Milho expõe conflitos entre comércio internacional e direitos de povos tradicionais Importante na alimentação de povos tradicionais, mas também commodity com peso em dólar, o grão está no centro de embates sobre controle de sementes e contaminação genética. Disputas nos tribunais fundamentam tese que investigou contraposição que tem agricultores e indígenas de um lado; e agronegócio e transnacionais do outro
Camponeses tentam preservar sementes selvagens de milho em meio à expansão das técnicas de transferência genética que reduzem diversidade do grão. Foto: Coletivo Triunfo/Facebook/Reprodução

O Brasil é um dos países que mais exportam grãos no mundo e o milho está entre seus principais produtos. Em 2023 o país desbancou os Estados Unidos no setor, com uma saída de 55 milhões de toneladas. Mas o que pode ser uma boa notícia à primeira vista, aparece como um problema a depender da perspectiva adotada. Foi o que revelou um estudo que analisou as relações conflituosas em torno dessa cultura milenar.

A disputa envolve por um lado camponeses, comunidades tradicionais e povos indígenas na defesa de suas práticas e territórios. Eles lutam para proteger suas sementes da contaminação genética por transgênicos e por manter vivas suas técnicas de manejo e armazenamento. Do outro lado, o conflito envolve grandes produtores do agronegócio brasileiro e conglomerados internacionais, empresas que atuam no ramo de sementes e agrotóxicos.

Segundo a pesquisadora Naiara Andreoli Bittencourt, que fez o estudo durante seu doutorado no Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal do Paraná (UFPR), o milho aparece como uma síntese da tensão entre a produção do grão como alimento e componente cultural em contraposição ao cultivo voltado essencialmente ao mercado.

“O milho é elemento presente na cultura camponesa, indígena e quilombola no Paraná e no Brasil. Não é possível trabalhar com essas comunidades, sem que a cultura alimentar e de plantio apareça como um dos elementos centrais. A situação-problema que emergiu como originadora da pesquisa foi a contaminação química e genética dos plantios tradicionais dos agricultores, o que se espraia em múltiplas escalas e dimensões”, explica.

A pesquisa, que articulou a investigação teórica e a atuação da pesquisadora como advogada popular, recebeu menção honrosa no Prêmio Capes de Teses de 2024. Para a professora Liana Carleial, que orientou o trabalho, a tese se destacou por trazer em sua metodologia a experiência que Naiara desenvolveu ao atuar entre os camponeses e acompanhar sua luta pela terra e pela preservação de suas sementes.

Atuação prática da pesquisadora deu pistas para a investigação

O contato de Naiara com seu objeto de pesquisa começou com sua atuação na organização Terra de Direitos, onde trabalhou como assessora jurídica e depois advogada em questões agrárias e socioambientais . Ela explica que se dedicou principalmente à litigação estratégica, prática jurídica que busca, a partir de uma ação individual, gerar repercussões estruturais mais amplas. Assim, parte-se de um caso emblemático com o objetivo de atingir impactos coletivos.

A contaminação genética foi uma das primeiras preocupações dos agricultores com que a pesquisadora teve contato. Como a polinização do milho é feita pelo ar, é comum que o pólen de plantas transgênicas alcance plantações próximas resultando na contaminação.

Nesse caso, os novos grãos vão trazer a carga genética transgênica, genes de outras espécies adicionadas ao milho — que caracteriza os Organismos Geneticamente Modificados (OGM), como são chamados formalmente. Isso além de não trazer nenhum benefício para culturas tradicionais e acabar com a característica natural das sementes, pode resultar em problemas jurídicos já que essas variedades são patenteadas.

Foi no trabalho com o Coletivo Triunfo, um grupo de agricultores do centro sul do Paraná que luta contra a contaminação genética, que Naiara identificou os problemas relacionados à questão. Ela explica que o grupo se organiza para realizar testes de contaminação genética em feiras ou festas de sementes crioulas. O objetivo é preservar o material genético, fruto de conhecimentos tradicionais e legado de seus ancestrais.

“Aquela semente pode estar com a família há dezenas de anos, selecionada a partir de características agrícolas e culturais que são valorizadas por aquela comunidade. Não foram poucas vezes que vimos as lágrimas de tristeza quando seus milhos estavam contaminados ou de alívio quando os resultados eram negativos”, registra Naiara.

