A solidão de todos e o desamparo de muitos, ambas situações da crise de Covid-19, têm seu espaço no pacote chamado de “legado” da pandemia. É esse conjunto de problemas para a saúde pública que o Brasil precisará enfrentar nos próximos anos — aumento de fatores de risco para suicídio, mais pessoas com ansiedade e depressão. Porém: teremos políticas públicas para isso? Estamos dispostos a revisitar nossas dores para cobrar das autoridades o que é preciso?
A professora Joanneliese de Lucas Freitas, do Departamento de Psicologia da Universidade Federal do Paraná (UFPR), se dedica ao estudo da psicologia da morte e coordena projetos de extensão da área há cerca de dez anos. Lida, portanto, com pessoas que enfrentam essa questão em diferentes grupos sociais.
Entre 2020 e 2021, o projeto “Luto: vivências e possibilidades” manteve um canal de atendimento para enlutados por Covid-19 que acolheu pessoas de todo o Brasil e, hoje, parte desse grupo continua frequentando os plantões no Centro de Psicologia Aplicada (CPA) da UFPR.
Joanneliese acredita que, a despeito do grave cenário para a saúde mental no país, já está em curso um processo de invisibilização das experiências decorrentes da crise sanitária. Os indícios disso vão além do fato de a pandemia ainda não ter acabado, mas já pouco se falar dela.
As denúncias também vão se apagando, assim como as necessidades dos grupos mais atingidos pelos efeitos psicológicos — os brasileiros em vulnerabilidade social, as vítimas de violência doméstica, os indígenas, os idosos, as pessoas com doenças crônicas, os profissionais de saúde, as crianças.
Nesta entrevista à Ciência UFPR, Joanneliese faz um balanço das questões de saúde mental relacionadas à pandemia, os 20 anos da campanha Setembro Amarelo e aproveita para desfazer mitos, como o de que o luto ocorre em etapas: “É uma experiência intrínseca à vida”.
Ficar sozinho em casa por longo período, pouco contato humano, no início com pouca compreensão sobre a Covid-19, com queda de remuneração, perdendo entes queridos e sem poder se despedir deles. Uma parte substancial do que enfrentamos na pandemia pode ser considerada uma espécie de tortura psicológica?
Joanneliese Freitas | Considero que não devemos chamar de tortura o que vivemos durante os períodos de isolamento físico, sob o risco de invisibilizarmos a tortura e seus efeitos avassaladores sobre uma vida, uma família e uma sociedade que a aceita e a perpetua. A tortura diz respeito a uma agressão violenta, física ou psicológica, perpetrada de modo a produzir dor ou sofrimento, seja para obter algo em troca ou pelo simples prazer de quem a pratica. Em nosso país ela é comumente praticada pelo Estado sob o silêncio da maior parte da sociedade e não pode ser invisibilizada.
Não vejo isso acontecendo no caso da pandemia. Na pandemia, vivemos uma situação de emergência sanitária.
As emergências são situações inesperadas e anormais, provocadas por desastres naturais ou outros fatores, tais como uma pandemia ou surto. Causam prejuízos de diversos tipos para a sociedade, com danos que implicam o comprometimento de resposta do poder público. Quando excedem o poder de resposta desse poder, podem ser consideradas elas mesmas situações de desastre.
No caso da pandemia de Covid-19, era urgente a aplicação de medidas de prevenção, controle e contenção de riscos, danos e agravos à saúde pública, tal como definido pelo próprio Decreto 7.616 de 2011, que criou a Força Nacional do SUS, a ser mobilizada em situações de emergência. O problema é que frequentemente os governos e os órgãos públicos não conseguem desenvolver ações que possam diminuir não apenas os impactos imediatos da emergência sanitária, mas também impactos decorrentes. Ou simplesmente ignoram essas ações. Os impactos decorrentes foram muitos.
