Processo geológico preservou fósseis de serpente-do-mar de forma rara no Brasil Pesquisadores descreveram a carbonificação, condição que permitiu que equinodermos que viveram há 400 milhões de anos se tornassem fósseis em conservação excepcional. Artigo propõe destaque mundial para a Formação Ponta Grossa, no Paraná, como depósito paleontológico
Centro do fóssil do equinodermo encontrado na Bacia do Paraná mostra indícios do processo de carbonificação, que preserva vísceras dos animais. Evento é extremamente raro na parte Sul do planeta. Fotos: Malton Fraga/Labpaleo-UFPR/Acervo
BOLETIM UFPR | Fósseis de serpente-do-mar preservados de forma rara no Brasil

Avançando nos estudos de fósseis de um grupo de equinodermos parentes das estrelas-do-mar, chamados ofiuroides, encontrados em rochas do Período Devoniano — que datam de aproximadamente 400 milhões de anos atrás —, cientistas da Universidade Federal do Paraná (UFPR) puderam descrever o processo geológico raro que permitiu a boa conservação dos fósseis.

A descoberta sobre os fósseis coletados no Paraná, inédita na América do Sul, é considerada rara em todo o mundo por tratar-se de um animal frágil, exigindo condições excepcionais de fossilização.

Os ofiuroides coletados em amostras do Paraná, na região do município de Ponta Grossa, são os primeiros a registrarem restos de vísceras carbonificadas, que resultam em uma película escura, rica em carbono, sobre os fósseis. Dessa forma, é possível conhecer em detalhes a anatomia das espécies Encrinaster pontis e Marginix notatus, já extintas.

A preservação por carbonificação não havia sido registrada até agora em nenhum fóssil de equinodermo. O mais comum é que apenas as partes duras, como espinhos e ossículos, do esqueleto desses animais sejam preservados como fósseis. As partes moles (vísceras) costumam se decompor rápido demais para fossilizar sob condições ambientais normais.

GALERIA | Imagens da investigação dos fósseis de serpente-do-mar da Formação Ponta Grossa
Detalhe do fóssil da espécie 𝑀𝑎𝑟𝑔𝑖𝑛𝑖𝑥 𝑛𝑜𝑡𝑎𝑡𝑢𝑠 com indício de carbonificação
Fóssil da espécie 𝐸𝑛𝑐𝑟𝑖𝑛𝑎𝑠𝑡𝑒𝑟 𝑝𝑜𝑛𝑡𝑖𝑠, já extinta. Essas serpentes-do-mar que viveram no Devoniano eram equinodermos, ou seja, animais marinhos que possuem exoesqueleto e vivem no fundo dos mares
Fóssil da espécie extinta 𝑀𝑎𝑟𝑔𝑖𝑛𝑖𝑥 𝑛𝑜𝑡𝑎𝑡𝑢𝑠, só encontrada na Formação Ponta Grossa até hoje
Mapa da Formação Ponta Grossa, com os pontos onde foram coletados os fósseis
Para obter os esquemas anatômicos das espécies sem avariar os fósseis, pesquisadores adaptaram um tomógrafo odontológico para fazer exames de imagem
Exemplo de foto obtida através da tomografia computadorizada
Fóssil que foi a amostra da tomografia mostrada anteriormente
Trabalho de campo em Ponta Grossa (PR)
Equipe de cientistas na escarpa em Jaguariaíva, cidade de 35 mil habitantes na região dos Campos Gerais
O doutorando Malton Fraga, do Programa de Pós-Graduação em Geologia da UFPR, que pesquisa os fósseis de serpentes-do-mar, em Ponta Grossa
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Detalhe do fóssil da espécie 𝑀𝑎𝑟𝑔𝑖𝑛𝑖𝑥 𝑛𝑜𝑡𝑎𝑡𝑢𝑠 com indício de carbonificação
Fóssil da espécie 𝐸𝑛𝑐𝑟𝑖𝑛𝑎𝑠𝑡𝑒𝑟 𝑝𝑜𝑛𝑡𝑖𝑠, já extinta. Essas serpentes-do-mar que viveram no Devoniano eram equinodermos, ou seja, animais marinhos que possuem exoesqueleto e vivem no fundo dos mares
Fóssil da espécie extinta 𝑀𝑎𝑟𝑔𝑖𝑛𝑖𝑥 𝑛𝑜𝑡𝑎𝑡𝑢𝑠, só encontrada na Formação Ponta Grossa até hoje
Mapa da Formação Ponta Grossa, com os pontos onde foram coletados os fósseis
Para obter os esquemas anatômicos das espécies sem avariar os fósseis, pesquisadores adaptaram um tomógrafo odontológico para fazer exames de imagem
Exemplo de foto obtida através da tomografia computadorizada
Fóssil que foi a amostra da tomografia mostrada anteriormente
Trabalho de campo em Ponta Grossa (PR)
Equipe de cientistas na escarpa em Jaguariaíva, cidade de 35 mil habitantes na região dos Campos Gerais
O doutorando Malton Fraga, do Programa de Pós-Graduação em Geologia da UFPR, que pesquisa os fósseis de serpentes-do-mar, em Ponta Grossa
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Apenas alguns lugares do mundo registram fósseis com traços de partes moles, indicando antigos ambientes com condições bastante exóticas, que permitiram a fossilização de restos orgânicos de certos organismos. O pesquisador responsável pela descoberta, Malton Carvalho Fraga, explica que tais locais são conhecidos como “Konservat-Lagerstätte” — termo alemão para designar depósitos com fósseis em excepcional condição de preservação.

