Impressão 3D baixa custo de órteses pediátricas para pé torto congênito Método alternativo criado pelo Laboratório Engenhar-MEC, da UFPR, une conceitos interdisciplinares para uma tecnologia assistiva mais acessível. Assim tem produzido dispositivos que tratam má-formação presente em um em cada mil bebês
Órtese desenvolvida pelo Engenhar-MEC, que quer oferecer alternativa à saúde pública, custa uma parcela do preço médio no varejo. Fotos: Marcos Solivan/Sucom UFPR

Tecnologias assistivas são recursos que buscam garantir qualidade de vida, autonomia e inclusão para pessoas com deficiência. Entre elas estão as órteses, dispositivos utilizados para alinhar ou corrigir alterações causadas em membros, órgãos e tecidos.

As órteses são parte fundamental de diversos tratamentos ortopédicos, como o do pé torto congênito — má-formação nos membros inferiores que atinge de uma a duas a cada mil crianças nascidas no Brasil, de acordo com grupo social, segundo o Ministério da Saúde. O preço das órteses para este caso, porém, pode ser um obstáculo para as famílias, especialmente as de baixa renda.

Foi pensando nisso que o professor Sérgio Fernando Lajarin, do Departamento de Engenharia Mecânica da Universidade Federal do Paraná (UFPR), começou um projeto de fabricação de órteses por meio da manufatura aditiva — também conhecida como impressão 3D — e da termoformagem, técnica usada para moldar plásticos. O trabalho envolve um estudo interdisciplinar e busca inovar a área da Tecnologia Assistiva, propondo alternativas mais baratas.

GALERIA | Da engenharia para a saúde pública
Professor Sergio Lajarin, do Departamento de Engenharia Mecânica da UFPR
Método alternativo para produzir órteses pediátricas para o pé vendo sendo desenvolvido nos últimos cinco anos
Peças da órtese são produzidas por meio de impressão 3D e termoformagem, que molda materiais plásticos
Tamanhos das órteses produzidas no laboratório beneficiam bebês de até um ano de vida
Laboratório reúne cerca de 30 estudantes de Engenharia Mecânica e Terapia Ocupacional
Impressão 3D está na origem da criação do laboratório, impulsionado pelas demandas da Rede de Combate à Covid da UFPR
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Professor Sergio Lajarin, do Departamento de Engenharia Mecânica da UFPR
Método alternativo para produzir órteses pediátricas para o pé vendo sendo desenvolvido nos últimos cinco anos
Peças da órtese são produzidas por meio de impressão 3D e termoformagem, que molda materiais plásticos
Tamanhos das órteses produzidas no laboratório beneficiam bebês de até um ano de vida
Laboratório reúne cerca de 30 estudantes de Engenharia Mecânica e Terapia Ocupacional
Impressão 3D está na origem da criação do laboratório, impulsionado pelas demandas da Rede de Combate à Covid da UFPR
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O laboratório Engenhar-MEC, coordenado por Lajarin e formado por cerca de 30 estudantes de Engenharia Mecânica e Terapia Ocupacional, já produziu dezenas de órteses do modelo Denis-Browne para uso de bebês com pés tortos que fazem tratamentos em hospitais de Curitiba. A ideia veio a partir de uma experiência pessoal: a filha do professor Lajarin foi diagnosticada com pé torto congênito ao nascer. Após um tratamento inicial com gesso, era o momento de utilizar a órtese, para que o pé da filha pudesse ficar no lugar.

Ao verificar o modelo, que custava entre R$ 250 e R$ 500, Lajarin percebeu que conseguiria fazer uma versão alternativa e mais barata pela impressão 3D, que custaria cerca de R$ 50 (em valores atualizados) e poderia atender as famílias de baixa renda que necessitavam do aparelho. Com sugestões do médico ortopedista que atendia a filha, o professor desenvolveu algumas versões da órtese Denis-Browne até chegar em um modelo final. Desde então, a partir de pedidos de alguns hospitais da capital paranaense, os alunos do Engenhar produzem as órteses e outras tecnologias assistivas.