Estudos ainda estão sendo conduzidos para que possamos compreender melhor os impactos de tudo o que vivemos nos primeiros anos da pandemia. Entretanto percebo uma invisibilização desse período, como se já tivesse se encerrado, de modo que muitos hoje inclusive esquecem que ainda vivemos uma pandemia e que os efeitos do vírus Sars-Cov-2 no organismo humano e as reinfecções sucessivas ainda estão para serem mais bem compreendidos.
Esse apagamento, de certo modo, já é um indício daquilo que todos nós sabemos na experiência vivida, cotidiana: não é fácil olhar para trás e lidar com as perdas e dificuldades que tivemos que enfrentar durante esse período, que não foram poucas, nem de pequena monta.
Assim como é um indício da maneira como lidamos com as populações vulneráveis. Se elas ainda são ou estão vulneráveis ao vírus, “que deem conta”. Não há aderência coletiva de fato à proteção desses grupos, tais como idosos e doentes crônicos.
De um ponto de vista macro, o Brasil tem um histórico de não se preparar para emergências e desastres, e nem costuma lidar apropriadamente com suas consequências e impactos.
Geralmente, atuamos apenas durante o desastre e as ações preventivas, pré-desastre, e de cuidado posterior, pós-desastre, são negligenciadas. Vide a falta de estudos e assistência a pacientes com Covid longa e aos enlutados da pandemia, por exemplo. Ou mesmo os repetidos problemas com enchentes na região Sul do Brasil ou deslizamentos no Sudeste nos períodos chuvosos. Mesmo quando tais ações ocorrem, em geral, são precárias.
Como um episódio histórico tão sui generis como uma pandemia pode ser abordado à luz da fenomenologia?
JF | A fenomenologia, grosso modo, procura descrever a experiência vivida imediata do mundo, pré-reflexiva, isto é, anterior a qualquer reflexão, por meio do corpo, do tempo, do espaço e das relações com os outros. A fenomenologia é a tentativa de refletir sobre esse campo sensível, irrefletido.
Antes de pensar brevemente a pandemia sob essa perspectiva, é importante ressaltar que não é possível esgotar a reflexão sobre a pandemia sob nenhum viés, assim como compreender que ela foi vivida a partir de múltiplos lugares e condições.
Muitos não acreditaram — e não acreditam até hoje — na letalidade do vírus, muitos outros foram obrigados a enfrentar seus desafios para que os serviços essenciais — e sua sobrevivência — pudessem ser garantidos. Outros tantos não tinham uma casa acolhedora o suficiente para se manter por dias a fio no mesmo ambiente, às vezes minúsculo, às vezes sem condições mínimas de sobrevivência ou convivência.
Entretanto, uma coisa que me chama a atenção é que no início da pandemia havia uma compreensão compartilhada por muitos de que estávamos vivendo a mesma experiência e que seríamos impactados como humanidade, com o desenvolvimento de empatia e maior senso comunitário. Completamente equivocado.
O que vimos foram milhares de precariedades, vulnerabilizações intensificadas e mortes invisibilizadas.
Para pensar em termos fenomenológicos, parto da constatação de que a experiência da pandemia foi para a nossa geração, inédita, com alterações importantes da nossa experiência vivida imediata. Toda experiência individual é sempre vivida de modo singular, porém compartilhada em uma comunidade, quando temos a oportunidade de configurá-la como temporalidade ao historicizá-la.
Ao olharmos para a história, temporalizando nossas experiências, temos a oportunidade de instituir sentidos, organizando o que aconteceu e abrindo perspectiva para o que pretendemos fazer e realizar a partir desse presente.
Nos seus primeiros anos, em especial nos primeiros momentos, a pandemia impôs uma experiência de ruptura e mesmo de desaparecimento de um mundo presumido.
Quando vivemos cotidianamente, vivemos a partir da compreensão de que o mundo está aí, existe e continuará a se dar da mesma forma. Houve uma suspensão daquilo que acreditávamos ser o esperado e o inesperado se impôs. O imperativo do distanciamento físico afetou nossas experiências relacionais e interpessoais. Deparamos com um mundo novo, que contrariou nosso sentimento cotidiano de previsibilidade e controle.