A pesquisa propõe o uso do termo Ponta Grossa Konservat-Lagerstätte para referências às rochas do Paraná ricas em ofiuroides bem preservados, além do bom potencial de preservação de outros grupos fósseis associados.

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“Além da ótima qualidade de preservação, alguns desses ofiuroides também registram evidências de predação, algo muito raro, mas que nos dá a oportunidade de entender mais sobre os predadores desses animais ao longo da história do planeta”, destaca Malton.

A descoberta está registrada no artigo Preservation models of ophiuroids in epicontinental basins: Examples from a new Devonian echinoderm Lagerstätte from Brazil, publicado na revista científica internacional Journal of South American Earth Sciences.

Os resultados renderam uma premiação da Paleontological Society dos Estados Unidos em 2022, além do prêmio de melhor apresentação no evento mundial 4th Palaeontological Virtual Congress em 2023.

Com o uso de alta tecnologia para as análises, envolvendo tomografia computadorizada e microscopia eletrônica de varredura, os estudos indicam que os ofiuroides prosperaram em diferentes fundos marinhos, embora tenham sido preservados principalmente em regiões mais próximas da foz de rios, onde esses animais são anestesiados e soterrados por sedimentos ricos em água doce.

As amostras estudadas foram disponibilizadas por quatro coleções paleontológicas: Laboratório de Paleontologia (Labpaleo) da Universidade Federal do Paraná; Museu de Paleo e Geologia da Universidade de Guarulhos; Centro de Pesquisa Paleontológica da Universidade do Contestado e Museu Geológico de São Paulo do Instituto Geológico de São Paulo.

Processo de carbonificação conserva resquícios de partes moles do ser vivo

A carbonificação ocorre após o soterramento, quando as partes orgânicas do corpo de um organismo soterrado, seja vegetal ou animal, são comprimidas pelo peso do sedimento acumulado acima. O processo é mais frequente em amostras que contém substâncias como quitina, queratina, lignina ou celulose.

Os elementos voláteis da matéria orgânica se perdem — oxigênio, hidrogênio e nitrogênio – restando apenas o carbono, durante o processo de fossilização.

O processo deve ocorrer logo após as primeiras semanas do soterramento do organismo, caso contrário, as partes moles serão decompostas pelas bactérias do sedimento.

A fossilização dos ofiuroides permitiu identificar que eles prosperaram no mar polar que cobriu o Paraná e outros estados do Brasil durante o Devoniano – período em que a Índia, África, Austrália, Antártida e América do Sul ainda estavam unidas no antigo supercontinente Gondwana. A pesquisa aponta que esses animais alimentavam-se de restos de carcaças e de partículas orgânicas presentes no sedimento e na coluna d´água, migrando para novas áreas marinhas mais ricas em alimento quando necessário.

“A maioria desses fósseis de ofiuroides também indica que os espécimes morreram soterrados no mesmo local em que viviam, principalmente por sedimentos expelidos por grandes rios em deltas. Mesmo que sejam derivados de rios, esses sedimentos ainda podem viajar por centenas de quilômetros no fundo do mar, como verdadeiros rios submarinos. Tais fluxos de sedimento carregam consigo grandes volumes de água doce, que provavelmente foi o elemento-chave para anestesiar os ofiuroides e impedir que eles escapassem do soterramento”, detalha o geólogo Malton.

