Na pesquisa de educação, existe um termo tão forte que assusta: fracasso escolar. O conceito por trás dessa expressão varia, mas em linhas gerais a definição passa por cenários em que a escola vai aos poucos deixando de representar uma perspectiva de futuro para o estudante, diante de muitas reprovações, abandonos e transferências. Segundo uma pesquisa do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) bastante noticiada em 2021, que foi financiada pelo instituto de uma empresa de telecomunicações e usa dados de 2020, o fracasso escolar seria representado no Brasil por 2,1 milhões de estudantes reprovados, mais de 620 mil que abandonaram a escola e outros 6 milhões em distorção idade-série.
Em vista do quadro, o estudo diz que o fracasso escolar é uma “cultura” a ser combatida no Brasil. A questão é: o quanto de expulsão de certas realidades para as quais a escola ainda não está preparada entra na conta desse fracasso?
Para três pesquisadoras do Grupo de Estudos e Pesquisas em Educação para as Relações Étnico-Raciais (ErêYa) da UFPR, o racismo institucional assume boa parte do peso no fracasso escolar do país. É possível que, em vez de democratizar o acesso à educação, os sistemas educacionais estejam expulsando alunos ao não favorecer as discussões sobre racismo e nem buscar combatê-lo no ambiente escolar.
A percepção de que o racismo é um fator na “expulsão branda” que o fracasso escolar representa também está no estudo da Unicef, ainda que discretamente. Por exemplo, os percentuais de frequência à escola de crianças e adolescentes de seis a 17 anos foram menores entre negros e indígenas na pandemia, entre julho e outubro de 2020. O relatório ainda identifica os estudantes atingidos pelo fracasso escolar por um “perfil bastante conhecido”: moradores das regiões Norte e Nordeste, crianças e adolescentes negros e indígenas ou com deficiência.
“O conceito de expulsão que temos trabalhado tem um sentido diferente do que é comumente usado. Em nossa concepção, a expulsão é produzida pela incapacidade de os sistemas de ensino garantirem a permanência e a aprendizagem de determinadas populações em escolas e universidades. Temos percebido que estudantes negras e negros têm sido mais prejudicados”, diz à Ciência UFPR a professora Celia Ratusniak, do Programa de Pós-Graduação em Educação (PPGE) da UFPR e membro do ErêYa.
Para a docente, sem uma reformulação das disciplinas, “a educação antirracista continuará na dependência de um posicionamento ético e político de quem ensina”.
A professora Lucimar Rosa Dias, também do PPGE, coordenadora do ErêYa e autora de livros infantis com temática antirracista, entende que, mesmo com as previsões legais, implementar a ERER exige um esforço que começa nos currículos das graduações.
“As forças contrárias à educação antirracista, no meu entendimento, é permitir que ela seja um complemento e não uma exigência legal do processo educacional”, avalia.
Quando sensibilizados, docentes permitem sensação de pertencimento dos alunos
Em trabalhos recentes sobre o assunto, as pesquisadoras do ErêYa sugerem que a Educação para as Relações Étnico-raciais (ERER), uma diretriz da educação garantida por lei, pode começar cedo a conscientizar professoras e professores, ainda na graduação. A proposta está em um artigo publicado na Revista Internacional de Educação Superior, que traz um relato da experiência da inserção da ERER na disciplina de Didática no curso de Pedagogia da UFPR. A proposta ainda orienta pelo uso da literatura infantil sensibilizada para as relações étnico-raciais como ferramenta para dialogar com os estudantes.
O resultado foi uma “colcha teórica”, com pontos de vista das três agentes envolvidas na experiência. Primeiro, a professora de Didática que transformou a disciplina com inserção da ERER a partir de atividades que discutiam o apagamento de intelectuais negros e negras. Depois, as considerações de uma autora de livros infantis voltados à ERER. E, por último, o relato de uma então estudante de Pedagogia que levou o aprendizado para uma sala de aula durante o estágio.
Ricos em suas constatações, os depoimentos dão ideia de com a falta de uma formação antirracista pesa no dia a dia escolar. “A ausência dessa discussão na formação inicial resulta em profissionais que não estão preparados para lidar com as situações de racismo cotidiano em sala de aula e não constroem um olhar atento para uma educação que ensine e valorize a cultura afro-brasileira e africana. O docente ignora a questão da educação das relações étnico-raciais ou reforça discursos preconceituosos”, avalia a mestranda Ranna Emanuelle Almeida.
Na graduação em Pedagogia, a pesquisadora trabalhou com alunos o livro infantil Cada um com seu jeito, cada jeito é de um!, de autoria de Lucimar Dias, que trata da infância saudável de uma menina negra e sua relação com a família.
Quando Ranna pediu aos alunos e alunas de educação infantil, que não viram as ilustrações do livro, que desenhassem a família retratada, mesmo crianças negras recriaram os personagens como se fossem brancos. Segundo a pedagoga, essa ausência de imaginário representativo no ambiente escolar contribui para a expulsão de negros e negras, que não têm recursos para enxergar o ambiente como sendo deles. Por isso a ênfase dos trabalhos do grupo de pesquisa em usar a literatura infantil para alavancar o pertencimento.