A necessidade de respostas rápidas a ameaças infecciosas, que não raramente depende de produção em escala industrial, é um dos gargalos do combate à pandemia de covid-19. O que leva à pergunta: é possível um país estar preparado para enfrentar crises sanitárias graves? Essa busca está na base da plataforma biotecnológica sediado no Programa de Pós-Graduação em Engenharia de Bioprocessos e Biotecnologia (PPGEBB) da Universidade Federal do Paraná (UFPR).
Em menos de um ano de atuação, a plataforma já desenvolveu cinco produtos para o combate à covid-19 — antígenos para a produção de vacinas e kits de diagnóstico — que estão com pedido de patente encaminhado no Instituto Nacional de Propriedade Intelectual (Inpi).
As inovações vão ao encontro da proposta da plataforma tecnológica, que é a de incorporar processos científicos e industriais.
Dessa forma, os produtos têm um caminho pré-traçado da criação à produção (ou seja, entre ciência e indústria) e é possível agir mais rapidamente para suprir uma alta demanda.
GALERIA | Registros da rotina de engenheirar antígenos
O projeto de pesquisa começou em abril de 2020, com o propósito inicial de integrar esforços para o desenvolvimento e a produção de kits de diagnóstico do novo coronavírus (Sars-Cov-2). A parceria reúne instituições públicas e privadas. Além da UFPR, participam Embrapa, Instituto Carlos Chagas (unidade da Fundação Oswaldo Cruz no Paraná) e uma empresa de análises biológicas incubada na UFPR, a Imunova.
A partir de junho, o escopo do projeto foi ampliado da covid-19 para o combate a outras doenças, inclusive as endêmicas (de incidência constante), e às pandêmicas que venham a surgir.
Além dos pedidos de patente para antígenos contra a covid-19, o grupo encaminhou a patente de um antígeno para diagnóstico de tuberculose, doença infecto-contagiosa considerada endêmica no Brasil. São cerca de 200 novos casos por dia e foram registradas 4,5 mil mortes em 2018, segundo o Ministério da Saúde (detalhes sobre as inovações no infográfico mais abaixo).
Desenvolvimento de antígenos sintéticos facilita produção nacional em grande escala
Antígenos são moléculas que induzem o organismo a produzir uma resposta imune, ou seja, a produzir anticorpos para combater uma ameaça. O nome é usado para definir partes dos próprios microrganismos que causam doenças. Mas também é possível usar antígenos como base tecnológica de vacinas e de sistemas para diagnóstico imunológico, os testes rápidos, em geral adotados para detectar a doença quando ela está no pico.
Nas vacinas, os antígenos substituem vírus inativo ou partes do vírus que estimulam a produção de anticorpos, prevenindo contra doenças. Já no caso dos testes, os antígenos se unem aos eventuais anticorpos da amostra (sangue ou saliva, por exemplo) e essa ligação pode ser percebida por meio dos marcadores do kit de diagnóstico.
Os pedidos de patente da plataforma tecnológica tratam de peptídeos (sequências de aminoácidos) que mimetizam antígenos naturais encontrados nas amostras analisadas, mas que, por serem sintéticos, têm a produção em escala facilitada. Encontrar os antígenos mais eficientes — em um universo de milhões de sequências — exigiu da equipe de pesquisadores uma longa investigação.
O processo começa na revisão da literatura científica disponível e passa por recursos de bioinformática (cruzamento e projeção de dados) e de técnicas como a spot-synthesis, que permite a síntese simultânea de peptídeos sobre membranas de celulose. Assim, é possível encontrar mais rapidamente os epítopos, que são a menor fração de molécula capaz de agir como antígeno, isto é, obter resposta imune. São eles que servirão de base para o desenvolvimento de terapias e de diagnósticos mais eficientes.
Isso também está na proposta do projeto, já que ele busca formar um núcleo biotecnológico com uma cadeia produtiva completa.
“O próximo passo é desenvolver terapias imunológicas com os antígenos detectados. Os antígenos selecionados poderão ser usados na produção de anticorpos policlonais, aplicados no diagnóstico para detecção de antígenos virais, além de anticorpos neutralizantes utilizados em protocolos imunoterápicos. Os antígenos também estão sendo testados em culturas de células humanas para avaliar sua capacidade como imunógenos, ou seja, ativadores da imunidade. Os que forem selecionados terão a imunogenicidade ainda testada em modelo animal como primeiro passo para o desenvolvimento de vacinas”, explica o coordenador do projeto, professor Carlos Ricardo Soccol, do PPGEBB.
