Poucas leis no Brasil cobrem uma temática tão ampla e técnica quanto a Lei de Biodiversidade, sancionada em junho de 2015. Em 50 artigos, a norma trata de grandes assuntos referentes ao uso científico e econômico do nosso patrimônio genético, que são as informações das espécies que têm distribuição no Brasil. Não é pouco diante do fato de que esse é o país mais biodiverso do mundo, ou seja, o com mais espécies — por consequência o com mais espécies nativas, as exclusivas do país.
Na lista dos assuntos da utilização do patrimônio genético, cujas regras em si já configuram uma questão intrincada, entram ainda outras discussões sensíveis, como a compensação para as comunidades detentoras de saberes tradicionais a respeito desse patrimônio.
Apesar da complexidade, a tramitação legislativa levou menos de um ano, sob pressão de setores econômicos e com pouca discussão da sociedade — o que já fazia a classe científica prever, na época, que muita coisa teria que ser consertada mais à frente.
Para Luciane Marinoni, professora titular no Departamento de Zoologia da Universidade Federal do Paraná (UFPR) e atual presidente da Sociedade Brasileira de Zoologia, a lei respondeu a uma necessidade, a de proteção da biodiversidade, gerando parâmetros para outros países em desenvolvimento.
Uma frente dessa necessidade era o cumprimento do Protocolo de Nagoia, firmado em 2010 no fórum global da Conferência das Partes da Convenção sobre Diversidade Biológica, que trata do acesso a recursos genéticos e da repartição justa e equitativa dos benefícios derivados de sua utilização. O Brasil assinou o protocolo em 2021, unindo-se a outros 130 países.
Por outro lado, criou entraves burocráticos à ciência. Marinoni participa desde 2018 dessas discussões sobre a Lei de Biodiversidade na Câmara Setorial da Academia, instância consultiva do Conselho de Gestão do Patrimônio Genético (CGen) do Ministério do Meio Ambiente.
“A lei não é totalmente boa, mas também não é completamente ruim. Há muitas questões problemáticas que conseguimos contornar e estão sendo resolvidas”, avalia a professora, cuja experiência traz o ponto de vista dos cientistas das áreas da Biologia, especialmente na ciência básica.
As regras da lei incidiram sobre um leque vasto de pesquisas que usam amostras de patrimônio genético, em uma expansão significativa em relação às normativas anteriores e que está na base da reclamação desses cientistas. A lei passou a abranger tanto a ciência básica, como a taxonomia (classificação e identificação das espécies) e a análise de insumos de plantas e animais nativos, quanto a ciência aplicada, que busca soluções práticas com o resultado dessas análises e gera inovações.
Nesta entrevista à Ciência UFPR, Luciane Marinoni comenta o trabalho da câmara setorial, fala do que a lei mudou para as coleções científicas e defende que cientistas participem mais das discussões políticas que impactam a ciência.
O que você diria que deu certo para a ciência e para o país, passados dez anos da Lei da Biodiversidade? A lei se salva ou precisa ser revista?
Luciane Marinoni | Bem, isso é uma coisa que estamos avaliando desde que a lei foi publicada. Porque, como ela não foi elaborada por pesquisadores — o que, infelizmente, é praxe, pois não somos os primeiros a ser consultados —, a ciência foi muito impactada. Principalmente as ciências chamadas fundamentais, que não possuem fins comerciais. Assim, estamos buscando, dentro da Câmara Setorial da Academia [CSA] do Ministério do Meio Ambiente, como parte do CGen [Conselho de Gestão do Patrimônio Genético, criado em 2001], mitigar as questões relacionadas à lei que impactam às ciências biológicas.
No início, quando vimos os vários problemas que teríamos que contornar, questionamos e chegamos a discutir até a possibilidade de revogação da lei. Porém, é uma lei muito abrangente, que teve um período de concepção longo, ainda que a comunidade científica não tenha sido ouvida como deveria. Então, não é algo que simplesmente se chega e diz: “assim não está bom, queremos outra”. Uma lei é uma lei. E como muitos atores fazem parte do processo e têm interesses diversos, principalmente as empresas e os povos tradicionais, fica difícil disso acontecer por solicitação isolada da academia.
GALERIA | Uma lei, diversos pontos de vista
No âmbito da CSA, optamos por mitigar tais problemas. Em alguns casos, conseguimos avanços com relativa facilidade, mas outros vêm sendo discutidos desde 2017, ainda sem uma solução definitiva.
Uma das coisas boas é que a lei demonstrou que realmente precisamos de regras para que todos que produzem ciência com a biodiversidade brasileira sejam recompensados de alguma forma, financeiramente ou não. Isso nunca havia sido pensado de forma prática. Além disso, adquirimos uma experiência única na discussão de como os recursos advindos da biodiversidade brasileira devem ser compartilhados.
