Quem controla os dados da saúde? Estudo discute a digitalização no SUS Trabalho de iniciação científica do Departamento de Geografia da UFPR avalia os riscos de hospedar informações do Sistema Único de Saúde (SUS) em bancos de big techs estrangeiras
Integração de dados do Sistema Único de Saúde (SUS) pode trazer benefícios, mas precisa assegurar o direito à privacidade dos usuários e a soberania nacional. Daixuosin/Getty Images

E se as principais informações sobre a sua saúde fossem reunidas e integradas em um grande banco nacional para facilitar diagnósticos e tratamentos? Essa ideia já está em andamento no Sistema Único de Saúde (SUS), mas, a depender de como é implementada, pode comprometer o direito à privacidade dos cidadãos e a soberania digital brasileira. Isso é o que diz um estudo realizado no Departamento de Geografia da Universidade Federal do Paraná (UFPR), que tem buscado entender as armadilhas envoltas nessa teia.

O trabalho foi apresentado na 16ª Semana Integrada de Ensino, Pesquisa e Extensão da UFPR (Siepe) pelo discente de graduação João Pedro Bueno Ghizelini, orientado pela professora Carolina Batista Israel, que é autora do livro Redes Digitais, Espaços de Poder, Por uma Geografia da Internet (2021).

A transformação digital do sistema público de saúde no Brasil vem avançando em sintonia com as diretrizes da Organização Mundial da Saúde (OMS), tendo como marco o lançamento de uma portaria em 2020 que instituiu a Rede Nacional de Dados em Saúde (RNDS), repositório com informações de operadoras, laboratórios, farmácias e aplicativos usados pelos cidadãos.

O documento também previu a criação do Conecte SUS, plataforma integrada à rede que permite ao usuário acessar registros de vacinas, exames e atendimentos. Em 2024, surgiu o Meu SUS Digital, versão aprimorada do Conecte SUS. Paralelamente às iniciativas federais, nasceram soluções locais, como o Saúde Já Curitiba, desenvolvido pela prefeitura da capital paranaense, que integra dados municipais ao ecossistema da RNDS.

A grande promessa desses projetos é otimizar e personalizar serviços de saúde, mas, dependendo de como são construídos, podem colocar dados nacionais em risco. A começar pelo espaço onde as informações da RNDS são armazenadas. Sua infraestrutura foi inicialmente alocada nos servidores da Amazon Web Services (AWS), sediada nos Estados Unidos, expondo informações sensíveis a empresas estrangeiras.

Para evitar problemas assim, especialistas propuseram que a hospedagem da RNDS fosse feita inteiramente em uma companhia do Governo Federal, a Empresa Nacional de Inteligência em Governo Digital e Tecnologia da Informação(Serpro), o que não se concretizou. Em vez disso, foi implementado o chamado Serpro MultiCloud, infraestrutura combinada com serviços de grandes empresas de tecnologia estrangeiras como a AWS.  Portanto, parte dos dados continua hospedada fora do país e nas mãos de companhias internacionais, mesmo com supervisão nacional, explicam os pesquisadores.

Isso acontece porque o Brasil enfrenta uma dependência tecnológica global, permanecendo refém de servidores localizados nos Estados Unidos, segundo os autores do estudo. Essa situação deixa o país vulnerável a falhas, restrições de acesso ou intervenções capazes de afetar o controle sobre dados estratégicos de saúde.

Sob a lógica do capitalismo de vigilância, conceito da pesquisadora Shoshana Zuboff que descreve o uso massivo de dados pessoais para prever e influenciar comportamentos, elas podem acentuar desigualdades profundas e ameaçar a soberania sobre os dados dos brasileiros.

“O dado pessoal em saúde, além de sensível, é economicamente estratégico. Sabemos que 10 países controlam 88% das patentes em medicamentos e vacinas, e eles estão no norte global”, diz Ghizelini.

Israel explica que esse fenômeno ocorre não apenas em escala global, mas também local e individual, e os desdobramentos do acesso a dados e políticas de privacidade são interseccionais. “É um problema coletivo, mas que afeta mais setores da sociedade do que outros, a depender da vulnerabilidade social”.

Falta de transparência pode comprometer o acesso a direitos

Com foco nessa problemática, Ghizelini realizou uma análise do Meu SUS Digital e do Saúde Já Curitiba, avaliando a política de privacidade desses aplicativos à luz da Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD), que regula o tratamento de dados pessoais por organizações públicas e privadas no Brasil. O pesquisador também analisou a geolocalização dos serviços que hospedam os dados dos usuários, utilizando a ferramenta LocalizeIP para verificar o domínio virtual do Meu SUS Digital.

Ghizelini remeteu ainda um requerimento à Secretaria Municipal de Saúde de Curitiba, com apoio da UFPR, solicitando informações detalhadas sobre a governança de dados do aplicativo Saúde Já Curitiba, como nomes dos responsáveis pelo tratamento, armazenamento, uso para fins de marketing e canais de acesso aos dados dos usuários.

O estudo concluiu que as transformações em curso na saúde brasileira têm um custo alto, e que alguns aplicativos possuem políticas de privacidade pouco transparentes. Nesse sentido, o pesquisador argumenta que a solução para os riscos e assimetrias gerados pela digitalização da saúde no Brasil não deve se restringir ao debate meramente tecnológico, mas precisa perpassar o princípio da soberania digital, capacidade de uma sociedade e seu Estado de definir, governar e controlar tecnologias indispensáveis à sua autodeterminação.

Ghizelini defende também a criação de mecanismos de governança transparentes e democráticos que garantam o controle social e a fiscalização pública das políticas digitais em saúde, e a implementação de uma Reforma Sanitária Digital, proposta por Luiz Vianna Sobrinho, pesquisador e membro da Estratégia Latino-Americana de Inteligência Artificial (ELA-IA).

Essa ideia visa fortalecer o papel do Estado na regulação das tecnologias em saúde, assegurando que o uso de dados e algoritmos atenda ao interesse público e não aos interesses comerciais das grandes corporações. A proposta busca resgatar o espírito da Reforma Sanitária original, que deu origem ao SUS, e adaptá-lo aos desafios contemporâneos da digitalização.

“Uma matéria da The Economist chegou a dizer que os dados são o novo petróleo”, lembra Israel. “E cada vez mais vemos todas as esferas da nossa vida participando dessa nova economia. Precisamos trabalhar para que ela não siga reproduzindo desigualdades e comprometendo o acesso a direitos”, finaliza.

➕ Confira mais pesquisas que investigam as relações entre espaço, tecnologia e sociedade no site, Instagram e Mastodon do laboratório coordenado pela professora Carolina Batista Israel
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