Segundo Soccol, a plataforma vai ao encontro de uma necessidade do combate à covid-19, a testagem massiva, que demanda também rapidez e precisão nos resultados.
“A ideia de ampliação veio da necessidade que o serviço de saúde pública tem como demanda. Isto é extremamente urgente para auxiliar em maior testagem da população. A covid-19 ainda precisa de mapeamento rápido, pois a vacinação vai demorar até atingir toda a população”.
Pandemia mostrou necessidade de busca tecnológica constante para viabilizar enfrentamento
A construção da “soroteca” para a covid-19, que viabilizou as inovações, está entre os avanços acumulados desde abril pela plataforma. Isso significa que os cientistas testaram a sensibilidade e a precisão de diversos antígenos, sozinhos e de forma combinada, para descobrir quais deles são mais capazes de reagir aos anticorpos que atuam no reconhecimento do vírus.
Em mais de 50 modelos de ensaio, foram investigados 330 peptídeos e dez proteínas recombinantes, e selecionados aqueles cujas combinações foram consideradas promissoras.
Essa estrutura de conhecimento, recursos especializados e inovação biotecnológica (conhecida como “know-how”) teve o escopo ampliado a partir da aprovação no edital do Programa Estratégico Emergencial de Prevenção e Combate a Surtos, Endemias, Epidemias e Pandemias da Capes, lançado em 2020.
O plano é torná-la capaz de reagir a um leque maior de doenças que afetam a coletividade, das endemias às pandemias. O foco agora são as doenças emergentes (caso da covid-19) e as que, por afetarem os mais pobres, não atraem tanto interesse do mercado (as chamadas doenças negligenciadas).
Muitas dessas doenças acabam por se tornar endêmicas, ou seja, persistentes em determinada região. Nesse grupo estão, por exemplo, tuberculose, hanseníase e leishmanioses, todas doenças endêmicas no Brasil. O grupo já trabalha há mais de 20 anos desenvolvendo insumos para testes tradicionais em humanos e animais, e quer avançar com outras tecnologias.
“Frente à pandemia de covid-19, direcionamos o foco e estratégias que foram desenvolvidas pelo grupo para desenvolver os antígenos e diagnósticos para a nova doença. Assim, as quatro doenças serão contempladas no diagnóstico”, explica a professora Vanete Soccol, também do PPGEB.
As pesquisas da Divisão de Engenharia de Bioprocessos e de Biotecnologia do PPGEBB, que reúne cerca de dez laboratórios, têm se orientado para a produção de proteínas recombinantes e peptídeos sintéticos que funcionam como antígenos, indicando a presença de microrganismos por meio de anticorpos produzidos pelo corpo do possível infectado. Esses insumos em geral são utilizados em testes que investigam anticorpos pelo método Elisa (“Enzyme Linked ImmunonoSorbent Assay”), um exame imunológico tradicional.
A pandemia de covid-19, que pode ser descrita como a mundialização de uma doença emergente bastante desconhecida no início, se apresentou como um desafio para a divisão do PPGEBB.
A experiência dos pesquisadores em preparar antígenos para o novo coronavírus mostrou a necessidade de buscar novas tecnologias muito rapidamente.
“Temos know-how em trabalhar com antígenos e usamos isso como base, mas nem sempre dá certo para todos os organismos. No início foram sintetizados os peptídeos dentro da plataforma que usamos. Vimos que a sensibilidade era em média de 60% e tivemos que reprogramar nossos processos, repadronizar nossas técnicas. Alteramos linhas que estudamos, e já conseguimos obter antígenos com alta sensibilidade e especificidade”, conta Soccol.
Instituições públicas atuarão para associar novas tecnologias aos processos
É no processo de associação de novas tecnologias que está a atuação da Embrapa Sudeste na plataforma. A unidade da empresa estatal tem se destacado nos últimos anos no desenvolvimento de testes rápidos e precisos, também baseados na presença de anticorpos (ou seja, usam antígenos), para diagnóstico de doenças que afetam animais e pessoas. Uma delas é a tuberculose bovina, que é transmitida ao ser humano pela carne e pelo leite de animais não tratados.