Prova disso é que o Brasil, hoje, está muito à frente de vários países que têm megabiodiversidade [a condição dos países com maiores quantidades de espécies endêmicas, ou seja, exclusivas, a maioria deles localizada nos trópicos]. Estamos cuidando do que é nosso e tentando fazê-lo de forma organizada para que todos que têm direitos usufruam em algum momento. Mesmo com todas as limitações da lei, mostramos ao mundo que o Brasil está se organizando, que valoriza sua biodiversidade e soberania, e que, dessa forma, não estará sujeito a intervenções externas em sua biodiversidade por ausência de uma base legal bem estabelecida.
A lei também cumpre um papel importante ao garantir os direitos dos pesquisadores e ao alertá-los sobre suas responsabilidades.
Infelizmente, muitos ainda encaram suas exigências como meras obrigações burocráticas e acreditam não precisar prestar contas sobre o uso da biodiversidade. De fato, os pesquisadores da área enfrentam diversos trâmites burocráticos, mas, no caso específico dessa legislação, o foco é a segurança — não apenas da biodiversidade brasileira, mas também da própria ciência. Essa é uma responsabilidade de todos os cidadãos brasileiros.
A experiência que adquirimos é positiva também para os outros países megadiversos que, em sua maioria, ainda não se organizaram internamente para cumprir com as normas do Protocolo de Nagoia. No ano passado ministrei uma palestra no Field Museum em Chicago, sobre o NAPI Taxonline, do qual sou coordenadora [Novo Arranjo de Pesquisa e Inovação de Coleções Biológicas no Paraná], e uma pesquisadora da Índia, atualmente curadora no museu, solicitou uma reunião para que eu explicasse como o Brasil está resolvendo as questões relacionadas ao Protocolo de Nagoia. Ou seja, no nosso caso, relacionadas à Lei 13.123. O Brasil é procurado como modelo. Acho importantíssimo servirmos como referência.
Por outro lado, há muitos pontos que precisamos resolver. Aliás, os avanços que vêm sendo alcançados são um mérito importante da Câmara Setorial da Academia.
Por exemplo, antes o SisGen [Sistema Nacional de Gestão do Patrimônio Genético e do Conhecimento Tradicional Associado — plataforma online onde as pesquisas com o patrimônio genético devem ser cadastradas] permitia cadastrar os dados de somente uma espécie objeto do trabalho. Mas as ciências fundamentais como a taxonomia, a ecologia e a epidemiologia, por exemplo, utilizam inúmeros exemplares, muitas vezes de inúmeras espécies, sendo esse um impedimento ao cadastro da pesquisa conforme a lei exige. Assim, para que os pesquisadores não trabalhassem de maneira “fora da lei”, a CSA sugeriu uma resolução estipulando que, enquanto não houvesse condições, ou seja, enquanto o SisGen não fosse adaptado para o cadastro de mais espécies, os pesquisadores dessas ciências não precisariam cumprir com as obrigações definidas na lei. O problema foi temporariamente resolvido, até que a versão do SisGen que disponibilize as mudanças necessárias seja publicada. Infelizmente essa nova versão ainda não saiu, e agora, o que nos aflige também é o passivo das pesquisas que não foram cadastradas no período. Teremos que levar essa discussão à CSA.
Outro problema, que está sendo resolvido por meio da criação de uma rede de instituições, é a exigência de que pesquisadores estrangeiros só possam trabalhar com material proveniente do Brasil caso tenham uma instituição parceira no país. Essa exigência, naturalmente, tem causado — e ainda causa — prejuízos à ciência voltada à biodiversidade brasileira.
Um terceiro exemplo está nos estudos de filogenia [que investigam a história evolutiva de espécies ou grupos de espécies], quando deve-se analisar a distribuição global dos organismos, a qual pode incluir o território brasileiro. Nesses casos, o pesquisador estrangeiro pode não necessitar de uma parceria com instituições nacionais para realizar sua pesquisa.
Trata-se de estudos sem fins comerciais que, diante das restrições, correm o risco de não acontecer — com prejuízo direto ao avanço do conhecimento científico. É importante deixar claro algo que muitas vezes é ignorado por quem elabora a legislação no Brasil: a biodiversidade, sobretudo no caso de animais e microrganismos, não obedece a fronteiras políticas.
Então, a lei afetou a ciência? Afetou. Ainda afeta? Sim, mas de forma menos intensa pois a CSA está conseguindo reverter esses problemas. Mas é um gasto de muita energia e tempo que poderia ter sido evitado. Essa é a principal questão.