Uso de equipamentos de alta tecnologia nos exames garantiu fósseis intactos

Grande parte do estudo de equinodermos fósseis é realizado apenas com base na descrição macroscópica das amostras de mãos e fotografias a partir delas. Um dos diferenciais da pesquisa da UFPR foi o uso de técnicas avançadas para examinar os materiais coletados.

A alta tecnologia, como o uso de tomografia computadorizada, desvendou espécimes internamente em algumas das amostras sem a necessidade de quebra e destruição do material.

A microscopia eletrônica de varredura contribuiu efetivamente para a identificação do processo de carbonificação das antigas partes orgânicas desses animais. Foi possível fotografar em detalhe alguns fósseis para avaliar a composição química das películas escuras.

Para a pesquisadora Cristina Silveira Vega, coordenadora do Laboratório de Paleontologia da UFPR e orientadora do estudo, o uso de alta tecnologia nas investigações de fósseis não é comum devido ao custo e à necessidade de acompanhamento constante da análise.

“A investigação tafonômica é feita com base na análise apenas das amostras fósseis. Tentar reconstruir os ambientes passados, ou reconstituir processos pelos quais os organismos passaram (soterramento, energia do meio, luminosidade) é um processo raramente utilizado”.

As análises foram realizadas em parceria com o Centro de Microscopia Eletrônica; Laboratório de Imagem do curso de Odontologia e Instituto Laboratório de Análise de Minerais e Rochas do Departamento de Geologia, todos da Universidade Federal do Paraná. O uso de equipamentos do Laboratório de Imagem do curso de Odontologia, por exemplo, torna possível transformar a imagem gerada em uma imagem tridimensional, criando moldes dos exemplares.

Uma serpente-do-mar em movimento. Vídeo: Mateusz Dach/Pexels

Diferentes espécies de serpentes-do-mar ainda habitam os mares

Os parentes das estrelas-do-mar que existem na atualidade possuem um disco central de onde partem cinco braços longos e flexíveis. Os animais podem se movimentar rapidamente sobre o fundo do mar por meio do movimento de “serpentear” de seus longos braços, o que os leva a serem conhecidos popularmente como serpentes-do-mar.

Os pesquisadores explicam que, no registro geológico, os fósseis de ofiuroides são raros devido à fragilidade do esqueleto desses animais, que rapidamente se desarticula após a morte.

O Paraná se destaca por ser a maior fonte de fósseis de ofiuroides da América do Sul, com centenas de amostras coletadas ao longo do último século. A principal concentração dos achados está nos municípios de Ponta Grossa e Jaguariaíva.

Cientista mostra vocação para a paleontologia desde a iniciação científica

Realizada como parte do trabalho de conclusão do curso de Geologia na Universidade Federal do Paraná, a descoberta não é a primeira na carreira do pesquisador. Durante a graduação, Malton identificou novas espécies de serpente e estrela-do-mar no estado. Os fósseis encontrados datavam entre 416 milhões e 359 milhões de anos atrás e o estudo também foi publicado na revista científica internacional Journal of South American Earth Sciences em 2020.

Ao descrever as amostras coletadas, os pesquisadores notaram características peculiares que não se encaixavam em nenhuma espécie conhecida. Para chegar aos resultados, um dos desafios foi a descrição morfológica detalhada da espécie.

O fascínio pela área da paleontologia surgiu ainda na infância, quando Malton assistia a filmes sobre dinossauros. Durante o ensino médio, o estudante descobriu sua vocação ao ler a descrição do curso de Geologia em uma revista de profissões. A participação em programas de iniciação científica o incentivaram a desenvolver trabalhos de campo e minuciosos estudos de laboratório.

Também em 2020, ele foi o primeiro aluno da UFPR a receber o prêmio Undergraduate Prize, oferecido pela The Palaeontological Association (The PalAss) do Reino Unido, por sua proficiência em paleontologia.

Atualmente, Fraga cursa doutorado direto em Paleontologia no Programa de Pós-graduação em Geologia da UFPR e realiza experimentos de fossilização com ofiuroides atuais a fim de gerar dados que auxiliem a interpretação do registro fóssil.

➕ Leia detalhes no artigo “Preservation models of ophiuroids in epicontinental basins: Examples from a new Devonian echinoderm Lagerstätte from Brazil, publicado no Journal of South American Earth Sciences.
Edição: Camille Bropp
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Comentário de

  1. A cada dia, cada descoberta, cada jovem paleontólogo me fazem agradecer por essa vida.
    Congratulações e muitas descobertas pesquisadores da UFPR.

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