“O que afeta a biodiversidade não é coletar borboletas, é destruir seu habitat” | Olaf Mielke Aos 84 anos, o professor lembra episódios da carreira (naturalizando-se brasileiro em plena ditadura e viajando pelo mundo para coletar borboletas e mariposas) e defende a importância das coleções científicas
Na sua sala no Setor de Ciências Biológicas, em Curitiba, o professor folheia o compêndio sobre borboletas 𝘉𝘶𝘵𝘵𝘦𝘳𝘧𝘭𝘪𝘦𝘴 𝘰𝘧 𝘵𝘩𝘦 𝘞𝘰𝘳𝘭𝘥, lançado em 2022, do qual participou como autor da parte sobre uma classe de borboletas com aparência de mariposas, a 𝘏𝘦𝘴𝘱𝘦𝘳𝘪𝘪𝘥𝘢𝘦. Fotos: Marcos Solivan/Sucom UFPR

Foi ainda na infância que Olaf Mielke aprendeu a amar as borboletas. Nascido em Bonn, na Alemanha, em 12 de junho de 1941, o professor do Departamento de Zoologia da UFPR (Universidade Federal do Paraná), que acaba de receber o título de emérito da Instituição, cresceu acompanhando o pai taxidermista (profissional que preserva e monta animais mortos) na coleta de insetos e se apaixonou pelos lepidópteros, nome científico da ordem.

“Uma vez estávamos no campo e meu pai começou a me dar borboletas para guardar em nossa coleção entomológica com alfinetes. De repente, os alfinetes acabaram e tivemos que usar os que estavam com os gafanhotos. Naquele momento, sem muita filosofia, eu, que era fã de gafanhotos, virei fã de borboletas e mariposas”, diz.

As expedições com o pai foram o prenúncio de uma longa jornada de dedicação à ciência brasileira. Mielke veio para o Brasil com a família logo após a Segunda Guerra Mundial, começou a estagiar no Museu Nacional do Rio de Janeiro, estudando borboletas e mariposas, e é hoje um dos principais especialistas no assunto do país.

GALERIA | O lugar de Mielke na UFPR
Porta da Sala 1 do Laboratório de Estudos de Lepidoptera Neotropical
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Porta da Sala 1 do Laboratório de Estudos de Lepidoptera Neotropical
O professor Olaf Mielke começou seu trabalho na UFPR aos 25 anos, na década de 1960
Espécimes de borboletas da família 𝘏𝘦𝘴𝘱𝘦𝘳𝘪𝘪𝘥𝘢𝘦, que parecem mariposas
O andar do Setor de Ciências Biológicas que o professor frequenta há quase 60 anos
Bandejas da coleção entomológica da UFPR, iniciada por Jesus Santiago Moure
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Porta da Sala 1 do Laboratório de Estudos de Lepidoptera Neotropical

A vinda para Curitiba partiu de um convite do fundador do Departamento de Zoologia da UFPR, Padre Jesus Santiago Moure (1912-2010). Mielke tinha 25 anos quando iniciou como técnico no laboratório da Universidade, deixando um acervo com cerca de 180 mil lepidópteros no Museu Nacional.

Ao longo de sua carreira, o professor, em suas 507 publicações já descreveu 318 espécies, 32 gêneros e 3 tribos de insetos, tendo realizado trabalhos de campo por todos os estados brasileiros, e diferentes países das Américas. “Na América do Sul, só não coletei nas Guianas”, diz.

Seus mais de 60 anos de dedicação à pesquisa, ao ensino e à difusão do conhecimento científico envolvem descobertas, mas também histórias como a do naufrágio de uma embarcação na fronteira do Brasil com a Venezuela, do qual se salvou por pouco. “Depois de dois ou três dias veio um barco para nos resgatar, mas foi complicado”, lembra.

Nesta entrevista, Mielke detalha seu trabalho como pesquisador, comenta os desafios da profissão e analisa o atual panorama da Entomologia no Brasil.

Como foi se naturalizar brasileiro em plena ditadura militar?

Olaf Mielke | Solicitei minha naturalização e fui entrevistado por um delegado da Polícia Federal na praça Mauá, no Rio de Janeiro, em 1965. Ele me perguntou da minha formação e respondi que tinha formação superior. Ele então perguntou o curso que tinha feito. Respondi História Natural pela Universidade do Estado da Guanabara, atual Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Aí o delegado disse que isso não era curso superior. Perguntei o que era curso superior e ele então mencionou medicina, direito, engenharia e talvez outros mais. Fiquei quieto, que era a melhor opção e fui naturalizado. 

Hoje, o senhor figura entre os principais pesquisadores de lepidópteros do Brasil. Como é coletar borboletas?