“Começou dessa forma, de uma necessidade que eu tive e eu vi que era possível fazer uma versão que atendia a necessidade, cumpria a função, que é o mais importante, e com custo muito inferior ao produto comercial”, contou à Ciência UFPR.

As órteses são produzidas e doadas conforme demanda dos hospitais e instituições de Curitiba que fazem contato com o Engenhar. Elas estão sendo avaliadas em caráter experimental, já que ainda não há um estudo que ateste a eficácia clínica do modelo produzido na universidade.

Tratamento do pé torto congênito pede uso de gesso e órteses trocados periodicamente

O tratamento com gesso e órteses é mais utilizado nos casos idiopáticos, ou seja, que não têm uma causa conhecida. Embora a origem do pé torto congênito idiopático ainda não esteja estabelecida, a literatura considera que a deformidade tenha condição multifatorial, como afirma o médico ortopedista do Complexo do Hospital de Clínicas da UFPR, Alexandre Camargo.

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“Tem uma parte genética relacionada, tanto que tem uma incidência maior entre irmãos, filhos e até mesmo netos. Mas são uma série de fatores ambientais e genéticos que interferem”, afirma.

O pé torto congênito desenvolve-se durante a gestação e ocorre com mais frequência em meninos e, em 50% dos casos, nos dois pés. Trata-se de uma alteração que causa um mau alinhamento nos ligamentos, músculos, tendões e ossos do pé do bebê.

Atualmente, o tratamento ortopédico mais utilizado nestes casos é conhecido como Método de Ponseti, criado pelo médico espanhol Ignácio Ponseti. Ele inicia nas primeiras semanas de vida da criança com uma série de manipulações e colocação de gesso que servem para corrigir, de forma progressiva, uma sequência de deformidades causadas pelo pé torto congênito.

São realizadas de seis a oito trocas semanais do gesso. Em muitos casos é necessária uma pequena cirurgia para corrigir algumas partes que o gesso não consegue, como o tendão de Aquiles. Após esse período, é o momento de utilizar a órtese. Entre diversos modelos do dispositivo, a de Denis-Browne é uma das mais comuns.

“No primeiro gesto você corrige mais a posição da frente do pé, aí vai corrigindo progressivamente e vai levando o pé como se fosse para fora, como é possível ver na botinha da órtese, que é como se fosse no uma posição de hipercorreção, evitando que o pé volte a entortar”, explica Alexandre Camargo.

A órtese atua, portanto, para manter a posição que já deve ter sido corrigida com o gesso. Se ela não for utilizada corretamente, a deformidade pode voltar, segundo o ortopedista.

“Se ainda tiver um pouco de deformidade, você não consegue adaptar a órtese ou forçar no aparelho, vai machucar o pé da criança. Então, primeiro tem que ter conseguido a correção, para depois colocar o aparelho. A órtese é muito importante em manter essa posição de correção, porque se não usar, é isso, é mais de 60% de chances que volte a entortar”.

Nos primeiros três meses após o fim do uso do gesso, a órtese deve ser usada por 23 horas diárias. Depois, geralmente até os quatro anos, conforme necessidade de cada criança, o aparelho deve ser utilizado por cerca de 14 horas por dia.

Filha do professor Sérgio Lajarin, a pequena Isabela utilizou órteses produzidas pelo pai entre os três meses e um ano e meio de vida. Hoje tem seis anos. Foto: Arquivo Pessoal

Com o fim do tratamento, a expectativa é que a correção seja finalizada e que a criança possa ter uma vida normal, ainda que com acompanhamento médico para que não tenha retorno da deformidade.

