Desde que o pênfigo foliáceo foi registrado pela primeira vez no Brasil, no início do século XX, a doença recebeu um apelido e um segundo sobrenome. O apelido é “fogo selvagem”, devido à sensação de queimadura que as bolhas que se formam na pele causam, principalmente quando se rompem e deixam feridas pelo corpo todo. As bolhas surgem porque o sistema imunológico passa a funcionar mal, produzindo anticorpos que atacam a estrutura da pele.

O segundo sobrenome da doença no país é “endêmico” e diz respeito à condição excepcional dela aqui em relação ao resto do mundo. O pênfigo foliáceo endêmico (PFE) é uma das formas de pênfigo — todas disfunções autoimunes crônicas que deixam bolhas na pele — que é recorrente na região Centro-Oeste do Brasil, onde pode atingir 18 a cada 100 mil pessoas.

O que causa o PFE ainda é um processo desconhecido, mas sabe-se que vários fatores influem nisso, inclusive genéticos. A professora e pesquisadora Maria Luiza Petzl-Erler, do Departamento de Genética da Universidade Federal do Paraná (UFPR), onde fundou e coordena até hoje o Laboratório de Genética Molecular Humana (LGMH) e o grupo de pesquisa Imunogenética, acompanhou boa parte da história da ciência do pênfigo, que começou a investigar no fim dos anos 1980.

Trata-se de uma linha de pesquisa voltada a combater uma doença rara, mas grave e que atinge uma população vulnerável: adultos jovens e adolescentes que vivem no interior do Brasil, geralmente em áreas rurais próximas a córregos e rios, e em comunidades indígenas.

Nesta entrevista, Petzl-Erler conta como a busca por variantes genéticas — ou seja, alterações na sequência genética em posições específicas do genoma do indivíduo — tem guiado a pesquisa sobre fatores genéticos associados ao pênfigo.

“O fator ambiental desencadeador é necessário, porém não suficiente. A maioria das pessoas aparentemente é resistente a seu efeito. Apenas as pessoas geneticamente suscetíveis adoecem de fogo selvagem”, afirma.

Esse será o tema da sua conferência científica na 75ª Reunião Anual da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), marcada para esta segunda-feira, às 9h30, no Auditório Leo Grossmann do Centro Politécnico da UFPR, em Curitiba (consulte aqui a programação).

A senhora já orienta trabalhos sobre o pênfigo foliáceo há algum tempo no Programa de Pós-Graduação em Genética da UFPR. Poderia nos dar um panorama de como as pesquisas têm evoluído e se aprofundado nas causas da doença? Quais os futuros estudos?


Maria Luiza Petzl-Erler | O pênfigo foliáceo é uma doença autoimune que se manifesta por bolhas na pele, problemas de regulação de temperatura e vulnerabilidade a infecções. Trata-se de uma enfermidade com várias causas, que incluem ao menos um fator ambiental desencadeador. A doença, porém, só se desenvolverá caso a pessoa exposta a esse fator externo possua certa combinação de genes.

Iniciei a linha de pesquisa sobre aspectos genéticos do pênfigo foliáceo endêmico, popularmente conhecido como fogo selvagem, em meados da década de 1980. A publicação dos primeiros resultados foi em 1989, quando descobrimos que certas variantes genéticas de HLA [sigla que significa “antígenos leucocitários humanos”] exerce um papel crítico na suscetibilidade à doença. 

Desde então, em dezenas de trabalhos de nosso grupo concluímos que, além de HLA, há muitos outros genes cujas variantes populacionais que também desempenham um papel no risco de uma pessoa adoecer de fogo selvagem. 

O pênfigo é uma disfunção do sistema imunológico que provoca bolhas e feridas na pele por causa da ação equivocada dos anticorpos sobre esse órgão. Ilustração: Leonard Portal Mark/Wellcome Collection/Public Domain

Nas duas últimas décadas, passamos a investigar o efeito da expressão gênica na doença. Diferentemente das variantes genéticas herdadas dos genitores aos filhos, que são as mesmas em todos os tecidos, isto é, células do organismo, “expressão gênica” refere-se à quantidade dos produtos gênicos [proteínas, RNAs], que pode ser influenciada por fatores externos e ambientais, físicos e químicos, tais como exposição ao sol, alimentação, hábitos, infecções, entre outros, e varia entre os tipos celulares de uma pessoa. Com essa estratégia, descobrimos novos fatores de suscetibilidade.

A linha de pesquisa terá continuidade com a aplicação dos métodos mais recentes para sequenciamento completo do genoma humano e comparações entre conjuntos de pacientes e indivíduos livres da doença. Os métodos de sequenciamento de última geração são de elevada resolução, por permitirem identificar todas as variantes genômicas. As variantes associadas a maior suscetibilidade serão analisadas quanto a seus efeitos biológicos. Além disso, serão realizadas análises mais abrangentes e detalhadas de expressão gênica. 

Os resultados de nossos estudos contribuem para o desenvolvimento de novas estratégias de diagnóstico, prevenção e tratamento, e na identificação de marcadores da doença.