A academia está fazendo seu papel tentando mitigar esses problemas. Até o momento, temos tido voz e esperamos que assim permaneça.
Quais temores em relação ao texto da lei se mostraram verdadeiros considerando a disputa que houve no Congresso?
LM | A lei envolve as atividades de três grupos principais: o relacionado à ciência, o relacionado à indústria, as empresas de forma em geral, e aquele relacionado aos povos e comunidades tradicionais. Os três têm direitos e deveres definidos na lei e, quando essa estava sendo concebida, em algum momento defenderam seus interesses no Congresso Nacional.
Para as empresas o interesse é óbvio, pois a lei é mais relacionada às questões econômicas e à repartição dos benefícios advindos do desenvolvimento tecnológico obtidos com a biodiversidade, e as afeta diretamente. O grupo dos povos tradicionais (indígenas, quilombolas, ribeirinhos, entre outros) também tem grande interesse pois o Conhecimento Tradicional Associado [CTA], que nunca havia sido considerado como merecedor de reconhecimento, hoje é um dos principais pontos da lei.
Tanto as empresas quanto os grupos tradicionais têm maior poder de lobby, estão mais envolvidos com questões políticas do que a academia e, por isso, consequentemente, a ciência foi a mais afetada.
De forma geral, o que era antes previsto na medida provisória [MP 2186-16 de 23 de agosto de 2001, revogada pela lei] como obrigação para as empresas foi facilitado e o que era obrigação para os pesquisadores foi dificultado.
Veja, não estou atribuindo culpa a ninguém. Estou apenas constatando: a ciência tem pouca força política, e isso se deve, em grande parte, à nossa própria omissão. Hoje, contamos com a ABC [Academia Brasileira de Ciências] e a SBPC [Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência], que são as entidades com maior envolvimento nessa realidade. A maioria dos cientistas brasileiros, no entanto, não participa dessas discussões — e, muitas vezes, evita fazê-lo.
Enquanto cientistas não tiverem noção de que têm que sair do laboratório, mostrar o serviço que fazem à comunidade e lutar por seus direitos, politicamente falando, vamos continuar sem opinar em questões que afetam nosso trabalho e sofrer as consequências. Infelizmente, o que não fica claro para toda a sociedade é que as consequências sofridas pela ciência afetam toda a sociedade e o desenvolvimento de nosso país.
Então, é uma questão muito complicada, não é trivial, não é algo que será resolvido de um dia para outro. É uma questão de cultura, de mudança de perspectiva.
Quais as dificuldades que as instituições públicas enfrentam nos trâmites que a lei exige?
LM | Acredito que os problemas atinjam todas as instituições que realizam pesquisa no país, públicas ou privadas. O que acontece é que a maior parte da ciência brasileira é desenvolvida em instituições públicas, principalmente em universidades e, assim, naturalmente são as mais afetadas. Acredito que o desafio a ser enfrentado é a compreensão da lei pelos pesquisadores que fazem pesquisa e desenvolvimento tecnológico nessas instituições. A grande maioria não a entende e precisa de orientação.
A UFPR tem feito o seu papel de conscientização não só de sua comunidade, mas também de várias pesquisadores de todo o Brasil. Esse trabalho começou com o reconhecimento da necessidade de criar uma unidade dentro do organograma da universidade, dedicada aos assuntos relacionados à biodiversidade, com a missão de apoiar seus pesquisadores no cumprimento da legislação vigente — a Unibio [Unidade de Assuntos Relacionados à Biodiversidade, hoje vinculada à Pró-Reitoria de Pesquisa e Inovação — PRPI].
Trata-se de uma importante vantagem em relação às demais instituições brasileiras, que ainda não contam com esse tipo de suporte. O Ministério do Meio Ambiente, inclusive, tem reconhecido essa iniciativa, apresentando a UFPR como modelo a ser seguido.
Como uma de suas atividades, a Unibio tem promovido eventos de capacitação sobre a legislação e assuntos relacionados, de forma online. Nas últimas edições, esses eventos contaram com 1,5 mil inscritos, o que mostra o grande interesse em todo o Brasil por entender a legislação e cumpri-la.
O fundo de repartição de benefícios tem se mostrado um mecanismo adequado para a valorização do patrimônio genético?
LM | Considero importante esclarecer que o Fundo Nacional para a Repartição de Benefícios [FNRB], criado pela Lei 13.123, tem como objetivo distribuir os recursos oriundos de multas, de forma a promover a valorização do patrimônio genético e dos conhecimentos tradicionais associados, e o seu uso de forma sustentável.