OM | Para coletar, buscamos uma área promissora para borboletas e, com uma rede entomológica, que tem mais ou menos 50 centímetros de diâmetro, capturamos os exemplares. Posteriormente, a borboleta é colocada dentro de um envelope entomológico com uma pinça, só não podemos tocar nas asas para não perder as escamas. Daí, levamos ao laboratório e preparamos os exemplares em um alfinete entomológico com as asas abertas em uma base de madeira específica para isso, chamada de esticador, e então colocamos em uma estufa para secar. Dessa maneira, o exemplar se conserva com as asas estendidas para ser estudado, apreciado e guardado em uma gaveta. Os alfinetes entomológicos devem ser de aço inoxidável para não enferrujar – os melhores são fabricados na Alemanha e na República Tcheca.  

O que mudou nessa tarefa ao longo dos seus 60 anos de carreira?


OM | Eu comecei fazendo minhas gavetas entomológicas e os armários. Hoje, não é mais preciso. Aqui no Departamento, temos quase 8 mil gavetas próprias, dispostas em armários de aço. Mas ainda faço minha rede entomológica com voal. Na Europa, há muitas empresas que fazem, mas é caro importar.  

Em suas coletas, o senhor já percebeu alguma transformação nos animais que possa estar relacionada às mudanças climáticas?


OM | Olha, todo mundo pergunta isto, mas sinceramente eu não sei, porque as borboletas mudam sempre. Como o tema das mudanças climáticas está em alta, muita gente direciona suas pesquisas para questões como essa, mas nem tudo tem a ver com aquecimento global e é preciso ter honestidade intelectual para não cair em respostas padrões. Tudo deve ser estudado caso a caso.

Em suas expedições, o senhor chegou a descobrir espécies. Quantas foram e como é esse trabalho?


OM | Quando a gente vai para o trabalho de campo e coleta alguma coisa, tentamos identificá-la pela literatura do momento e, se não conseguimos, é porque provavelmente aquela é uma espécie nova. Então, avaliamos criteriosamente a literatura, revisamos exemplares das coleções e só então descrevemos numa revista científica. Ao longo da minha carreira, descrevi 318 espécies, 32 gêneros e três tribos novas.

Muitas coleções de insetos são feitas por particulares. Qual a proporção entre o que é coletado por colecionadores independentes e por pesquisadores especializados?


OM | A maioria das coleções de borboletas e besouros no mundo vem de autônomos. Porque eles podem até ter poucos recursos, mas moram na região e coletam com frequência. Já o cientista tem horário de trabalho e limitações temporais. Enquanto uma expedição científica coleta animais por um período específico, a pessoa que mora no local está o ano inteiro coletando.

Para você ter uma ideia, a coleção do Museu Nacional – aquele que queimou – tinha mais de 180 mil exemplares, dos quais 160 mil eram provenientes de coleções entomológicas particulares. É a mesma coisa no Museu Britânico, no Museu de Paris, no Natural History Museum, Washington, e no Museu de Munique. Juntos, eles têm mais de 30 milhões de exemplares e por volta de 90% disso é de coleções autônomas cujos proprietários faleceram e deixaram seu acervo.

Na nossa universidade, estamos com mais 350 mil exemplares de lepidópteros. Desses, uns 150 mil mais ou menos são provenientes de coleções de autônomos. Eles investiram, fizeram as suas coleções e depois as venderam ou doaram. As que estão depositadas aqui na UFPR foram compradas pelo Governo Federal ou doadas.

E quanto custam?


OM | Chegamos a comprar uma coleção grande por 2 dólares cada exemplar. Quanto é isso hoje? Dá R$ 10, R$ 12 por exemplar. Para uma coleção feita durante 30, 40 anos, isso é muito pouco. Mas, frequentemente, há unidades vendidas em feiras por 100 dólares ou mais, a depender da raridade, beleza, o encanto e o gosto e disposição do autônomo em querer pagar.

Muito interessante isso. Eu já vi uma borboleta sendo vendida em Paris por mil euros porque era metade macho e metade fêmea (um exemplar ginandromorfo). Isso acontece uma vez em um milhão, mas acontece. Alguém teve a sorte de pegar e receber por essa raridade.

Eu sei que muitas pessoas não gostam de coletores e pesquisadores autônomos, porque muitos não dão acesso aos seus acervos, mas também têm muitos cientistas que aparecem para roubar bicho. Então, sabendo disso, eles não dão acesso, pois na ciência também tem essa coisa de passar os outros para trás. Histórias que nem dá para contar, mas ocorrem. Eu nunca tive problemas, mas sei que é difícil, pois conheço muitos autônomos.

Existe uma crítica de que esse tipo de coleta e acervo pode extinguir animais, comprometendo a biodiversidade. Qual a sua posição quanto a isso?


OM Falando em invertebrados, isso é absolutamente infundado. Sabe quantos insetos os passarinhos comem por mês? Na Alemanha, filmaram um ninho de passarinhos com dois filhotes. Em 30 dias, cada filhote comeu duas mil larvas de borboletas. Nunca vamos coletar tudo isso nesse curto espaço de tempo. Então, é ridículo pensar que afeta a biodiversidade. O que afeta a biodiversidade de invertebrados é a devastação da vegetação natural, a destruição do habitat. No estado de Illinois, nos Estados Unidos, por exemplo, um estudo mostrou que os carros matam 20 milhões de lepidópteros em uma semana, ou seja 80 milhões em um mês e não consta uma diminuição da fauna desses insetos.