Todas as certezas da experiência pré-reflexiva também foram afetadas: o modo como nos orientamos corporalmente no mundo, em direção aos outros e aos objetos, impactando nosso modo de espacializar se alterou. Não sabíamos mais como usar o corpo e nos aproximar do outro.
O que geralmente realizamos sem pensar, “automaticamente”, como abraçar ao cumprimentar alguém, precisou ser repensado, impondo uma artificialidade aos gestos e um controle corporal que nos afetou com certo estranhamento do próprio corpo — máscaras, álcool gel, distanciamento.
A passagem do tempo também foi experimentada de modo diferente para aqueles que por um ou outro motivo puderam se manter em casa. O tempo era vivido a partir de uma espécie de repetição infinita do presente e não mais como uma fluidez em direção ao futuro, as relações com os outros passaram a ser mediadas por meios virtuais, mudando o modo de alcançar e vivenciar o corpo do outro e sua existência.
O que era habitual se tornou estranho e o estranho, habitual, no chamado “novo normal”.
Todas essas mudanças engendravam questionamentos existenciais importantes, especialmente pela quebra das ilusões diante da finitude e do mundo presumido. Nos perguntávamos: o que vai nos acontecer nos próximos dias ou meses? Quando poderemos nos ver novamente? Por que uma pandemia agora? Será que estamos seguros? O vírus abaterá a mim ou a alguém querido? Por que comigo? Será que sobreviveremos? Qual o sentido de tudo o que estamos fazendo?
Vivíamos uma situação-limite. Segundo [Karl] Jaspers, um importante filósofo e psiquiatra referência para a fenomenologia, situação-limite são aquelas nas quais não há possibilidade de vislumbrar para além delas, adiante, pois são sem possibilidade de modificação, mas que nos fazem lúcidos diante da existência, sendo nossa única saída, nos rendermos a elas. Essa rendição à condição da vida carrega consigo questões, tais como as colocadas acima.
Diante do vazio dos dias absolutamente iguais e repetitivos, nos debatemos entre a ameaça do vírus e a ameaça da fome e do desemprego.
A vulnerabilidade que muitos sentiram nesse momento, já era cotidiana para grande parte da população, o que nessa ocasião, deixou os vulneráveis mais vulneráveis. Fomos nos polarizando enquanto sociedade, às voltas de um conflito irreal entre saúde e economia, nos esquecendo de que estamos sempre falando de vidas e de sua frágil relação com as políticas públicas e os modos comunitários de nos apoiarmos.
Todas essas fragilidades foram escancaradas. Talvez isso explique porque quisemos tão rapidamente voltar à “vida de antes”, com seus apagamentos e ocultações das desigualdades, e seja uma oportunidade de pensar o nosso papel na sustentação e invisibilização dessas desigualdades.
Avalia que a pandemia pode ter alterado a forma como percebemos o luto? Alguma das etapas dele, por exemplo, pode ser estendida, suprimida ou etc.? Dá uma sensação maior de incredulidade?
JF | Antes de responder a essa questão, é importante compreender que luto não se dá por etapas ou fases, não é uma experiência pré-programada. É uma experiência intrínseca à vida, que faz parte do existir. Não há, portanto, sentido em falar de extensão ou supressão.
O fenômeno do luto não é de antemão um processo ou uma perda, nem mesmo uma dor, mas é a experiência vivida por cada um de forma única e singular, a partir do desaparecimento (morte) de alguém com quem compartilhávamos um mundo, tornando o mundo carente de significação.
De certo modo, é o desaparecimento não só de alguém significativo, mas de si mesmo, pois não serei a mesma pessoa que fui naquela relação em nenhuma outra. É também desaparecimento do próprio mundo, pois aquele mundo partilhado simplesmente deixa de existir.