Hoje em dia sabemos qual o peso dos fatores genéticos frente aos outros, como ambientais e etc., nesta doença, que tem alta prevalência em certas regiões do Brasil?


MLPE | O fogo selvagem é desencadeado por algum fator ambiental, isso é certo. A endemicidade, no caso, a prevalência elevada na região central da América do Sul, especialmente do Brasil, deve-se à abundância desse fator na região. A área geográfica tem se deslocado ao longo de décadas, por exemplo, no passado a doença era mais comum no Oeste dos estados de São Paulo e Paraná. 

O fator ambiental tem permanecido elusivo. Suspeita-se de que exposição continuada às picadas de certos insetos possa desencadear a doença. Recentemente encontramos evidência indireta de que um vírus, transmitido pela saliva de inseto, poderia ser o fator desencadeador. O suposto vírus não seria patogênico por si só, ou seja, a infecção poderia passar despercebida ou causar sintomas leves. No entanto, resultados conclusivos quanto ao envolvimento de um vírus, ou mesmo de uma proteína da saliva do inseto, ainda não foram obtidos. 

Permanece então a questão: o que a genética tem a ver com isso? O fator ambiental desencadeador é necessário, porém não suficiente. A maioria das pessoas aparentemente é resistente a seu efeito. Apenas as pessoas geneticamente suscetíveis adoecem de fogo selvagem.

Os pacientes têm certos conjuntos de variantes genéticas que permitem que o fator externo desencadeie a doença. Na ausência dos fatores genéticos de suscetibilidade, a pessoa, mesmo estando exposta ao agente ambiental, não adoece.  

Qual é a grande pergunta sobre o pênfigo hoje? Como respondê-la?


MLPE | Aquela que cientistas em todo o mundo almejam responder também para outras doenças: desenvolvimento de tratamento direcionado às causas, e não apenas aos sintomas, que seja eficaz e com poucos efeitos adversos.

Na atualidade, a maioria dos pacientes é tratada com corticosteróides [medicamentos anti-inflamatórios] e a imunossupressão [diminuição da imunidade devido ao uso de certas medicações] é generalizada.

Devido à natureza multifatorial da doença, alcançar esse objetivo é muito difícil. Para isso, temos que prosseguir investigando as causas e as interações entre genótipo e ambiente. 

Quando e por que se interessou por ter o pênfigo como objeto de pesquisa?


MLPE | Em 1984 retornei do doutorado na Alemanha [em Antropologia e Genética Humana, na Universidade de Munique] e envolvi-me com pesquisa e pós-graduação no Departamento de Genética da UFPR. Era meu objetivo investigar questões que poderiam ser relevantes para o Brasil.

Interessei-me pelo pênfigo foliáceo por ser uma doença autoimune raríssima em todo o mundo, porém endêmica no Brasil.

Investiguei também algumas outras doenças, por exemplo, a leishmaniose, mas a linha de pesquisa sobre o pênfigo foliáceo endêmico foi a de maior dedicação e envolvimento. Somos pioneiros e líderes mundiais na pesquisa sobre genética do fogo selvagem.  

Na sua avaliação, o que as investigações científicas sobre essa doença trazem de ensinamentos para a ciência nacional? Acha que esse tema pode ser paradigmático ou mesmo simbólico em algum nível?


MLPE | O fogo selvagem tem uma elevada incidência, sendo um problema de saúde pública afetando majoritariamente a população mais carente, com condições precárias de sobrevivência. Ainda assim, a doença é negligenciada. Contribuir para que ela saia desse limbo é uma das metas do trabalho da equipe. 

Ao lado da ênfase em questões nacionais que mencionei, acredito que a escolha de doenças que não estejam sendo tão intensamente investigadas em países que contam com alto investimento em ciência e tecnologia seja uma boa estratégia.

Por outro lado, nossos trabalhos sobre pênfigo foliáceo endêmico não contam com alto interesse internacional, por isso, nossos artigos são menos citados, em média, em comparação a trabalhos da mesma qualidade sobre câncer ou doença de Alzheimer, por exemplo. Como sabemos, a citação é um critério importante na avaliação de pesquisadores e programas de pós-graduação.

No que se refere à metodologia de laboratório e análise, é a usual para investigações sobre doenças complexas e multifatoriais, como câncer, doenças degenerativas, neurológicas, autoimunes e cardiovasculares, entre outras.


Esta entrevista faz parte de uma série de conversas da Ciência UFPR com conferencistas da Universidade Federal do Paraná que estão na programação da 75ª Reunião Anual da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), em Curitiba.
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Comentários de

  1. Fui diagnosticada com essa doença a 8 anos atrás
    Tratamento com corticóide
    Mas ela sempre retorna
    Quais suplementos além da vitamina d3 pode ajudar a melhorar a pele?

  2. Fui diagnosticado com essa doença em uma himunoflorescencia no ano de 2018, de lá.pra cá somente corticóide 20 mg faz um pouco de efeito, porém vivo com a machucada e exposta, gostaria de saber clínica especializada em no pênfigo foliacio e até.mesmo o contato da universidade

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