“A maioria das abelhas não é como pensamos e essas são as mais ameaçadas” | Rodrigo Gonçalves Autor do recém-lançado 𝐷𝑒𝑠𝑣𝑒𝑛𝑑𝑎𝑛𝑑𝑜 𝑎𝑠 𝑎𝑏𝑒𝑙ℎ𝑎𝑠 (Editora da UFPR), professor e pesquisador da UFPR fala sobre os mitos populares, as ameaças às espécies e o andamento das pesquisas em torno desses insetos polinizadores essenciais
Rodrigo Gonçalves se inspirou em divulgadores científicos como Carl Sagan e Jay Gould para escrever livro de apelo popular sobre abelhas. Foto: Danielle Salmória/Aspec/SCB/UFPR

Já chegou até nós a mensagem de que abelhas são vulneráveis às crises ambientais e isso impacta a sobrevivência humana, pela importância desses insetos na polinização de plantas — e, por consequência, na vida como um todo. Vimos imagens preocupantes da mortandade de abelhas pelo mundo. Lemos até manchetes sobre propostas tecnológicas para substituir esses insetos por drones polinizadores. Mas será que essas informações ajudam a entender as abelhas?

Segundo o pesquisador Rodrigo Barbosa Gonçalves, professor no Departamento de Zoologia da Universidade Federal do Paraná (UFPR) e especialista em entomologia (estudo de insetos), ainda falta certa compreensão sobre as abelhas e sobre como podemos protegê-las.

Isso porque as espécies mais ameaçadas pelo aquecimento global, pela urbanização e pelos agrotóxicos são também polinizadoras, mas não produzem mel nem vivem em colmeias.

Confundidas com vespas (também polinizadoras!) ou outros insetos, nem sempre são vistas como animais que precisam de proteção.

“São milhares de espécies que não podem ser criadas [para a produção de mel], mas mantém um papel silencioso na polinização das plantas”, explica à Ciência UFPR.

Autor do livro Desvendando as abelhas, recém-lançado pela Editora da UFPR, Gonçalves ajuda nesta entrevista a vermos as abelhas como elas são. Também fala do trabalho do Laboratório de Abelhas (LAbe) da UFPR, que coordena em Curitiba, na descoberta de espécies nativas do Paraná.

O que pode ser classificado como mito no imaginário popular sobre abelhas, em termos de modos de vida, subgrupos, construção de ninhos, comportamento social e relações com as flores?  


Rodrigo Barbosa Gonçalves | Por muito tempo as pessoas entendiam como abelha apenas a [espécie] Apis mellifera, o que levava a uma visão que se baseava em algumas de suas particularidades, como por exemplo o hábito de uma operária ferroar para se defender e morrer nesse processo.

Recentemente os brasileiros descobriram as abelhas-sem-ferrão. Elas na verdade já são criadas há muito tempo, inclusive pelos povos originários, mas recentemente furaram a bolha e estão em alta, devido especialmente ao fato de serem dóceis para criar. É comum vermos manchetes exaltando o fato que elas podem ser criadas até em apartamentos.

Entretanto, a sua biologia se assemelha a da Apis, por serem altamente sociais e produzirem mel, o que mantem uma visão ainda limitada sobre o que são abelhas.

GALERIA | As abelhas como elas são
Charge do livro, assinada por Anderson Lepeco. Imagem: Reprodução
A espécie 𝘟𝘺𝘭𝘰𝘤𝘰𝘱𝘢 𝘧𝘳𝘰𝘯𝘵𝘢𝘭𝘪𝘴 é uma das espécies de abelha carpinteira, isto é, que faz ninhos em ocos de madeira
Abelhas do gênero 𝘈𝘶𝘴𝘵𝘳𝘰𝘴𝘱𝘩𝘦𝘤𝘰𝘥𝘦𝘴 são cleptoparasitas: não coletam pólen, invadem ninhos de outras abelhas para colocar seus ovos
Abelha-sem-ferrão, a espécie 𝘗𝘢𝘳𝘢𝘵𝘳𝘪𝘨𝘰𝘯𝘢 𝘴𝘶𝘣𝘯𝘶𝘥𝘢 faz ninhos no chão, em cavidades deixadas por ninhos de formigas
Gonçalves ao lado de Anderson Lepeco, biólogo e desenhista que assina as ilustrações do livro
Charge do livro, assinada por Anderson Lepeco
Capa do livro 𝘋𝘦𝘴𝘷𝘦𝘯𝘥𝘢𝘯𝘥𝘰 𝘢𝘴 𝘢𝘣𝘦𝘭𝘩𝘢𝘴
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A espécie 𝘟𝘺𝘭𝘰𝘤𝘰𝘱𝘢 𝘧𝘳𝘰𝘯𝘵𝘢𝘭𝘪𝘴 é uma das espécies de abelha carpinteira, isto é, que faz ninhos em ocos de madeira
Abelhas do gênero 𝘈𝘶𝘴𝘵𝘳𝘰𝘴𝘱𝘩𝘦𝘤𝘰𝘥𝘦𝘴 são cleptoparasitas: não coletam pólen, invadem ninhos de outras abelhas para colocar seus ovos
Abelha-sem-ferrão, a espécie 𝘗𝘢𝘳𝘢𝘵𝘳𝘪𝘨𝘰𝘯𝘢 𝘴𝘶𝘣𝘯𝘶𝘥𝘢 faz ninhos no chão, em cavidades deixadas por ninhos de formigas
Gonçalves ao lado de Anderson Lepeco, biólogo e desenhista que assina as ilustrações do livro
Charge do livro, assinada por Anderson Lepeco
Capa do livro 𝘋𝘦𝘴𝘷𝘦𝘯𝘥𝘢𝘯𝘥𝘰 𝘢𝘴 𝘢𝘣𝘦𝘭𝘩𝘢𝘴
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De fato, as abelhas como um todo é muito mais diverso em termos de biologia e agrupa, em sua maioria, espécies com hábito solitário a levemente social. Além disso uma proporção importante são parasitas de ninhos e provisões de outras espécies de abelhas. São milhares de espécies que não podem ser criadas, mas mantém um papel silencioso na polinização das plantas.