Entretanto, ficamos enlutados pois embora tenha desaparecido, esse outro persiste em minha carne e no mundo, somos inclusive capazes de lhe dar uma quase-presença, por meio das coisas, de um perfume, roupa ou música preferida, mas uma presença que se mostra na ausência e não como presença efetiva.
Dentro dessa experiência, sempre localizada em um horizonte cultural, muitas afetações podem acontecer: dor, perda, vazio, saudade, alívio, dentre várias outras. O luto é a exacerbação da própria sensibilidade compartilhada entre o mundo e os corpos que o habitam.
O que temos visto em nossa pesquisa é que nos primeiros anos da pandemia, o luto foi vivido por muitos dentro de situações existenciais limite, podendo e devendo ser compreendido sempre a partir de seu contexto, nesse caso o pandêmico.
As restrições de suporte social são geralmente vividas com impactos importantes por pessoas enlutadas, em qualquer contexto, pois como parte da vida, o luto vai estar presente no modo como pessoas enlutadas experimentam as relações, o tempo, o próprio corpo e o espaço.
Assim, para muitos, o sofrimento se relacionava à impossibilidade de apoio das pessoas mais próximas, à impossibilidade de dar suporte ao seu ente querido enquanto doente no hospital, à falta de engajamento social e comunitário para a evitação do espalhamento da doença e da morte, a desorganização governamental nas ações de prevenção e suporte à população.
Por outro lado, a diminuição ou a ausência de ritos foi vivido ambiguamente, de formas muito variadas, onde muitos até preferiam sua supressão, enquanto outros buscaram formas novas de vivê-los, tais como por meios virtuais, em especial quando entendiam estar cumprindo um papel importante junto ao falecido, social ou espiritualmente.
O mundo que “desapareceu” durante a pandemia pode ser resgatado na nossa mente?
JF | Para a fenomenologia não há mente. Há experiências vividas, que organizamos e temporalizamos por meio dos sentidos que damos a elas. A vida não é uma coisa feita com objetos que se retiram e se recolocam no mesmo lugar. Todas as experiências que vivemos nos modificam e modificam o modo como nos orientamos e experimentamos as coisas, o mundo, o tempo, as relações.
Assim, embora sempre vivamos em um mundo que apesar de sempre novo, incerto, pois sempre atualizado pelo fluxo dos acontecimentos e do imprevisível da vida, está marcado pela história.
Habitualmente mantemos uma relação de sentido com o mundo onde buscamos minimizar as angústias e questionamentos derivados das incertezas da vida e “naturalizamos” a vida como se ela fosse previsível e totalmente controlável, se mantendo sempre do mesmo jeito, da mesma forma, e que, presumidamente, não vai desaparecer ou se desorganizar.
Esse modo de lidar com a vida também é importante, pois se assim não fosse, não conseguiríamos nem nos levantarmos da cama pela manhã se, a cada vez, desconfiássemos que o chão não está mais lá, se não nos assegurássemos dessa e de outras pequenas previsibilidades. O ruim é quando essa naturalização do mundo e do existir, nos tira a possibilidade de viver a imprevisibilidade da vida e o novo que se apresenta a cada instante, perdendo outros possíveis que a vida nos abre.
Hoje, pós-emergência sanitária, não pós-pandemia, porque ela não acabou, voltamos a nos relacionar com o mundo a partir da perspectiva de que, pelo menos por hora, tudo vai se manter, até que a próxima situação-limite, seja na vida coletiva ou privada, irrompa e nos faça tocar novamente o existir como ele é: aberto e imprevisível.
Em termos de políticas públicas para saúde mental, o que devemos pensar com urgência, especialmente depois da pandemia? Existem grupos sociais que requerem mais atenção?
JF | As políticas públicas para a saúde mental já estão precarizadas há muito tempo, desde antes da pandemia.