Infelizmente, até onde tenho conhecimento, o FNRB ainda não aplicou recursos de uma forma significativa. De acordo com informações disponibilizadas pelo Ministério do Meio Ambiente, um dos investimentos realizados recentemente foi o Prêmio das Organizações Guardiãs da Sociobiodiversidade, com o objetivo de reconhecer o trabalho desenvolvido pelas organizações representativas dos detentores de conhecimentos tradicionais associados, guardiãs e guardiões da sociobiodiversidade, destinatárias da repartição de benefícios.
Esperamos que, em breve, tenhamos editais, que por exemplo, contemplem as coleções biológicas brasileiras. As coleções ex situ estão previstas na lei como beneficiárias do fundo, porém, ainda há algumas questões logísticas que precisam acontecer, como o cadastro das coleções pelo CGEN.
Por atuar diretamente com coleções biológicas, acompanho com interesse essa agenda e estou atenta à forma como os recursos destinados às coleções ex situ serão aplicados.
Na prática, a lei incentiva ou restringe a biopirataria? Qual é o tamanho desse problema hoje para o país?
LM | Hoje o tráfico de biodiversidade, principalmente de animais, é uma das principais formas de tráfico no Brasil. São armas, drogas e biodiversidade. É um problema enorme que não será resolvido unicamente por essa lei.
Na verdade, a Lei 13.123 não foi concebida para combater diretamente a biopirataria. Seu foco está em garantir a soberania nacional e assegurar os direitos sobre os produtos e processos decorrentes de pesquisa e desenvolvimento tecnológico com a biodiversidade brasileira.
Ainda assim, a legislação representa um avanço importante. Contribui para dificultar práticas ilegais, reforça o controle sobre o acesso ao patrimônio genético e chama a atenção da sociedade para a gravidade do problema.
No entanto, sozinha, não é suficiente para acabar com a biopirataria. Essa é uma tarefa que exige uma abordagem mais ampla, envolvendo fiscalização, políticas públicas e cooperação internacional.
Você é entomologista, dedica-se bastante à taxonomia e ao tema de acervos científicos. No que a lei toca esses dois assuntos?
LM | No início, principalmente em 2001 quando a MP exigia que se fizesse um acordo com as instituições internacionais, o Material Transfer Agreement [MTA], para enviar material para pesquisa a outros países, se criou um problema diplomático com coleções estrangeiras e museus. Por quê? Como no início, na implementação da MP, ninguém entendia direito o que estava acontecendo e não se sabia exatamente o que envolveria a assinatura do MTA e nem como fazê-lo, os pesquisadores brasileiros pararam momentaneamente de enviar material solicitado por coleções estrangeiras e, por consequência, essas coleções cortaram também essa atividade. Principalmente para a taxonomia foi um grande impedimento, porque muito do processo da pesquisa em taxonomia é embasado em troca de material e de conhecimento.
Acredito que a maioria das pessoas não sabe que as coleções biológicas da Europa e dos Estados Unidos têm muita informação de nossa biodiversidade. Principalmente nos séculos 18 e 19 houve as grandes expedições, que vinham para o Brasil, coletavam material e levavam para depósito em suas coleções.
Dessa forma, ainda hoje se eu por exemplo, for descrever uma espécie nova brasileira do grupo de insetos em que sou especialista, necessito consultar espécimens depositados nas coleções que estão no exterior [são as comparações que levam à confirmação de novas espécies].
Se eu não puder ir pessoalmente fazer a análise do material, tenho que enviar o material para que seja comparado e depois devolvido, ou solicitar o empréstimo do material para comparar aqui. Foi um problema que demorou para ser resolvido e é somente um exemplo dentre todos os que tivemos com o início do processo de organização da legislação no Brasil.
Hoje, com a lei, há duas formas de se mandar ou levar material biológico nativo para fora do país: o envio e a remessa. Esses são termos definidos na lei e dos quais aqueles que precisam fazer trâmite de material biológico com instituições estrangeiras têm que estar cientes e sem qualquer dúvida.
O envio é quando a responsabilidade sobre o material não fica necessariamente para uma terceira parte. Neste caso normalmente o material é levado pelo pesquisador para estudo e volta ao país. A documentação necessária é mais simples.
A remessa é quando o material fica sob a responsabilidade da instituição no exterior. É com a remessa que se deve ter cuidado e cumprir com todas as exigências da lei. A principal é a assinatura do MTA, no qual se determina um período durante o qual o material será mantido, porém sob as condições determinadas pela lei brasileira.
Assim, os responsáveis pelas coleções brasileiras estão tendo que se adaptar ao que a lei determina e cumprir com suas obrigações. É um período de adaptação que demora. Como mencionei anteriormente, é uma questão de mudança de hábitos e cultura.