E quanto tempo pode durar uma coleção de borboletas?


OM | Muito tempo. Eu já examinei exemplares em perfeito estado de conservação coletados em 1690. O Museu Nacional do Rio de Janeiro tinha exemplares coletados por volta de 1920. Isso não estraga nunca, a não ser pela incompetência administrativa.

Como é que não estragam?


OM | Bom, nós, seres humanos, temos um esqueleto interno, um endoesqueleto, e o esqueleto é durável. No inseto, essa carapaça dura é externa, eles têm exoesqueleto. Então, a parte de dentro seca e a parte externa se mantém rígida.

É importante apenas utilizar técnicas para cuidar desses animais: manter a sala fechada para prevenir a entrada de pragas; evitar luz para proteger a cor; cuidar da instalação elétrica e infraestrutura para prevenir incêndios, entre outros aspectos. Nossa coleção, por exemplo, está dentro de uma sala de concreto e os armários são todos de aço. Então, há um risco menor de danos. E tem que ter manutenção. Tem sido assim que a coleção de insetos da UFPR vem chegando aos 65 anos.

Hoje, a coleção entomológica da UFPR é aberta apenas a cientistas. Como fazer com que esse conhecimento chegue à comunidade?


OM |A entrada desse tipo de acervo é controlada para podermos preservá-lo e entendemos também que disponibilizar uma coleção de 350 mil exemplares para visitação não é interessante para a comunidade do ponto de vista da educação. Seria cansativo e pouco eficiente olhar 350 mil animais, muito repetitivo. 

Mas poderiam ser organizadas exposições com exemplares específicos de forma estratégica e didática, com textos curtos e interessantes, para que as pessoas soubessem a importância das borboletas. Elas são símbolos de ressurreição, fundamentais na polinização, além da beleza que se conhece. As pessoas precisam conhecer para entender o valor. 

A tecnologia também é um caminho a se pensar. Tem algo sendo feito para digitalizar esse acervo?


OM | Isso é difícil hoje porque temos apenas três pesquisadores aqui e um acervo de 350 mil animais. Nossa rotina envolve dar aulas, responder e-mails, dar entrevistas, escrever artigos e aí faltam pessoas e sobretudo recursos para informatizar esse material.  

Mas essa dificuldade é no Brasil todo. Temos por volta de 10 ou 12 pesquisadores em lepidópteros no Brasil para uma fauna de 15 a 20 mil espécies. É muito pouco. Precisamos de mais pesquisadores, com apoio de tecnologistas e mais recursos. Muitas coisas básicas acabamos pagando do próprio bolso porque a Universidade não tem recursos e há muita burocracia para conseguir coisas pequenas. Mas ainda bem que dá pra fazer de alguma forma. A gente se diverte. 

Durante a última década, vivemos um período de desmonte das universidades públicas com cortes de recursos e ataques à pesquisa. Como vê isso na entomologia e como evitar que esses ataques ameacem o conhecimento científico que o senhor vem ajudando a construir?


OM | A minha impressão é que o sucesso das Universidades ainda é muito medido pelo número de estudantes da graduação, nunca pela pesquisa, embora o texto do nosso estatuto preze por ensino pesquisa e extensão. Isso que é o triste.

E o problema da Entomologia e da ciência básica é que hoje elas não geram recursos rapidamente. Estudar melhoria da soja, por exemplo, dá dinheiro, e recebe mais investimento do que nós. Só que a entomologia é fundamental para entender problemas da vida, pensar a dinâmica dos ecossistemas, temos muitos insetos que oferecem princípio-ativo para tratar doenças e ainda não sabemos, então, é fundamental estudar mais.

Mas entramos numa questão que é a falta de recursos: pessoas qualificadas para trabalhar nós temos, o difícil é pagar essas pessoas para estarem atuando. Nosso curso de pós-graduação consegue formar em torno de 20 doutores por ano, mas depois não têm emprego para eles. Nem metade desses egressos é aproveitada como tal.

Acredito que precisamos dar apoio a esses pesquisadores durante a pós-graduação, mas também pensar “a pós-pós graduação”, acompanhando a inserção dessas pessoas no mercado. Mas não sei, isso vai depender dos nossos superiores. Ainda venho trabalhar todos os dias, mas ando meio às avessas com essas situações. Apesar disso, eu me divirto. Como gosto de estudar as borboletas, conto com o respaldo dos colegas e é isso que importa.

➕ Leia e baixe o livro “Butterflies of the World: Hesperiidae (Parte 49)”, editado por Bauer e Frankenbach, de 2022 (em inglês)

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