Creio que agora é hora de um passo importante para a sociedade reconhecer de vez as abelhas como um todo e entender essa enorme diversidade que nós temos. Grande parte do livro se dedica a isso, oferecer uma visão mais ampla.

Você tem investigado o efeito da urbanização sobre a população de abelhas, que leva a expressiva queda. O que considera como urbanização? E quais os papeis das abelhas em ambiente urbano?  


RBG | As cidades, apesar de não parecer, são ecossistemas complexos, com uma espécie alterando radicalmente o meio em que vive. Em um primeiro momento a fragmentação dos ambientes e a impermeabilização do solo causam uma grande redução da diversidade. Em um outro momento do ciclo, o que nós vivemos, as áreas verdes, a floresta urbana, são reconhecidas como importantes para nossa própria qualidade de vida.

Alguns estudos, inclusive os nossos, tem apontado que um entorno que preserve mais de 50% de solo não impermeabilizado, isto é, jardins, campos e matas, apresenta uma riqueza de espécies de abelhas semelhante a áreas conservadas. Encontramos mais de 100 espécies em áreas como o parque Barigui e o parque Tanguá em Curitiba, por exemplo.

Muitas áreas das cidades, como cinturões verdes, têm a capacidade de preservar a biodiversidade, entretanto, em áreas centrais muito cinzas, notamos o acentuado declínio. No Passeio Público, o parque urbano mais antigo da cidade, essa diversidade cai pela metade.

Sobre a importância das abelhas no meio urbano, elas atuam na manutenção das plantas e consequentemente da saúde das áreas verdes, garantindo o seu futuro.

Estar sediado em Curitiba é muito estratégico para estudar ecologia urbana, pois o grupo de pesquisa com abelhas aqui é muito antigo, o Padre Jesus Moure, que foi docente da UFPR, já coletava abelhas aqui desde a década de 1930, e, portanto, temos um rico acervo que registra a diversidade de espécies da cidade ao longo do tempo. Já contamos mais de 360 espécies vivendo aqui.

Esses dados estão no Inventário da Fauna de Curitiba, publicado no ano passado.

A mortandade das abelhas em nível global tem sido assunto midiático já faz um tempo, com manchetes preocupantes e até anúncios de substitutos tecnológicos para esses insetos. O que existe de verdade e de exagero e até desserviço nessas informações e nas abordagens?  


RBG | É preciso separar relatos da mortandade de colônias de Apis do declínio das espécies e das populações de abelhas e outros insetos. Muitas perdas de colônias são drásticas e chamam muito a atenção porque um apiário pode reunir milhões de operárias. Muitas vezes a causa é local, como uso incorreto de agrotóxicos.

Entretanto o número de colônias e a produção de mel aumenta a todo o ano no planeta, indicando que apesar de todos os riscos e perdas, os apicultores ainda conseguem aumentar a sua produção.

A situação é mais preocupante para as espécies nativas. Elas sofrem com a fragmentação, com inseticidas, com o aquecimento global. Mas como são menos ou não manejáveis, e mais sensíveis, o impacto deve ser muito severo.

É preciso entender melhor como esse declínio está acontecendo: quais espécies já diminuíram a sua abundância ou sumiram? Essa é uma resposta que buscamos em nossas pesquisas.

Entende que produtores de mel em geral têm visão sustentável sobre a sua produção? O que fazer para melhorar?  


RBG | Sim, a eles interessa um meio ambiente equilibrado, pois em muitos casos o mel depende de flores e áreas verdes naturais. Eles não gostam de inseticidas, pois é um risco ao apiário ou meliponario.

Mais pesquisa para aumentar a produção nacional e estadual, especialmente de produtos das abelhas-sem-ferrão e mais estímulo para o manejo de colônias para a polinização agrícola são desafios que permanecem.

Facilitar a liberação de agrotóxicos, como prevê a Lei do Veneno (Lei n.º 14.785 de 27/12/2023), influi na mortandade de abelhas?  


