Em meio à multidão e aos estandartes coloridos da Marcha pela Agroecologia, que com dizeres como “un mundo para un pueblo”, “pelo fim da escala 6×1” e “taxar os super ricos” tomaram o espaço da Assembleia Legislativa do Paraná, um dos presentes era a professora Katya Isaguirre-Torres, do Departamento de Direito Público da Universidade Federal do Paraná (UFPR).
Coordenadora do núcleo de extensão e pesquisa Ekoa, que trata do direito ambiental e agrário para comunidades vulneráveis e tradicionais há cerca de dez anos, Katya acredita que a marcha realizada nesta quarta-feira (6) em Curitiba deixa um recado para o Paraná. O Estado que tem um terço do PIB atrelado ao agronegócio também é o que lidera a produção de orgânicos no Brasil, com quase 4 mil produtores certificados.
“A Marcha pela Agroecologia no Paraná é uma potente ação, ela visibiliza que outra forma de produção agroalimentar não é apenas possível como já acontece”, avalia. “Traz visibilidade para os agricultores e agricultoras, povos originários e tradicionais como agentes sociais capazes de conduzir à transição justa e ecológica do modelo dominante de desenvolvimento que aí está”.
Agroecologia é um conceito que reúne compreensões de sustentabilidade e de respeito à ecologia para reformar a agricultura, levando-a para fora da lógica de esgotamento de recursos. Há outro braço da agroecologia, porém, e é nele que estão Katya e o Ekoa. É o que parte de noções de justiça social para defender o trabalho e as comunidades rurais, pensando também no acesso à alimentação saudável.
Assim, ao longo de uma trajetória no Direito que inclui passagem pela organização Terra de Direitos, a docente tem estudado aspectos da agroecologia que tocam os direitos humanos. Isso inclui a injustiça socioambiental, uma abordagem que pensa a crise climática como uma urgência também legal e jurídica, porque atinge de forma desigual as populações, aprofundando opressões.
Nesta entrevista à Ciência UFPR, Katya fala sobre esses assuntos, também abordando a agroecologia como um saber empoderador para mulheres e o alimento saudável como um resultado da justiça no uso da terra.
O que é uma injustiça socioambiental? Como esse tema conversa com a crise climática?
Katya Isaguirre-Torres | A injustiça socioambiental ocorre quando os grupos sociais não acessam de forma igualitária e de acordo com as suas necessidades os direitos humanos e fundamentais que garantem uma vida digna, segura e saudável. São muitos os aspectos que configuram situações de injustiça socioambiental.
Por exemplo, por vezes são implantações de grandes empreendimentos sem o devido controle dos impactos negativos, em outras são o uso de tecnologias nocivas, como os agrotóxicos, ou ainda, quando alterações legislativas promovem retrocessos. É a recente discussão do projeto de lei federal nº 2159, conhecido como PL da Devastação.
Nós, do Ekoa, interpretamos essa definição de injustiça socioambiental na perspectiva interseccional, isto é, procuramos identificar os padrões que negam condições de equidade ambiental ao lado de outras violações de direitos em termos de raça, classe e gênero.
A justiça socioambiental, que é o conceito que trabalhamos, reúne a proteção da natureza com eixos ligados à diferentes direitos humanos e fundamentais, tais como, terra e território, alimentação saudável, dentre outros.
Está presente nesse conceito a preocupação com a segurança climática, para o qual entendemos fundamental a superação da insegurança jurídica na posse da terra. E que o Estado garanta políticas públicas que efetivamente permitam produzir e viver nos territórios em condições saudáveis. Condição essa, por exemplo, que subentende o enfrentamento dos efeitos causados pelo aquecimento global.
O foco na justiça socioambiental também possui o sentido de manter a memória viva das lutas socioambientais que foram responsáveis por muitas conquistas em termos de direitos. É no exemplo dessas lutas que teremos esperança para buscar respostas aos desafios da crise ecológica e climática.
O que são povos da floresta? Por que a existência e a expansão dos latifúndios ainda ameaçam a existência desses povos, mesmo com uma Constituição que reconhece há quase 40 anos os direitos dos povos tradicionais? Percebe nesse período um esgarçamento dessa proteção causada pela atuação do legislativo, mas também do judiciário?
KIT | Os povos da floresta são, de acordo com a Convenção nº 169 da Organização Internacional do Trabalho, os que assim se autodeterminam. São grupos sociais que mantém relações com as matas e os rios enquanto pertencimento, para os quais o convívio com a natureza se dá de forma inter-relacional.

O porquê de a expansão dos latifúndios ainda ameaçar a existência dos povos já foi muito bem explicado pelo geógrafo Ariovaldo Umbelino de Oliveira, no livro Modo Capitalista de Produção, Agricultura e Reforma Agrária, o qual recomendo a leitura. Infelizmente o professor Ariovaldo, que muito nos ensinou, faleceu no dia 2 de agosto deste ano, deixando um legado de referência para entender a questão agrária no país.
O tema da questão agrária é altamente complexo. Em resumo é possível ressaltar que, da colonização às sesmarias, das terras devolutas à abstração da propriedade moderna, o perfil do acesso à terra no Brasil no Brasil caracteriza-se por um processo de concentração fundiária de alto custo social e ambiental.
O avanço do mercado de terras sem uma preocupação voltada às ações e políticas que efetivamente sejam reformadoras, ou seja, que venham a extinguir o latifúndio que não respeita a função socioambiental da terra, agregado à crise climática e da biodiversidade, só vai intensificar ainda mais a problemática do acesso à terra no país.