“O pé da criança que nasceu com pé torto congênito geralmente é um número menor, elas têm a panturrilha um pouco mais fina quando é caso unilateral. Mas o tratamento permite que o pé seja mais flexível e bem funcional. Não vai ser um pé normal, mas vai permitir que a pessoa tenha uma vida completamente normal para praticar esporte, fazer atividades físicas sem nenhum tipo de restrição”, diz Camargo.

Como é feita a órtese de Denis-Browne em impressoras 3D

Atualmente, o laboratório Engenhar da UFPR tem infraestrutura para produzir dois modelos de tamanhos das órteses de Dennis-Browne que atendem crianças de no máximo um ano. Após essa idade, devido ao crescimento do bebê, o tratamento demanda dispositivos mais personalizados.

Os modelos são produzidos pelos alunos participantes do projeto de extensão, que aplicam os conceitos de manufatura aditiva aprendidos na sala de aula e no laboratório.

“A gente não faz a órtese impressa diretamente, usamos a impressão 3D para fabricar o molde. Esse molde fabricado dura muito tempo”, afirma o professor Sérgio Lajarin. “Se chegar uma demanda de cinco pares, a gente consegue fazer de sete a dez dias, porque depende muito dos horários vagos dos alunos”.

O molde da tala foi produzido por meio do sistema CAD 3D aplicando conceitos de engenharia mecânica e design. As medidas para referência dos modelos foram tiradas em uma criança de três meses, a serem adaptáveis para atender o máximo de crianças possível.

“Com a tala impressa, fazemos a termoformagem de uma chapa de poliestireno, que chamamos ‘PS’, e fica com o formato da bota. Aí vai para fazer o acabamento, como furação, o revestimento com o EVA. O pessoal aqui fabrica essas alças com velcro e couro. Usamos a impressão 3D só em algumas peças”, explica o docente.

O processo de fabricação está no artigo “Órtese de baixo custo para tratamento de crianças com pés tortos”, publicado pelos pesquisadores do Engenhar na Revista Foco. De acordo com Lajarin, cada órtese leva cerca de quatro horas para ser produzida, com o custo total aproximado de R$ 50 sem considerar gastos com mão de obra, já que a participação no projeto de extensão é voluntária.

Interdisciplinaridade orienta fabricação de tecnologias assistivas para pessoas com deficiência

O processo de fabricação de órteses de Dennis-Browne e outras tecnologias assistivas pelo laboratório Engenhar é fruto de uma parceria entre dois cursos da UFPR. Enquanto os alunos da Engenharia Mecânica estão envolvidos na produção, os estudantes de Terapia Ocupacional fazem o acompanhamento dos atendimentos às instituições e avaliam em conjunto os materiais produzidos.

Para Paloma Hohmann Poier, professora do Departamento de Terapia Ocupacional da UFPR e colaboradora do Engenhar, a interdisciplinaridade entre as duas áreas permite que os fatores humanos sejam considerados para interagir com a tecnologia que será desenvolvida, como as órteses.

“Pensamos na necessidade e dificuldade do indivíduo com relação à realização de alguma atividade, em seguida buscamos minimizar esta necessidade com o desenvolvimento de uma tecnologia assistiva. Para isto avaliamos os aspectos físicos, cognitivos e psicossociais dos participantes atendidos e as tecnologias e materiais do projeto”, explica.

Na produção de tecnologias assistivas, conceitos de diversas áreas são empregadas para que se construa um modelo ergonômico e que atenda às necessidades de cada indivíduo. Um deles é o de antropometria digital, técnica que escaneia as medidas e proporções do corpo humano em 3D para fazer a interação com dispositivos digitais.

A professora Maria Lúcia Leite Okimoto, vice-coordenadora do Engenhar e uma das autoras do artigo, é especialista na área de ergonomia e orientou nos últimos anos trabalhos e pesquisas sobre antropometria digital, incluindo nos casos de pessoas com deficiência física, em que o trabalho de escaneamento 3D pode ser mais difícil.

