Shirley Nakagaki Bastos foi inspirada por mulheres ao longo de toda sua vida: na família, por sua mãe, trabalhadora e estudiosa, responsável por criar sozinha quatro filhos e encontrar forças para realizar o sonho de se graduar com mais de 50 anos de idade; na vida acadêmica, desde cedo foi guiada por professoras que a incentivaram a estudar e se destacaram pelo amor que demonstravam por aquilo que faziam.
Na graduação, o trabalho de iniciação científica com a professora Yassuko Iamamoto da Universidade de São Paulo (USP), uma das fundadoras da Sociedade Brasileira de Química (SBQ), representou um momento decisivo em sua vida profissional. Ali ela descobriu um lado da ciência que ainda não conhecia e que poderia, através daquilo, desenvolver pesquisas e produtos que impactassem diretamente a sociedade.
Atuando como docente do Departamento de Química na Universidade Federal do Paraná (UFPR) desde 1992, Shirley já desempenhou diversas funções que foram além da docência, sempre comprometida com a formação de recursos humanos e com a pesquisa de qualidade.
Estabeleceu, junto com colegas de departamento como a professora Sueli Maria Drechsel e o professor Fernando Wypych, uma linha de pesquisa na preparação, caracterização e investigação de sólidos para processos heterogêneos de catálise.
Em suas pesquisas, busca inspiração nos sistemas biológicos para trabalhar com moléculas que aceleram reações químicas naturais em prol de substâncias úteis para diversos segmentos industriais que, ao final, resultarão em produtos proveitosos para a humanidade.
No ano de 2022, assumiu a presidência da SBQ, sociedade da qual participa ativamente desde seu ingresso na graduação, sendo a segunda mulher na história a desempenhar essa função. Atualmente ela considera que há muitas mulheres inspirando mulheres e espera que esse número aumente.
Nesta entrevista, Shirley fala sobre sua trajetória pessoal e acadêmica, comenta a respeito do papel das mulheres na Química, explica a linha de pesquisa em que atua e revela que essa ciência está presente em tudo o que nos cerca, sendo, portanto, crucial para manutenção da vida.
Seu trabalho de pesquisa está centrado na área de química inorgânica, com ênfase em catálise. Conte um pouco mais sobre como funcionam as pesquisas que desenvolve.
Shirley Nakagaki Bastos | Na época da minha graduação, interessei-me pelo trabalho de preparar compostos semelhantes aos biológicos que atuassem como catalisadores em processos químicos. Esses catalisadores são espécies químicas que fazem com que uma reação ocorra em uma velocidade maior do que ocorreria naturalmente. Por exemplo, uma reação química que levaria anos ou até milênios para ocorrer, com auxílio de uma espécie catalítica, pode ocorrer em minutos ou horas.
A principal inspiração são os sistemas biológicos de seres humanos, animais e vegetais, onde podemos encontrar moléculas que desempenham diferentes papéis essenciais para a vida desses organismos.
As moléculas com que tenho trabalhado, na maior parte da minha carreira científica, são as chamadas porfirinas, compostos químicos que, quando possuem diferentes íons metálicos, realizam atividades catalíticas. Uma molécula semelhante a essa, por exemplo, está presente no sangue. Ela contém íon de ferro e é responsável pelo transporte e armazenamento de oxigênio nos seres vivos. Outra molécula similar está presente nas folhas verdes e contém íons de magnésio, sendo chave para o processo de fotossíntese.
Nos organismos vivos, os catalisadores (que nos sistemas biológicos sãos chamados de enzimas) promovem uma série de transformações químicas, produzindo produtos essenciais à manutenção da vida. A partir dessa inspiração, nós desenvolvemos catalisadores para reações químicas cujos produtos têm um fim que beneficia a sociedade. Por exemplo, toda a indústria petroquímica utiliza catalisadores para transformar compostos do petróleo em substâncias que possam ser utilizadas para diversos fins, por exemplo os combustíveis.
Essas reações acabariam ocorrendo em determinado tempo, caso houvesse uma quantidade de energia suficiente. Porém, ao envolvermos catalisadores, as reações ocorrem em um tempo apreciável. Portanto, os catalisadores são espécies que aceleram as reações químicas.
Atualmente, a linha de pesquisa em que trabalho está focada em desenvolver catalisadores reutilizáveis e multifuncionais, já que porfirinas e outras espécies com as quais trabalhamos não são baratas. Por isso, elaboramos materiais que terão vida útil mais longa nos processos catalíticos, bem como que possam ser utilizados em mais de uma reação química.
E qual a importância desses processos catalíticos para a sociedade? Onde podemos encontrar os produtos dessas reações?
SNB | Catalisadores são importantíssimos nas indústrias de fármacos, de perfumes e de materiais de higiene, de alimentos e em toda a indústria química e petroquímica.
