas cuja dependência instalada pode ser devastadora, como cocaína e anfetaminas.
“Sabe-se hoje que a dependência é uma doença crônica. Quando estabelecida, mesmo após anos de abstinência podem ocorrer recaídas. Então, questiona-se se uma cura total seria factível. Mesmo que não seja, podemos pensar na adoção de tratamentos paliativos, os que tratam os sintomas sem, contudo, curar a doença, tal como ocorre com o diabetes e o Mal de Parkinson”, conta Cunha.
Como o diazepam é um fármaco já estabelecido, sua eventual adequação ao tratamento de abuso de drogas percorreria um caminho mais curto do que a descoberta de uma nova substância, ainda que haja um “caminho longo a ser percorrido” pelas pesquisas, nas palavras do professor.
Pesquisadores querem avaliar reflexos de uso contínuo
A equipe da UFPR agora está expandindo a pesquisa para observar se o bloqueio de dopamina permanece mesmo quando os animais são tratados com diazepam por muitos dias — ou seja, se o efeito do uso da substância pode ser limitado em um prazo maior. “É uma forma de descobrir se esse efeito do diazepam permanece ou se desenvolve o que se chama de tolerância”, explica Cunha.
Em outra etapa, os pesquisadores pretendem ampliar os testes para outras drogas, especialmente as estimulantes, como cocaína, nicotina e outros tipos de anfetamina. Também existe a intenção de estudar o efeito do diazepam sobre a dopamina em animais acordados.
Outra fase prevê testes comportamentais em que cobaias ficam livres para se auto-injetar a substância que causa dependência, o que possibilita perceber o grau de motivação que envolve o esforço de obter a droga. Só então, se confirmado o potencial do diazepam, seriam interessantes estudos clínicos com a substância.
Parceria com outras universidades
O trabalho científico publicado na ACS Chemical Neuroscience foi feito por uma parceria que incluiu nove pesquisadores que atuam nas instituições UFPR, Instituto de Biofísica Carlos Chagas Filho e Instituto de Bioquímica Médica Leopoldo de Meis, ambos da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), e do Departamento de Cirurgia Neurológica da Mayo Clinic, que hoje emprega dois pesquisadores da universidade paranaense.
Os pesquisadores participantes são: Aleksander Gomez-Acosta; Amanda Fiorenza; Suelen Boschen; Adam Sugi e Cláudio Da Cunha (da UFPR, autores do trabalho publicado na ACS Chemical Neuroscience, responsáveis por coletar e analisar dados e amostras); Danielle Beckman e Sergio Ferreira (da UFRJ, também autores, responsáveis pela análise detalhada de amostras pelo método HPLC); Kendall Lee e Charles D. Blaha (Mayo Clinic, também autores porque desenvolveram o protótipo usado nas dosagens de dopamina por voltametria); e Laura Polido (doutoranda) e Julie Yoko (estudante da graduação) no dia a dia dos laboratórios de Neurociência da UFPR.