Inteligência artificial auxilia na descoberta de medicamentos para doenças virais Premiado com menção honrosa pelo prêmio Capes de Tese 2025, o estudo do moçambicano Alexandre Cobre apresenta uma abordagem multidisciplinar que vai do diagnóstico da Covid-19 à descoberta de novos fármacos
Estudo testou ferramentas para respostas rápidas a pandemias criadas por vírus de RNA, altamente infeciosos. Na foto, em verde, o SARS-CoV-2, causador da Covid-19. Foto: NIAID/Flickr/Reprodução

 

O que começou em 2020 como uma resposta à emergência sanitária da Covid-19 culminou em uma das teses de destaque acadêmico do país. A pesquisa de Alexandre de Fátima Cobre, egresso do programa de Pós-graduação em Ciências Farmacêuticas da Universidade Federal do Paraná (UFPR), aprofundou o conhecimento sobre o Sars-CoV-2 e ainda abriu caminhos inovadores para o tratamento de outras doenças virais, como HIV, dengue e hepatites.

A tese multidisciplinar, que reúne fundamentos de farmacologia e informática, foi recentemente agraciada com a menção honrosa do Prêmio Capes de Tese 2025, um dos maiores reconhecimentos da ciência nacional.

A jornada do pesquisador partiu de uma mudança de rota. Originalmente focado no controle de qualidade de plantas medicinais, Cobre viu na crise da Covid-19 uma oportunidade de aplicar seu conhecimento a um desafio global urgente.

A experiência de pesquisar uma doença em plena evolução foi intensa. “Acompanhávamos milhares de publicações diárias, e era preciso identificar rapidamente lacunas de conhecimento. Ao mesmo tempo, havia uma pressão psicológica muito grande”, relata Cobre, em entrevista à Ciência UFPR. Para dar conta da complexidade e do volume de dados, buscou novas ferramentas, especializando-se em Inteligência Artificial no Departamento de Estatística da UFPR.

“Foi uma experiência única: desenvolver ciência quase em tempo real, em meio a uma crise sanitária global”, afirma.

Entre os diferenciais da tese está a integração de análises sociais aos estudos farmacêuticos. O pesquisador destaca que a pandemia tornou visível um problema histórico de desigualdade no Brasil. A percepção guiou um dos primeiros estudos do trabalho, focado na cidade do Rio de Janeiro. A pesquisa, que avaliou uma coorte de 3.656 pacientes, revelou que fatores como o sexo masculino e a residência em áreas com baixo Índice de Desenvolvimento Social (IDS) estavam associados a atrasos no diagnóstico e, consequentemente, a maiores taxas de mortalidade.

“Esses dados foram fundamentais para orientar políticas públicas e priorizar o atendimento às populações mais vulneráveis”, ressalta Cobre.

Financiado por uma bolsa emergencial da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), o pesquisador propôs o uso da espectroscopia de infravermelho (FTIR) como método diagnóstico para a Covid-19. A revisão sistemática e meta-análise conduzidas mostraram que a técnica possui alta sensibilidade (91,2%) e especificidade (88,6%).

“Para o Brasil, especialmente em regiões com menos recursos, a FTIR poderia ser uma alternativa viável de triagem, por ser mais rápida, barata e sustentável que o RT-PCR, permitindo identificar casos suspeitos mais cedo”, defende.

Ao todo, o trabalho foi organizado em sete capítulos, sendo que quatro deles foram destacados pela Organização Mundial da Saúde como referência pelas contribuições científicas.

O professor orientador da tese, Roberto Pontarolo, evidencia que o legado do trabalho está na consolidação de uma linha de pesquisa aplicada que alia inovação científica à acessibilidade, demonstrando ser possível desenvolver soluções diagnósticas de baixo custo e explorar o reposicionamento de fármacos para responder a emergências sanitárias.

“Alexandre desenvolveu métodos de diagnósticos de baixo custo, identificou novos biomarcadores e aplicou inteligência artificial na busca por terapias inovadoras, estruturando pesquisas com potencial translacional com impacto direto na sociedade e deixando um caminho sólido para pesquisas futuras”.

Inteligência artificial como aliada no enfrentamento de pandemias

A aplicação de inteligência artificial (IA) e machine learning foi um pilar central da tese. Segundo o pesquisador, essas ferramentas foram indispensáveis para analisar a enorme quantidade de dados gerados pela pandemia, permitindo estudar padrões em testes laboratoriais, informações clínicas e dados epidemiológicos de milhares de pacientes em tempo real.

A abordagem também permitiu avanços significativos em frentes como diagnósticos e prognósticos; identificação de biomarcadores e até descoberta de fármacos. A pesquisa trouxe à luz métodos e compostos promissores, que podem representar o futuro no combate a doenças virais.