O que os povos do campo, das águas e das florestas nos ensinam é que a reforma agrária deve ser popular e integral, valendo-se das práticas comunitárias de cuidado dos povos como importantes aprendizados para outras relações entre humanos, não humanos e natureza.
Onde a agroecologia e o feminismo se encontram, seja na teoria ou nas histórias reais? Saber cultivar a terra é empoderador para mulheres?
KIT | As práticas das mulheres, sejam elas de cuidado com a família, na coordenação de associações e cooperativas, na conservação das sementes, no cuidado com as hortas, a agrofloresta, a agroindústria — conduz ao entendimento de que, ao recuperar a relação da natureza como pertencimento, se está reconhecendo a reprodução da vida na transição justa e ecológica ao desenvolvimento.
Admitindo o caráter patriarcal da agricultura capitalista, a soberania alimentar na perspectiva do feminismo camponês e popular é um elemento de identidade para as mulheres rurais. Retira a invisibilidade dos seus papéis e as empodera.
As demandas da soberania e segurança alimentar na perspectiva do feminismo camponês e popular envolvem o acesso efetivo à terra, os impactos da agenda neoliberal sobre o corpo e os territórios, as políticas de acesso e distribuição aos alimentos, os impactos do modelo hegemônico sobre a natureza e a luta contra todos os retrocessos sociais e ambientais.
Como observei em meus estudos de pós-doutorado, a agroecologia na perspectiva das mulheres que se organizam em torno da Via Campesina, do Movimento das Mulheres Camponesas, dos movimentos dos trabalhadores e trabalhadoras rurais sem terra e da Marcha das Margaridas envolve a compreensão de que a produção do alimento deve ser dar em respeito à saúde dos corpos e dos territórios na perspectiva da justiça de gênero.
Ou seja, o alimento só pode ser identificado como agroecológico e saudável quando sua produção não se dá em condições de violência e opressão.
O feminismo camponês e popular defende uma conexão entre trabalho reprodutivo e natureza. Daqui resulta a ligação com a agroecologia, que é uma ciência, uma técnica e uma política de transição. Ao defenderem as águas, as florestas, os minerais, as sementes como bens comuns, as mulheres rurais recuperam o lugar da natureza nas sociedades humanas. Esse é um vínculo fundamental para a existência. Ao mesmo tempo, se colocam como protagonistas da sua história e agentes transformadoras da produção agroalimentar.
Suas lutas têm demarcado um posicionamento anticapitalista, de identidade com a realidade vivida, que visa o acesso efetivo à terra, o reconhecimento do trabalho reprodutivo e produtivo das mulheres e o enfrentamento de todo e qualquer tipo de violência e opressão em termos de raça, classe e gênero.
O que falta para uma política voltada à agroecologia no Brasil? Por que parece tão difícil regular o uso de agrotóxicos e de ultraprocessados no Brasil? E, ainda, o que falta para mobilizar a população em torno da qualidade da comida?
KIT | A agroecologia, enquanto prática, ciência e política, vem sendo uma resposta aos desafios do clima e frente aos riscos de erosão genética. Valoriza o trabalho das pessoas do campo, respeita os bens ambientais e honra os conhecimentos ancestrais, locais e tradicionais. A trajetória da agroecologia se encontra com a justiça climática-ecológica na luta para construir outros projetos de sociedade.
São as agricultoras e os agricultores camponeses que realizam a função social da terra na produção do alimento saudável sem veneno, na proteção das sementes crioulas, no cuidado com os animais, bosques e matas dos diferentes ecossistemas.
As florestas para a agricultura camponesa representam muito mais que um ativo transacionável, elas se ligam com a cultura e a memória do território vivido. É uma relação marcada pelo pertencimento, em que a comunidade não se vê separada da natureza. Na agroecologia se encontram defensoras e defensores do meio ambiente que constroem aprendizados para reduzir a vulnerabilidade dos sistemas naturais e humanos frente aos efeitos da mudança do clima.
Assim, é fundamental aos povos do campo o acesso a participação efetiva nos processos de tomadas de decisão sobre a produção agroalimentar e as crises climática-ecológica no país. E entender que a transição da produção agroalimentar envolve uma série de políticas e normas inter-relacionadas, que dizem respeito às mudanças nas formas de produzir, de comercializar, de consumir, etc.
Nesse sentido, se torna relevante garantir condições de efetividade para a Política Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica [Decreto nº 7794/2012] e ao recém-publicado decreto 12.538/2025 que institui o Programa Nacional de Redução de Agrotóxicos [Pronara], bem como ao cumprimento dos compromissos internacionais assumidos pelo país, como o Acordo de Paris.
E, ainda, construir, mediante participação popular, políticas públicas de assistência técnica e extensão rural comprometidas com a agroecologia.
Sobre por que parece difícil regular agrotóxicos e ultraprocessados no Brasil, acho que a questão não é a dificuldade de regular, mas sim, a quem interessa a criação de políticas e normativas que mantém um modelo de desenvolvimento cujos resultados produzem efeitos negativos e danosos à natureza e à saúde?
E mais, quem são as pessoas e os grupos que aprovam essas políticas e normativas que se dão em contrariedade com os direitos humanos e fundamentais vinculados à uma vida ambientalmente segura e saudável?
Essas são questões elementares para a efetividade da transição justa e ambientalmente equilibrada ao desenvolvimento.