RBG | Muitos dos compostos agrotóxicos não têm especificidade nenhuma, sendo nocivos não só às pragas, mas aos outros insetos e animais, inclusive a nós mesmos. O mundo já tem ciência disso e países desenvolvidos estão preocupados em reduzir agrotóxicos e buscar alternativas mais seletivas e sustentáveis.

O nosso país está na contramão, seus políticos não legislam com o conhecimento científico e cedem a pressão do poder financeiro das grandes empresas multinacionais que comercializam esses produtos.

As pesquisas em solo nacional estão se voltando aos efeitos nas espécies nativas.

 O conceito de “agricídio”, de que a exploração desenfreada de oportunidades com retorno imediato pelo agronegócio tem impactos futuros negativos e irreversíveis sobre a produção, tem razão de ser? Polinizadores, como as abelhas, estão na centralidade desta previsão?   


RBG | Não gosto desses termos densos que reduzem o diálogo sobre o cenário agrícola devido a insistência de uma visão dualista. Por exemplo, no meio existem vários tipos de produtores e muitos respeitam a legislação e são conscientes. Precisamos deles para conservar a natureza, pois detém áreas de reserva legal por exemplo. Mas isso não é corroborar o modelo em que vivemos.

Está fácil de perceber que os danos infligidos pela conversão de áreas naturais em áreas agrícolas mudaram o nosso clima, o que é ruim para todos, inclusive aos produtores. Os polinizadores são importantíssimos nesse contexto, porque são importantes tanto para o agronegócio como para a preservação da natureza. Existe algo mais central do que isso?

A ideia de fazer um livro com linguagem mais popular, com charges, vai ao encontro de que meta da sua pesquisa? 


RBG | Eu me sinto incomodado com o modelo vigente de escrever nossos resultados apenas para cientistas e encerrar o conhecimento no meio hermético da ciência.

Como pesquiso para o país, acho importante fazer parte da ponte entre o conhecimento e as pessoas.

Isto é mais importante do que a pressão para internacionalizar a ciência brasileira. Me inspiro em figuras como Jay Gould ou Carl Sagan, que ultrapassam essa barreira como ensaístas.

A linguagem popular também dá mais liberdade para se expressar e provocar. Nessa linha, as charges do Anderson Lepeco são fantásticas, porque ele genialmente traduz o conhecimento em uma reflexão mundana. Ele foi meu orientado de iniciação científica e é um jovem pesquisador promissor, a ilustração e apenas parte dos seus dons.

Avalia que é necessária alguma política pública no Brasil para a preservação de polinizadores, talvez regionalizada, com foco nas regiões com maior exposição solar, que têm biodiversidade maior de himenópteros?  


RBG | Temos muitos pesquisadores ativos com polinizadores e eles estão fazendo um grande serviço em chamar atenção da sociedade e da política. Temos visto revisões de lista de fauna ameaçada, plano nacional de polinizadores, legislações federais e estaduais sobre meliponicultura. Tem muita coisa para acontecer, mas não estamos parados, isso é importante.

Fale um pouco sobre o Laboratório de Abelhas da UFPR: que pesquisas estão tocando, como os assuntos têm se desenvolvido ao longo dos anos, que objetivos movem esse núcleo de pesquisa?  


RBG | O LAbe pesquisa a diversidade em duas frentes, registrando e acompanhando as espécies em ambientes naturais e antropizados e revisando e descrevendo novas espécies. As oportunidades de pesquisa, como projetos financiados, e os recursos humanos, os estudantes de graduação e pós-graduação, dão o ajuste fino na direção da nossa pesquisa.

Atualmente estamos pesquisando metais pesados no mel no ambiente urbano, monitorando as espécies nos campos atuariais do Parque Estadual de Vila Velha, e mantendo a linha de descrever novas espécies para o Brasil. Já rescrevemos quase uma centena de novas espécies e tem muito mais para fazer.

Dentre as colaborações em rede, destaco que estamos em uma nova proposta recém aprovada junto à Fundação Araucária, o NAPI [Novos Arranjos de Pesquisa e Inovação] Abelhas. Esse NAPI vai estudar abelhas paranaenses e sua criação em várias frentes, no caso do nosso laboratório, estamos interessados em conhecer a fundo as espécies do estado.

➕ Adquira Desvendando as abelhas: o que são e por quê conservá-las? pelo site da Editora da UFPR
➕ Leia o artigo “Reduction by half: the impact on bees of 34 years of urbanization”, publicado na Urban Ecosystems 
➕ Leia o artigo “Living in the sunlight: micro-environments with higher exposure of sunlight have more abundance and diversity of Hymenoptera in a Brazilian Atlantic Forest fragment”, publicado na Revista Brasileira de Entomologia
Leia o artigo “O valor econômico do serviço de polinização na Região Metropolitana de Curitiba”, publicado na Acta Biológica Paranaense
➕ Leia o artigo “Higher-level bee classifications (Hymenoptera, Apoidea, Apidae sensu lato)”, publicado na Revista Brasileira de Zoologia 
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