As urgências são múltiplas e devem estar voltadas às populações vulnerabilizadas e invisibilizadas, condições que foram acentuadas durante a pandemia.
Além dos grupos mais vulneráveis, acredito que é importante um conjunto de ações que possam cuidar dos invisíveis que a pandemia visibilizou, como os sem documentação e sem acesso ao mínimo a uma sobrevivência digna.
Qual o principal mito que você percebe na forma como as pessoas entendem o luto e como o enfrentam? O luto é individual ou coletivo?
JF | Existem muitos mitos em torno da experiência do luto, um dos mais difundidos é que ele tem etapas, tem um tempo para acabar e tem uma maneira certa para vivê-lo.
Luto é uma experiência de vida que não termina, ela muda ao longo do tempo. Podemos ser revisitados de várias formas ao longo de nossas vidas pelos nossos lutos, nós os experienciamos como “ondas”, que vão e vem, às vezes mais fortes, às vezes mais fracas, às vezes com saudade, às vezes com sofrimento ou até mesmo alívio.
Datas comemorativas ou mesmo pequenas coincidências, cheiros, comidas ou eventos podem nos fazer vivenciarmos nosso luto novamente. Podemos ter lembranças tristes ou felizes, mas aquilo que somos, o somos pelas relações que vivemos, pelos sentidos de mundo e de vida que compartilhamos.
Assim, não somos capazes de superar a nós mesmos, o que somos, o que o outro é em nós quando se foi. Apenas incorporamos sua ausência, sentindo sua presença ao longo da vida de maneiras e com intensidades diferentes.
Há lutos individuais e lutos coletivos, estes últimos são experienciados quando há o sentimento de pertencimento a um grupo ou comunidade que conjuntamente vela a ausência de alguém.
Gostaria que refletisse sobre as críticas que são feitas sobre um excesso de abordagens individualizadas da saúde mental que acaba mascarando necessidades de políticas públicas. Assim, o próprio “Setembro Amarelo” acaba parecendo um eufemismo ou mesmo uma data comercial. Vê sentido nessa argumentação? Mesmo assim, existe um lado bom do Setembro Amarelo?
JF | O programa “Yellow Ribbon”, ou fita amarela em português, teve início em 1994, por iniciativa de parentes e amigos e em memória de Mike Emme [rapaz de 17 anos, morador do Colorado, nos EUA] que havia tirado a própria vida. Seus pais enlutados escreveram um telefone que oferecia ajuda a quem estivesse em sofrimento em um papel amarelo brilhante, que foram distribuídos rapidamente pelos seus amigos a outras pessoas da comunidade. A cor amarela foi usada por seus amigos em memória de Mike, que tinha um Mustang amarelo do qual ele gostava muito. Depois de três semanas, circulou a notícia de que uma menina recebeu ajuda em seu próprio sofrimento. É um programa que existe até hoje nos EUA, bastante conhecido.
O primeiro Dia Mundial da Prevenção do Suicídio foi lançado em 10 de setembro de 2003, em Estocolmo, como uma iniciativa da IASP (em português, Associação Internacional para a Prevenção do Suicídio) e da Organização Mundial da Saúde (OMS), chamando a atenção para o fato de que tirar a própria vida é um evento que pode ser evitado.
As fitas amarelas se tornaram símbolo da campanha contra o suicídio e em 2015, começaram a ser utilizadas no Brasil pelo Centro de Valorização da Vida, pelo Conselho Federal de Medicina e pela Associação Brasileira de Psiquiatria, no que ficou conhecido como Setembro Amarelo. Hoje, a campanha Setembro Amarelo conta com várias outras entidades parceiras e com o engajamento voluntário de diversas entidades civis.
Por um lado, essa é uma campanha importante porque tem o papel de conscientização sobre o assunto e nos abre a oportunidade de discutirmos o suicídio de forma mais livre, que é um tema tabu até hoje.