Segundo a pesquisadora Lea Andria, que atua na área de microbiologia da Embrapa Sudeste, a parceria na plataforma será uma oportunidade de a estatal avançar nas pesquisas que correlacionam saúde humana e animal dentro das possibilidades metodológicas. Essa situação é típica do combate a zoonoses, as doenças que são comuns aos dois grupos de seres vivos — gerando estudos em uma concepção de saúde denominada “saúde única” — e podem ser tanto emergentes quanto endêmicas. A própria covid-19 se disseminou a partir de uma zoonose.
“A soma de expertises será um ganho da plataforma tecnológica. Dominando a técnica, você consegue desenvolver pronta resposta. Sempre haverá a próxima doença a ser combatida e precisamos de rapidez”, explica a médica veterinária.
A parceria com a Fiocruz Paraná, por sua vez, tem permitido ao grupo explorar novos formatos de testes de imunoensaios, uma das especialidades da fundação.
Um exemplo são os chamados testes rápidos de fluxo lateral, conhecidos como testes de “fitinha”, já desenvolvidos pela Fiocruz para diagnosticar aids e sífilis. Eles permitem visualizar o resultado em fitas de nitrocelulose por meio de imunocromatografia (uso de reagentes que traduzem a análise imunológica em cores). A plataforma também aplicará imunoeletroquímica, tecnologia que usa biossensores eletroquímicos para detectar doenças, como já ocorre com medidores de glicose.
Foco em materiais disponíveis no Brasil e de baixo custo visam a beneficiar o SUS e reduzir dependência tecnológica
Uma das frentes da proposta é desenvolver tecnologias brasileiras para o diagnóstico rápido e preciso de doenças emergentes e endêmicas, com a intenção de que sejam transferidas para o Sistema Único de Saúde (SUS). Além disso, sempre na intenção de propiciar ao Brasil pronta resposta a ameaças epidemiológicas, o projeto terá como meta a produção de insumos para a produção de diagnósticos e vacinas com materiais disponíveis no Brasil e de baixo custo e fácil execução.
A lista de benefícios que a biotecnologia pode entregar nesse combate é extensa, segundo Soccol. Um deles é criar vias para produções em escala, o que demanda profissionais especializados em Engenharia de Bioprocessos.
Outro obstáculo hoje a ser combatido é a dependência de produtos estrangeiros. “É um grande problema que o Brasil enfrenta no momento é a compra de insumos e reagentes que demoram a chegar, e sempre com preços aviltantes, porque ainda incide sobre eles impostos e taxas de importação”, explica.
Ele também destaca outros impactos econômicos visados pela plataforma, como a contribuição para a balança comercial (reduzindo dependência de importados) e a geração de emprego e renda através das tecnologias transferidas ao setor produtivo, público ou privado.
Criação de mercado de trabalho para pesquisadores é um objetivo da plataforma em longo prazo
A intenção de formar profissionais na área de biotecnologia voltada ao enfrentamento de doenças do tipo. Nesse ponto, o projeto um objetivo que constitui em uma antiga reivindicação da ciência no Brasil, a formação de recursos humanos e de um mercado de espaço no mercado de trabalho para pesquisadores.
Parte dessa expectativa está na etapa de produção em larga escala, que é a principal atuação da empresa Imunova na plataforma. Para o sócio-fundador da Imunova e egresso da UFPR, Max Ingberman, o projeto tem potencial de impacto local, que pode ser ampliado à medida que produtos inovadores sejam criados. “Além de know-how técnico, entramos com capacidade de mobilizar talentos e interface com a indústria para disponibilizar esses ensaios para a sociedade a partir de insumos nacionais”.
O projeto submetido à Capes terá duração de três anos e 70% do financiamento será destinado ao pagamento de bolsas para subsidiar o trabalho de doutorandos e pós-doutorandos.
Atualmente o projeto envolve cerca de 40 cientistas das regiões Sul, Sudeste e Nordeste, entre os quais 16 professores e pesquisadores das instituições parceiras. Há ainda 23 pesquisadores associados à UFPR em níveis de mestrado e doutorado, bem como pesquisadores em pós-doutorado.