“Percebemos o grande uso da antropometria digital para órtese e prótese de pessoas com deficiência. Muitas vezes a gente não consegue fazer porque a pessoa se movimenta muito, você não consegue pegar detalhes, então em alguns casos ainda se utiliza a forma de captura indireta da antropometria digital”, afirma. “Fazemos a coleta através de um gesso e depois escaneia esse gesso. Isso facilita nesses casos em que se não consegue fazer o escaneamento 3D”.

Para Okimoto, além da interação com outras áreas para o melhor desenvolvimento de órteses e próteses que melhor atendam às pessoas com deficiência, a metodologia de desenvolvimento do produto em tecnologia assistiva também deve considerar todos os envolvidos no processo.

“A gente trabalha dentro do conceito do design centrado no usuário. Consideram-se aí todos os atores, como os profissionais de saúde, os cuidadores, os familiares que estão envolvidos diretamente com o uso, manutenção ou manuseio desses produtos no dia a dia. Então é importante também sempre ouvir esses profissionais”.

Produção de tecnologias assistivas é uma das frentes do Engenhar

Além das órteses de Denis-Browne, o laboratório Engenhar da UFPR está produzindo outros recursos que auxiliam demandas da saúde. Segundo o professor Sérgio Lajarin, o projeto foi fundado em 2019 com o objetivo de impulsionar a manufatura aditiva, área que ainda estava carente na universidade.

“Iniciamos com apenas uma impressora, dando suporte em protótipos mecânicos para outros projetos de extensão e trabalhos de TCC. Porém, no mesmo ano, nós começamos a desenvolver algumas soluções para área da saúde, por conta da necessidade que surgiu com a minha filha”, conta.

“Essa fabricação de produtos e soluções para a área da saúde se intensificou na pandemia, com a criação da Rede UFPR de Combate à Covid-19 e depois com as parcerias com a Clínica Escola de Terapia Ocupacional da UFPR e suas professoras, que fizeram o projeto se desenvolver muito”.

Pela impressão 3D, os alunos já produziram aparelhos alternativos diversos para pessoas com ou sem deficiência, como órteses de posicionamento de punhos, dispositivos de correção para orelha de abano, apoios de cabeça para cadeira de rodas e chaveiros com imãs para pessoas com hanseníase. O projeto também está fazendo órteses para pets, com apoio do curso de Medicina Veterinária.

As demandas de atendimento são repassadas pelos estudantes de Terapia Ocupacional, que recebem solicitações de hospitais e ONGs e fazem o acompanhamento. Lajarin conta que eles buscam formas de fazer os materiais de forma que eles fiquem mais atrativos, especialmente às crianças. 

“Em alguns casos a gente até personaliza. Tinha um menino que era atleticano, a gente fez o símbolo do clube, porque isso ajuda a evitar o abandono da órtese. Pode ser a cor favorita da criança, um personagem, um super-herói. Aí entregamos para as professoras e elas testam nos pacientes”. 

Cada vez mais, o projeto recebe este tipo de solicitação, oferecendo o suporte à saúde e também contribuindo com a formação dos estudantes. A professora Paloma Hohmann Poier destaca o papel do Engenhar no auxílio à comunidade, mas também opina que as alternativas de baixo custo às tecnologias assistivas devem ser difundidas em uma escala maior, alcançado os órgãos públicos. 

“Os projetos de extensão são importantes locais para criar e disseminar o desenvolvimento de soluções para a sociedade. Mas é importante chamar a atenção para os limites de projetos de extensão como dispensadores de tecnologias assistivas em um contexto maior”, afirma. “O projeto faz sua parte, mas sem dúvida, o objetivo é transferir este conhecimento para que seja possível atender a demanda do município, estado e até mesmo de outras localidades”. 

➕ Leia o artigo “Órtese de baixo custo para tratamento de crianças com pés tortos”, publicado na Revista Foco
➕ Conheça o trabalho de manufatura aditiva e tecnologia assistiva do Engenhar-MEC no site do projeto
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