Desde então, foi possível problematizá-lo e visibilizar o sofrimento envolvido, seja de quem morre, seja de sua família e amigos, além de abrir canais de comunicação sobre o tema, inclusive sobre as maneiras apropriadas de conduzir essa comunicação.
Durante muito tempo acreditou-se que era inapropriado falar sobre suicídio devido ao chamado “efeito Werther”, efeito de contágio logo após a divulgação de algum outro caso de suicídio. Esse nome se deve ao que foi observado pela primeira vez após o lançamento do livro Os Sofrimentos do Jovem Werther, de 1774, de Goethe. O livro conta a história de um jovem que em intenso sofrimento amoroso, acaba por tirar a própria vida. Em seguida, foram relatados uma série de episódios onde outros jovens faziam o mesmo, do mesmo modo que o protagonista da história.
O livro chegou a ser banido em diversos lugares da Europa. O que hoje sabemos é que existem formas adequadas de se falar sobre o tema, o que é diferente de nunca tocar no assunto.
As campanhas brasileiras ou mundiais sobre o suicídio buscam tratá-lo de modo a evitar quaisquer romantizações ou evocações de métodos, mas buscam a conscientização sobre o suicídio como um problema atual que ceifa muitas vidas e precisa ser encarado de frente, sem tabus.
O problema é que com o tempo, houve alguns desdobramentos das campanhas que nem sempre foram colocados sob reflexão.
O primeiro deles talvez esteja já na sua origem, que trata o fenômeno do suicídio a partir de uma perspectiva estritamente individualizada e de adoecimento psíquico. Essa perspectiva tem sofrido inúmeras críticas, pois invisibiliza os traços culturais do suicídio e perpetua a compreensão de que pensar em tirar a própria vida ou chegar a fazê-lo é intrínseco a uma condição de adoecimento e à vida de um sujeito individual.
Uma das consequências de se tratar o suicídio apenas sob o viés do sofrimento e do adoecimento mental individual é o fato de que sustentamos as ações de prevenção apenas em intervenções individualizadas e voltadas para aqueles que são considerados doentes ou adoecidos de algum modo, deixando obscurecidas discussões sobre as condições materiais que também afetam nosso viver e sentido de vida. Uma das dificuldades enfrentadas pelos enlutados nesses casos, se relaciona à ênfase de que todo ato de tirar a própria vida pode ser evitado, basta que sejamos capazes de ver os “sinais”.
Essa compreensão é sustentada por esse viés estigmatizante e individualizado e fomentada pela ideia de que podemos controlar o imprevisível da existência.
Testemunhamos enlutados se culpabilizarem, afetados por sofrimento intenso, pois sentem que não foram capazes de perceber esses sinais. A questão não discutida é que nem todos que tiram a própria vida dão sinais e nem todas as formas de evitação são de fato eficazes.
Não estou afirmando que não devemos olhar para tais aspectos, mas que acreditar que temos controle total sobre esse ou qualquer outro ato humano deveria ser discutido de forma mais aprofundada e não apenas do ponto de vista individualizado, sobrecarregando familiares e amigos, em detrimento de um apoio mais profundo.
O suicídio é um fenômeno complexo e que precisa ser pensado em toda sua complexidade, sem compreensões apressadas ou generalizantes, mas dentro do contexto e no cerne de cada vida singular.
A própria OMS já discute que é importante desvincularmos o suicídio da depressão, entendendo-o como um ato mais complexo e vinculado também a outros fatores, para além do sofrimento mental. E ainda, as críticas a essa abordagem do suicídio nos fazem ampliar a compreensão de que o sofrimento mental é um evento individual apenas. Embora seja singular e vivido por alguém em particular, ele não está separado das condições materiais, históricas e comunitárias, haja visto o luto coletivo por exemplo, ou o sofrimento vivido coletivamente em situações de desastre.