Uma aplicação bastante comum é nos fertilizantes. A partir do nitrogênio, que está no ar, utiliza-se um processo catalítico para transformá-lo em amônia, que será convertida em fertilizante. E sem fertilizantes, não temos desenvolvimento da agricultura, nem pessoas sendo alimentadas, por exemplo.
Esse processo imita a reação de uma pequena bactéria que vive na raiz de plantas e faz exatamente isso: transforma cataliticamente o nitrogênio do ar em substâncias úteis para as plantas.
Outra possibilidade, com a qual inclusive estamos trabalhando atualmente, é pesquisar um catalisador que transforme água em hidrogênio, com viés para a produção de combustíveis limpos.
O divisor de águas na sua vida foi o convite que recebeu para participar de um projeto de iniciação científica, ainda na sua graduação. O que você passou a enxergar a partir dali?
SNB | Pertenço a uma família com uma mãe solo, de quatro filhos, que trabalhava dia e noite como técnica de enfermagem para nos sustentar. Então, em nosso núcleo familiar, sempre tivemos a consciência de que, à medida que íamos crescendo, teríamos que encontrar um emprego para nos sustentar.
Antes de ingressar na universidade, eu estudei na escola técnica no Senai [Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial]. Escolhi uma escola técnica porque poderia sair e já trabalhar, nem pensava em fazer universidade. Fiz o Senai de cerâmica porque era próximo da minha casa, mesmo sem nem saber ao certo o que era, mas sabia que era bom e gratuito.
A indústria de cerâmica utiliza muitos processos químicos e muita química analítica. Então tínhamos muitas aulas no laboratório, com professores excelentes. Ali eu me apaixonei pela química, pela geologia e pela física. E comecei a vislumbrar a possibilidade de fazer uma universidade. Não sabia como, mas sabia que teria que ser pública.
Logo que eu saí da escola técnica, eu trabalhava à noite gerenciando o laboratório de uma faculdade e fazia cursinho. Prestei vestibular e entrei na Universidade de São Paulo (USP), no campus de Ribeirão Preto. Nessa época, minha irmã mais velha já era professora de ensino fundamental e ela e minha mãe me ajudaram, por um tempo, a me manter na cidade, já que eu morava longe, no ABC Paulista. Mas eu sabia que teria que fazer alguma coisa para ganhar dinheiro lá.
No primeiro ano de faculdade, eu tinha aula de química geral com a professora Yassuko Iamamoto, que inclusive participou da Fundação da Sociedade Brasileira de Química no ano de 1977.
Como eu gostava muito de química e de fazer os experimentos, ela me convidou para trabalhar em seu laboratório de pesquisa. Eu nem sabia o que faria, mas sabia que teria uma bolsa de iniciação científica e isso iria ajudar a me sustentar e a me manter na universidade.
Então, quando eu comecei a trabalhar no laboratório, desenvolvendo um projeto de pesquisa, vi uma dimensão da química que eu não conhecia, que era desenvolver compostos que poderiam fazer reações químicas e gerar produtos importantes que poderiam ser utilizados na indústria química em geral.
Quando eu estava no Senai, a maioria do nosso trabalho era de química analítica, focado na análise dos compostos usados e produzidos na indústria cerâmica. No laboratório da universidade eu percebi que, inspirados em compostos químicos que existiam nos sistemas biológicos, nós poderíamos fazer moléculas semelhantes que gerariam produtos muito úteis. Isso mudou minha visão da química e foi aí que eu decidi que essa seria uma carreira para a minha vida.
Com mais de 50 anos de idade, sua mãe foi cursar enfermagem. Como isso te impactou?
SNB | Depois que os quatro filhos já estavam encaminhados na vida, minha mãe se sentiu um pouco mais aliviada da pressão financeira, então passou a trabalhar só em um hospital. E ela sempre gostou de estudar e de ler, ela se realizava vendo a gente fazendo as coisas.
Ela era uma excelente profissional, mas não tinha formação superior. Muitas das coisas que ela seria capaz de fazer por ter mais de 30 anos de prática, não podia porque era técnica e não enfermeira. Por isso ela decidiu estudar. Fez vestibular e passou em uma faculdade particular, porque só podia cursar a graduação no período noturno. Era longe, ela pegava dois ônibus do trabalho para ir até a faculdade e fez o curso nessas condições. Ela estudava muito e conseguiu se formar, o que foi uma realização para ela.
Eu, que agora tenho 61 anos, não sei se, com os meus 58 teria energia para fazer uma faculdade. Mas minha mãe teve, porque ela gostava de estudar. Então isso realmente me inspira até hoje.
Atualmente, com 86 anos, ela sempre me pergunta como é que estou indo, o que estou fazendo. Quando fiz minha defesa de mestrado, ela fez questão de estar lá. Sempre quis participar. Ela tem muito orgulho de todos os filhos e eu fico feliz por isso, porque realmente a trajetória dela foi muito difícil.