Os tribunais têm dificuldades de entender a complexidade dessa situação. “Traduzir a necessidade de garantia jurídica para que essas sementes sejam protegidas é extremamente complexo”, expõe a pesquisadora.

Ela exemplifica com a Ação Civil Pública que questionou a Resolução Normativa nº4 de 2007 do CTNBio (Comissão Técnica Nacional de Biossegurança) sobre a coexistência entre o milho transgênico e o tradicional. A ação que busca uma coexistência verdadeira com garantias para os dois lados se encontra no Superior Tribunal de Justiça (STJ) mas chegou a ser interpretada como uma tentativa de acabar com os transgênicos.

A repercussão dos conflitos na seara jurídica também aparecem nos territórios indígenas. A pesquisa evidenciou o uso de práticas do agronegócio, como a pulverização com agrotóxicos, sendo mobilizadas para a expulsão de povos originários de suas terras. Um dos casos relatados é do povo Ava-Guarani no oeste do Estado do Paraná, o que a pesquisadora classificou como “uma verdadeira guerra química”.

“Além de lutarem pela própria vida e coexistência, os Ava-Guarani lutam para preservar suas sementes, em especial o milho branco, e junto com ele suas tradições, rituais e cultura”, completa a pesquisadora.

A pesquisa evidenciou que esses problemas acabam por fragilizar as comunidades tradicionais e indígenas de maneira geral, mas de uma maneira marcante no âmbito da justiça, que deveria ser um lugar de proteção para essas pessoas.

“Há uma omissão jurídica, que acaba por favorecer as cultivares convencionais e transgênicas, no que se refere à proteção das sementes crioulas e tradicionais. Isto é, não há norma de coexistência adequada, não há responsabilização por perdas derivadas de contaminações químicas ou genéticas e ainda há uma possibilidade de cobrança de royalties dos agricultores que são contaminados involuntariamente, pois a semente passa a adquirir parte das informações genéticas da cultivar transgênica, por exemplo”, denuncia Naiara.

Naiara conta que a tradução do que acontecia nos tribunais para as comunidades também era parte de seu trabalho, já que tanto a linguagem como a lógica do direito nem sempre é muito acessível. Nesse tipo de tarefa a confiança construída ao longo do tempo era essencial.

Pesquisa caracterizou como cercamento jurídico as práticas que prejudicam as comunidades

As formas jurídicas e tecnológicas empregadas contra as comunidades tradicionais foram chamadas no trabalho de “cercamentos”. O conceito surgiu no século XIX para se referir aos acontecimentos no início do capitalismo, quando, na Europa, as terras de uso comum foram cercadas e os camponeses que as utilizavam há muitas gerações foram expulsos.

Segundo Naiara essa prática apareceu no contexto da pesquisa de três formas: com o registro das sementes, na adoção de pacotes toxicodependentes, baseados em sementes transgênicas e agrotóxicos, e na expropriação das práticas tradicionais dos agricultores. Ela constatou que a concentração de empresas que patenteiam esse tipo de tecnologia caminha com a restrição do cultivo e circulação de materiais genéticos tradicionais.

“De início há o processo de controle privado proprietário através do patenteamento e restrição de uso de tecnologias que são derivadas de materiais genéticos aprimorados e selecionados há milênios. O que era de uso comum e coletivo, sem restrição de circulação, passa a ser mercadoria proprietária e monopolizada”, explica.

Outro problema relacionado é a tentativa de enquadrar a lógica das sementes crioulas no modelo jurídico dos cultivares, que segue um modelo parecido ao de registro de patentes, quando alguém desenvolve um tipo particular de planta e pode cobrar royalties pelo seu uso. Naiara explica que não é possível fazer isso para proteger as sementes tradicionais, pois elas se baseiam justamente na sua adaptabilidade e heterogeneidade, enquanto o registro exige a padronização.

A transformação do milho em commodity

Apesar de ser a mesma planta, as diferentes perspectivas de produção acabam por gerar grandes rupturas. Naiara explica que apesar da commodity também poder ser utilizada na alimentação, o seu uso é voltado para a produção de amidos, xaropes e produtos ultraprocessados, além é claro do uso para alimentação animal. Na lógica da agricultura familiar, ainda que uma parte vá para a alimentação animal, a centralidade é a alimentação humana. Daí resultam os produtos como as farinhas, fubás e canjicas, entre outras iguarias presentes em diversas culturas, desde a famosa pipoca, até as diversas receitas, de cuscuz, polenta e os variados doces a base de milho.