O sofrimento de uma vida precária e sem lazer, sem saúde e bem-estar, está intimamente relacionado às condições estruturais da sociedade e ao alcance ou fracasso das políticas públicas, por exemplo. Tais condições se mantém invisibilizadas e são tratadas como se não existissem em muitas das formas medianas de engajamento perpetuadas pela campanha.
Não à toa, dados da OMS apontam que cerca de 75% dos casos de suicídio ocorrem em países de baixa e média renda. Não enxergar e não lutar por melhores condições de vida, lazer, boa alimentação, educação e trabalho é também uma forma de não cuidar da vida das pessoas. Embora vários autores, desde Durkheim, tenham apontado que o suicídio é fundamentalmente um ato com raízes culturais e sociais, esse não é um fator seriamente analisado para além dos artigos e discussões teóricas. Não se tornou ainda mote para pensar políticas públicas de modo mais efetivo.
O modo como a campanha do Setembro Amarelo foi adotada no Brasil levou a outras distorções, infelizmente. Além do enfoque exclusivamente individual, com responsabilização do sujeito ou de um adoecimento particular, frequentemente testemunhamos a repetição impensada de um slogan.
Um exemplo comum disso é que neste mês proliferam na internet ofertas de apoio e suporte a pessoas em sofrimento que são vazios ou precários. Frequentemente são oferecidos por pessoas ou instituições que na realidade não estão preparadas para sustentar essa escuta, por simplesmente não terem formação adequada para tal. Mas estão interessados em lucrar com a imagem que essa oferta ou defesa provê nas redes sociais e fora delas, vendendo medicação ou terapias por vezes duvidosas e sem sustentação rigorosa.
Outro problema muito discutido é o fato de as ações do Setembro Amarelo se concentrarem em um único mês, frequentemente sobrecarregando equipamentos de saúde e seus profissionais, carecendo de ações que sustentem um olhar cauteloso e rigoroso sobre o tema ao longo de todo o ano.
Do ponto de vista de uma reflexão mais aprofundada e existencial, podemos perceber que ao buscarmos soluções e explicações monolíticas para o problema, há algo que nos escapa: o fato de que morrer é sempre uma possibilidade. Vivemos em uma sociedade onde o morrer e a morte são tabus. Discutir o bem-viver, inclui a discussão sobre a vida em toda a sua complexidade, com seus prazeres e sofrimentos, em sua dimensão singular e comunitária, e sua condição de finitude.
Para alcançar uma comunidade que valorize e viabilize o bem-viver, paradoxalmente precisamos levar em conta a possibilidade da morte e do sofrimento como condições humanas também, o que é extremamente difícil em uma sociedade da hipervalorização do prazer e da aparência, com pouco ou nenhum espaço para o compartilhamento da dor, com desprezo pela diferença e pelas pessoas em vulnerabilidade. Bem-viver inclui todas as dimensões do humano.
Assim, compreender o ato de tirar a própria vida de modo não apressado é não tomá-lo de antemão como desmedida ou coragem de alguém, como uma questão social ou individual, como nos ensina a professora Ana Maria Feijoo, professora titular da Uerj, mas como um ato humano.
Ela afirma: “O suicídio é um ato que guarda em seu interior tanta complexidade e mistério que tal decisão merece ser acompanhada no âmbito da própria experiência daquele que decide retirar-se da vida. Para tanto, faz-se necessário posicionar-se frente àquele que se encontra envolvido com o desejo da morte voluntária, de modo a não guardar nenhum posicionamento moralizante, estigmatizante ou preconceituoso”.
Acompanho a professora entendendo que ao nos posicionarmos junto a quem cogita morrer, colocando-nos abertos e presentes, acolhendo o humano em sua complexidade, sem moralizações, mas com interesse genuíno por aquela vida, estaremos resguardando mais vidas, ao invés de tentar discipliná-la ou entendê-la como pura desmedida ou desrazão, tal como vemos se perpetuar hoje, sem nunca esquecer que esse colocar-se presente também diz respeito à busca de uma vida digna a todos.