“Expire completamente o ar e encha os pulmões o máximo que puder, feche os olhos devagar e comece não a respirar suavemente como uma criancinha, mas a ouvir o som do silêncio”. O trecho é de uma carta de 1955, em que Jack Kerouac (1922-1969) ensina Allen Ginsberg (1926-1997) a meditar.
Ícones da geração beat, contrária ao materialismo do pós-guerra, o autor de On the Road (1967), romance que fez da estrada um símbolo de recusa às normas sociais, e o de O Uivo (1956), poema que rompeu convenções literárias e expôs o vazio espiritual do ocidente, buscavam em clássicos orientais os princípios para uma vida mais leve. A investigação dos amigos ajudou a formatar as bases da contracultura estadunidense, que ganharia força nos anos 1960.
Vertentes do budismo eram amplamente exploradas pelos escritores, que, embora ainda não conhecessem a Índia, berço dessa religião, analisavam textos sagrados com imenso fascínio. Para entender esse olhar, o discente do curso de História da Universidade Federal do Paraná (UFPR) Fábio Vinicyus Gessinger, orientado pela professora Renata Senna Garraffoni, que pesquisa a presença da cultura antiga na contemporaneidade, vem analisando correspondências entre Kerouac e Ginsberg escritas entre 1952 e 1956 e reunidas em uma coletânea de Bill Morgan e David Stanford, com tradução brasileira de Eduardo P. de Souza.
O trabalho será apresentado na 16ª Semana Integrada de Ensino, Pesquisa e Extensão (Siepe) da UFPR e visa compreender os diferentes budismos presentes nessas interlocuções, à luz de teóricos que estudam a recepção de obras literárias.
Como textos tão antigos e de um contexto sociocultural tão diferente dos Estados Unidos dos anos 1950 eram recebidos por jovens estadunidenses vivendo em meio ao boom da sociedade do consumo? Em que medida o contato com diversas tradições budistas abria o caminho para novas formas de viver, pensar e criar? Esses são pontos centrais do estudo de Gessinger.
Autores resgatavam o oriente para negar modo de vida hegemônico
O questionamento beat atravessado por abordagens espirituais alternativas ao cristianismo tinha a ver com um efeito dominó iniciado no fim da Segunda Guerra Mundial (1939-1945). Na época, os Estados Unidos emergiam como a principal potência econômica e militar do mundo, experimentando um período de prosperidade material, expansão da classe média e fortalecimento da ideia de que o sucesso poderia ser alcançado por meio do trabalho árduo. Vem daí o conceito de american way of life (estilo de vida americano, em português), baseado no individualismo difundido pelas mídias de massa em ascensão, como o cinema e a publicidade.
Enquanto isso, colônias britânicas alcançavam sua independência, a exemplo do que aconteceu na Índia em 1947. O movimento favoreceu a circulação de obras orientais pelo Ocidente. Com a independência indiana, mestres, acadêmicos e escritores do país recém-liberto passaram a visitar os Estados Unidos, e editoras estadunidenses começaram a publicar textos sobre budismo, hinduísmo e taoísmo voltados ao público jovem e urbano.
Esse contato gerou um encanto pelo Oriente, fenômeno que o pesquisador pós-colonial Edward Said descreveria em 1978 como orientalismo: a construção de imagens do Oriente moldadas por interesses, desejos e percepções ocidentais.
A pesquisa de Gessinger admite essa idealização, mas busca entender, com foco nos diferentes budismos abordados nas cartas de Ginsberg e Kerouac, as sínteses decorrentes dessa dinâmica.
“Temos o sentido orientalista, de as pessoas capturarem o budismo e o subverterem, e tem o outro lado que é: Ginsberg e Kerouac estão olhando para outros tipos de vida além daquele ocidental e materialista, inspirando mudanças estéticas e de modos de existir”, diz Gessinger.
“Os escritores da geração beat não querem aquela vida estável pregada pelo american way of life. E aí vão nas tradições antigas orientais para questionar aspectos do próprio capitalismo, resgatando como as pessoas viviam fora desse sistema”, diz a orientadora.
Nesse sentido, a dimensão espiritual desses autores se insere em um contexto social e político que teóricos como o poeta e ensaísta brasileiro Cláudio Willer chamou de mística da transgressão. Ela combina transgressão social, liberdade pessoal e experiências místicas.
“Essas transformações resultam em um tipo específico de agência no mundo.Essa abordagem, aliada à elaboração de uma mística da transgressão, forneceria as bases para a construção do movimento contracultural norte-americano durante a Guerra Fria”, complementa Gessinger.
O pesquisador diz ainda que mapear essa perspectiva é importante para ajudar a explicar a ótica de uma geração cujos ícones vão além de Ginsberg e Kerouac, incluindo mulheres como Diane di Prima, Joanne Kyger e Lenore Kandel, que também desafiaram normas sociais e exploraram espiritualidade em suas obras.
Um exemplo de análise feita por Gessinger é do seguinte trecho:
“Coceiras podem surgir para você coçar; não as coce; são imaginárias, como o mundo; elas são “a obra de Mara, o tentador” (em você mesmo) tentando enganar você e fazer você romper seu samadhi. Enquanto a respiração é êxtase, agora ouça o som adamantino da “eternidade” e olhe para a Via Láctea nas suas pálpebras (que não é nem brilhante nem escura, que não tem nenhuma concepção arbitrária de visão). O corpo esquecido, descansado, pacífico. Mencionei o chá, foi inventado pelos budistas em 300a.C. para esta finalidade, dhyana..” (Ginsberg; Kerouac, 2012, p.270-271)
Aqui, Kerouac instrui Ginsberg para a prática do dhyana, uma espécie de meditação, incorporando conceitos budistas e os reelaborando em sua escrita e compreensão de mundo, segundo o discente. O materialismo do american way of life é colocado em xeque em prol de uma dimensão superior.
“Essa prática generosa entre amigos, da instrução e do aconselhamento pode ser vista como uma técnica para, não só a instrução do outro, mas elaboração e abertura de si para o outro. Assim, vemos os autores buscando outros modos de vida, para além do individualismo hegemônico”, argumenta Gessinger.
Após a apresentação na Siepe, o discente seguirá sua análise pautado em teóricos da recepção como Lorna Hardwick e Charles Martindale, buscando compreender ainda mais as problemáticas que conectam os budismos da Antiguidade Oriental aos autores beat nos anos 1950.
➕ Confira mais pesquisas que ligam a antiguidade à contemporaneidade no blog, Instagram e YouTube do projeto Antiga & Conexões, coordenado pela professora Garraffoni