Os modelos de machine learning foram treinados para prever o diagnóstico e a gravidade da Covid-19 a partir de exames de rotina, como os bioquímicos, hematológicos e de urina. A IA ajudou a identificar sinais químicos no corpo, os biomarcadores, que indicam a progressão da doença. Níveis alterados de ferritina, cálcio e lactato desidrogenase (LDH), por exemplo, foram associados à gravidade da Covid-19.

A pesquisa ainda aplicou IA para analisar o perfil metabólico de pacientes e identificar compostos com potencial terapêutico, além de desenvolver modelos para descobrir terapias que atuam contra mais de uma infecção ao mesmo tempo, como Covid-19, HIV e dengue.

Para Cobre, a principal mensagem de sua tese é a demonstração de como a inteligência artificial, aliada a um olhar multidisciplinar e socialmente consciente, pode revolucionar a ciência farmacêutica.

“Minha pesquisa mostra que ciência, inovação tecnológica e consciência social devem andar juntas, permitindo respostas rápidas a pandemias, orientando políticas públicas e acelerando a inovação na saúde”.

Fármacos “multi-target” combatem vírus assemelhados

A pesquisa também avança para a busca por fármacos multi-target (multialvo), capazes de atuar contra diferentes vírus ao mesmo tempo. Utilizando IA, o estudo analisou mais de 19 mil compostos para identificar candidatos que pudessem agir simultaneamente contra SARS-CoV-2, hepatites B e C, dengue e HIV.

A lógica por trás da abordagem é que todos esses são vírus de RNA (molécula responsável por transcrever a informação genética do DNA e sintetizar proteínas) e compartilham enzimas semelhantes, como a RNA-polimerase, que pode ser um alvo comum.

O estudo propõe o reposicionamento de dois medicamentos já aprovados, o telaprevir e o entecavir, para o tratamento da Covid-19 e da dengue. “A grande vantagem é que esses medicamentos já possuem dados sobre segurança, o que reduz significativamente o tempo e os custos para testes clínicos”, esclarece Cobre.

A pesquisa identificou, ainda, novos compostos com potencial terapêutico, como a nummularina B, o feselol (inibidor do tipo selvagem do vírus) e a naringenina-4′-O-glicuronídeo (inibidor da variante ômicron).

O próximo passo para esses compostos naturais, segundo o pesquisador, é a validação em testes de laboratório (in vitro) e, posteriormente, em modelos animais (in vivo), para então avançar para ensaios clínicos em humanos.

Internacionalização e tese premiada

Para Alexandre, a menção honrosa do Prêmio Capes de Tese é o reconhecimento de uma jornada de seis anos marcada por dedicação e superação. Vindo de uma comunidade rural em Moçambique, ele vê na premiação uma homenagem ao apoio de sua família e de professores, que foram fundamentais em seu percurso.

“Para a Universidade Federal do Paraná, a premiação destaca a excelência da pesquisa realizada na instituição e mostra que a ciência brasileira é capaz de gerar impacto global, competir com grandes centros internacionais e transformar conhecimento em inovação e soluções para a sociedade”, celebra. O pesquisador espera que a conquista sirva de inspiração, especialmente para a comunidade farmacêutica em Moçambique, uma área ainda em desenvolvimento no país.

A trajetória de Alexandre, na análise do docente Pontarolo, evidencia o potencial transformador da internacionalização. “Ele chegou à UFPR apenas com a graduação, sem experiência prévia em pesquisa, e encontrou no PPG em Ciências Farmacêuticas um ambiente que lhe permitiu desenvolvimento pleno como cientista, culminando no prêmio Capes de Tese”.

Para o docente, atrair e formar pesquisadores de outros países — sobretudo de contextos com menos recursos — em condições adequadas de alimentação, moradia e apoio financeiro, somadas a infraestrutura de pesquisa e tutoria qualificada, cria um ecossistema propício ao surgimento de novos talentos e à redução de assimetrias globais em ciência.

“Esse movimento enriquece a diversidade cultural e cognitiva, amplia redes de cooperação e eleva o padrão de rigor e originalidade dos projetos. Ao demonstrar capacidade de acolher talentos e convertê-los em referências científicas, o programa reafirma sua força formadora e projeta a UFPR como instituição de alcance global, fortalecendo sua presença em agendas estratégicas de pesquisa e inovação”.

➕ Leia detalhes na tese “COVID-19, abordagem multidisciplinar no diagnóstico e terapêutica: integrando métodos de diagnóstico e prognóstico, metabolômica na identificação de biomarcadores e inteligência artificial na descoberta de novos fármacos”, defendida no Programa de Pós-Graduação em Ciências Farmacêuticas da UFPR
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