O rastreamento do câncer de mama com foco em diagnóstico precoce é uma política implementada há 30 anos no Sistema Único de Saúde (SUS), mas um novo perfil de paciente, as mulheres jovens, tem desafiado diretrizes. Dados do Datasus compilados pelo Observatório de Oncologia, da associação de pacientes Abrale, indicam que o número de atendimentos hospitalares de mulheres com menos de 50 anos devido ao câncer de mama tem crescido no SUS. Entre 2012 e 2022 o aumento foi de 44%, seguindo uma tendência crescente de internações em quase todas as idades.
Além de causar reavaliações sobre políticas de saúde — caso da extensão do acesso à mamografia, anunciada pelo Ministério da Saúde no mês passado —, o fato de mais mulheres jovens estarem em tratamento de câncer de mama traz novos impactos sociais. Um estudo do Departamento de Enfermagem da Universidade Federal do Paraná (UFPR) avança nesse ponto ao escutar mulheres sobreviventes de câncer de mama atendidas pelo Hospital Erasto Gaertner, em Curitiba, entre setembro de 2024 e março de 2025.
De uma amostra de 214 mulheres ouvidas pelas pesquisadoras na aplicação de um questionário de padrão internacional sobre necessidades de pacientes com câncer, 75 tinham de 20 a 50 anos — ou seja, cerca de 35%.
Nesse grupo específico os depoimentos revelam que o câncer de mama abalou todo o núcleo familiar devido à dependência do trabalho doméstico e assalariado desempenhado pelas mulheres. A doença pode fazer com que elas sejam demitidas do emprego e, frequentemente, as impede de cuidar dos filhos menores de idade da forma como cuidavam antes.
O perfil mais comum da pesquisa foi o de mulheres casadas, com filhos, ensino médio completo, empregadas e com renda familiar de um a três salários mínimos proveniente de trabalho. Uma parcela delas chefiava as famílias, nem sempre contando com rede de apoio. A maioria tentava conciliar sequelas do tratamento, incluindo dor, com o cotidiano.
“É uma mulher que não para com a doença, ela continua ativa pela sua família, pela necessidade financeira. Porque é provedora do lar, às vezes chefe de família. Têm escolaridade, uma vida social fora”, avalia a professora Luciana Puchalski Kalinke, que integra o Grupo de Estudo Multiprofissional em Saúde do Adulto (Gemsa) da UFPR.
O Gemsa tem investigado as necessidades de pacientes de câncer nos últimos dez anos. Os dados do estudo sobre mulheres jovens com câncer de mama coletados no Erasto Gaertner, hospital de referência para tratamento oncológico no Paraná, estão sendo avaliados por pesquisadores em nível de iniciação científica, mestrado e doutorado. Parte deles foi apresentada durante a Semana Integrada de Ensino, Pesquisa e Extensão (Siepe) da UFPR, que começou nesta segunda-feira (20).

Cansaço do tratamento prolongado e medo de a doença retornar
Dor, desorganização familiar, prejuízo financeiro e aos planos para o futuro são os principais problemas citados pelas mulheres ouvidas pelas pesquisadoras.
As dores estão relacionadas às fases pós-cirúrgicas e às terapias contra o câncer — radioterapia e quimioterapia —, que podem exigir intervenções no corpo para a abertura de acessos via cateteres. Uma cirurgia específica, a remoção cirúrgica de linfonodos (linfadenectomia), para prevenir contra metástases de câncer na axila e no pescoço, interfere diretamente no dia a dia de mulheres que fazem atividades domésticas.
“Falando de desconforto, a principal queixa delas é o braço. O esgotamento de linfonodos causa muito inchaço no braço em que foi realizada a cirurgia”, conta a estudante Julia Luriane Hermes de Oliveira, que participa do Gemsa como bolsista de iniciação científica e foi responsável por coletar depoimentos.
Um efeito financeiro do tratamento do câncer de mama é a exigência do uso de cinta pós-cirúrgica, recurso que tem o preço de acordo com a durabilidade. “Lembro de elas falarem: ‘eu compro uma hoje, daqui a um mês já não funciona mais, porque o elástico não é bom’. Isso gera também impacto tanto financeiro quanto na qualidade de vida”, conta Julia.
Toxicidade financeira é o termo técnico para o revés nas finanças causado por doenças de tratamento prolongado. No caso do câncer, pesa ainda o fato de que os acometidos pela doença não têm direito a estabilidade trabalhista. Mulheres que estão no ápice da sua vida profissional sentem também a perda de oportunidades.
“A competitividade do trabalho diminui, porque é uma pessoa que vai se ausentar para fazer exames e tratamento. Consequentemente não vai mais ter essa [capacidade de] disputa no mercado, de procurar uma vaga ou uma condição melhor”, avalia a professora Luciana.
Assim como as mulheres com mais de 50 anos — o grupo com maior incidência de câncer de mama —, mulheres mais jovens também sentem os efeitos na autoestima e nos relacionamentos quando precisam remover o seio.
Para essas últimas, porém, os danos às relações familiares e ao planejamento da família, por causa dos impactos do tratamento sobre a fertilidade, foram destacados.
“É diferente das mulheres mais velhas, que têm filhos já estabelecidos. Há uma preocupação maior com os filhos. Em alguns momentos vemos que elas falam deles como forma de resiliência, de viver, de seguir em frente. Mas uma das preocupações das mulheres jovens é com a criação dos filhos”, diz Luciana.
Políticas públicas para o câncer de mama em discussão
Como o SUS pode se adaptar às necessidades dessas mulheres ainda é um assunto que suscita discussões, do diagnóstico precoce à assistência social possível.
Apesar de o governo federal ter ampliado o acesso à mamografia, o Instituto Nacional do Câncer (Inca) manteve neste ano a recomendação dos últimos 20 anos, na qual estabelece que o exame seja realizado como regra a cada dois anos para mulheres entre 50 e 69 anos. Segundo o instituto, trata-se de uma avaliação de custo e benefício, considerando a disponibilidade de mamógrafos no SUS e que o câncer de mama em mulheres mais jovens nem sempre é detectado pelos aparelhos.
O debate também recai sobre o autoexame de mamas, que foi estimulado durante décadas no Brasil. O Inca e a Sociedade Brasileira de Mastologia atualmente desestimulam a prática, por avaliarem o risco de substituição do exame de rastreamento, assim como o fato de os nódulos que podem ser sentidos pelas mulheres em geral já significarem estágio avançado de câncer.
Para Luciana Kalinke os argumentos são válidos, mas não se deve desprezar o número de mulheres que procura tratamento por causa dessa percepção. “Se a pessoa conhece o seu corpo vai conseguir ver uma alteração, qualquer uma que aconteça”.
A docente acredita que haveria avanço no aprimoramento de políticas como a reconstrução da mama pelo SUS — nem sempre disponível nos municípios — e as regras do Programa Nacional de Navegação de Pacientes para Pessoas com Neoplasia Maligna de Mama, aprovado em 2021, que protege e estabelece prazos para o atendimento de pessoas com suspeita de câncer.