A origem do milho e sua chegada no território brasileiro
A planta que conhecemos é fruto do trabalho de melhoramento genético feito pelos povos indígenas que criaram, por meio de seleção artificial, diversas variedades com alta produção de grãos. Os primeiros cultivos registrados aconteceram há mais de 7 mil anos no México, provável origem da planta, de onde se espalhou para as regiões do Caribe e outras parte do continente, chegando no Brasil em algum ponto próximo de 6 mil anos atrás. Povos indígenas das regiões baixas amazônicas, do Cerrado e da Mata Atlântica desenvolveram ao longo desses milênios modos próprios de conservação, seleção e manejo do milho, resultando em intensa agrobiodiversidade no Brasil.

A transformação do grão em commodity não é muito antiga, iniciando em meados do século XX. Antes disso era considerada uma cultura “bastarda”, como explica Naiara, servindo para alimentação das classes pobres latino-americanas, africanas e europeias.

No Brasil, foi na década de 1940 que o cultivo se tornou empresarial, com a chegada de sementes híbridas, emprego de maquinário e uso de agrotóxicos. E foi com a explosão da exportação de produtos primários dos anos 2000 que o atual cenário se estabelece, com forte presença de transgênicos.

A pesquisa mostra que neste modelo se conforma um agronegócio brasileiro extremamente dependente de tecnologias e insumos de empresas transnacionais, que fornecem as sementes modificadas geneticamente e os agrotóxicos relacionados a elas. Hoje no Brasil, 90% da produção nacional é transgênica enquanto 96% das patentes dessas sementes estão concentradas em apenas três conglomerados empresariais, todos estrangeiros, como revelou a pesquisa.

Produtos proibidos na Europa e Estados Unidos têm livre circulação no Brasil

Naiara explica que há no senso comum a ideia de que as tecnologias transgênicas aumentam a produtividade e são responsáveis por reduzir à fome, o que é falso. O estudo revelou que as sementes modificadas atualmente liberadas no Brasil foram feitas principalmente para resistir a herbicidas, que são desenvolvidos nas mesmas empresas que fornecem as sementes. “Com os transgênicos passou-se a utilizar mais agrotóxicos e não menos”, revela a pesquisadora.

Os números sustentam os resultados da pesquisa. Das 59 variedades transgênicas de milho autorizadas no país, 34 apresentam tolerância a herbicidas combinada à resistência a insetos, 12 apresentam resistência a insetos e 10 apresentam tolerância a herbicidas. As sementes chegam a receber uma calda com até cinco agrotóxicos diferentes.

Somente uma das variedades transgênicas apresenta características que fogem desse padrão, como resistência maior à seca, restauração de fertilidade para a produção de sementes e aumento da estabilidade térmica da amilase, enzima do milho que transforma carboidratos em glicose – a manutenção dessa enzima melhora o desenvolvimento da planta.

O trabalho revelou uma alta concentração de produtos cuja a segurança de uso é contestada.

“Dos 129 ingredientes ativos autorizados no Brasil para a cultura do milho, 61 são Pesticidas Altamente Perigosos, correspondendo a 47% dos agrotóxicos autorizados para a cultura, 44 são classificados como prováveis carcinógenos, 47 desses ingredientes ativos não são registrados na União Europeia e 41 não são registrados nos Estados Unidos”, revela a pesquisadora.

Todo esse contexto de conflitos e prevalência do modelo agroexportador também tem reflexos na economia brasileira. Naiara expõe no seu trabalho que a dependência das empresas estrangeiras e as práticas de usurpação identificadas se inscrevem em um modelo econômico de dependência do Brasil em relação às principais economias globais que se beneficiam da transferência de valor permitidas por essas relações. Esse tipo de capitalismo dependente, segundo teóricos como Florestan Fernandes e Ruy Mauro Marini, transfere recursos para as economias centrais condenando os países periféricos à persistência do subdesenvolvimento.

Apesar de todas essas relações, a pesquisa evidenciou também “a resistência dos povos agricultores, que desafiam a lógica hegemônica e encontram caminhos persistentes de reproduzir o patrimônio genético e sua cultura alimentar”, como aponta a pesquisadora.

➕ Leia detalhes na tese ”O milho entre o alimento-cultura e a mercadoria-commodity: relações jurídicas dependentes e o cercamento das práticas dos povos agricultores no Brasil“, defendida no Programa de Pós-Graduação em Direito da UFPR
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