Você é a segunda mulher a assumir o cargo de presidente na Sociedade Brasileira de Química. Por que acha que tão poucas mulheres desempenharam essa função se as mulheres sempre estiveram muito presentes na área e o que isso representa? Houve alguma mudança de visão nesse campo tão restrito a homens após duas presidentes mulheres na Sociedade?
SNB | Esse nunca foi meu objetivo, na realidade. Meu perfil sempre foi trabalhar nos bastidores. Porém, quando a gente faz ciência, uma das coisas que devemos fazer é apresentar nossos achados científicos, pois pesquisa não é uma coisa que você esconde, é algo para ser mostrado e discutido com os pares. E uma forma de fazer isso é indo a congressos.
Então desde o início do meu trabalho científico com a professora Yassuko, fui incentivada a apresentar os resultados em conferências. No segundo ano de faculdade, a gente foi a uma reunião da SBQ, dentro da Reunião Anual da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência [SBPC], e eu achei aquilo incrível: um congresso cheio de estudantes apresentando seus trabalhos e discutindo. A partir dali, sempre participei todos os anos. Até hoje eu só deixei de ir a uma reunião da SBQ, em um ano que eu estava no nos Estados Unidos realizando uma pesquisa de pós-doutorado.
Sempre frequentei o ambiente da SBQ como congressista, mas, após entrar na UFPR, meus colegas de SBQ se organizavam para serem diretores de divisão científica, um dos setores da Sociedade, e a gente discutia muito sobre o andamento das políticas da divisão. Eu comecei a gostar de participar dessas reuniões e ingressei em uma das diretorias.
Ali eu comecei a participar mais ativamente, depois me tornei diretora de divisão e gostei de trabalhar em prol da sociedade. Após trabalhar quase dez anos na diretoria da divisão de química inorgânica, eu fui eleita para o conselho consultivo da SBQ. Trabalhei no conselho durante dois anos e fui convidada para me candidatar a presidente sucessora. Na Sociedade funciona assim, nós elegemos um sucessor e o eleito anteriormente se torna presidente na gestão seguinte.
Quando fui convidada, fiquei assustada, porque nunca foi a minha intenção ser presidente dessa que é uma das maiores sociedades científicas do Brasil e da América Latina. Este é um cargo muito importante de representação; o presidente tem a função de representar a sociedade em qualquer instância em que ela seja chamada. Diante do governo, de entidades estrangeiras, de outras sociedades, etc. De fato, eu não me achava qualificada para isso.
“Hoje as mulheres, além de terem a capacidade que sempre tiveram e a formação e a qualidade científica que sempre tiveram, já sabem que esse também é o lugar delas.”
Mas as pessoas que me convidaram achavam que eu tinha essa qualificação e queriam saber se eu estava disposta a assumir esse cargo. Então eu lancei minha candidatura e fui eleita presidente sucessora. O trabalho é grande, a atividade de representação é constante. A todo instante somos chamados a nos posicionar e a nos manifestar.
Na minha opinião, muitas mulheres que estão na SBQ são capacitadas para serem presidentes. Todas têm qualidades (principalmente científica) para representar essa Sociedade, basta ousarem se candidatar. Eu acho que, durante um bom tempo, as mulheres não ousaram se candidatar pois não consideravam que tinham potencial para serem líderes. Esse talvez seja o fator que justifica tão poucas mulheres na presidência.
Eu mesma titubeei diante dessa possibilidade. Porém o mundo e a academia vêm mudando ao longo dos anos. Sempre tivemos mulheres com trabalhos científicos de peso, mas, de fato, por causa de toda a conjuntura mundial e pela visão do papel da mulher, as mulheres não se sentiam qualificadas para isso.
Eu acho que hoje as coisas mudaram, tanto é que a próxima sucessora à presidência é uma mulher também. Hoje as mulheres, além de terem a capacidade que sempre tiveram e a formação e a qualidade científica que sempre tiveram, já sabem que esse também é o lugar delas. Atualmente temos muitas mulheres inspirando mulheres e eu espero que cada vez tenhamos mais.
Porém, para as mulheres, há uma dificuldade maior para ser cientista, para ter uma carreira acadêmica e também para ter um cargo de liderança em uma sociedade cientifica como é a SBQ. Essa dificuldade está relacionada principalmente à família e aos filhos, pois é preciso estar em um núcleo familiar de muita parceria.
Meu esposo sempre foi muito companheiro. Ele entendeu que a minha realização profissional fazia parte do meu DNA e sempre me apoiou em todas as decisões que eu tomava nessa direção. Nós temos uma filha, que era pequena no momento em que eu estava fazendo mestrado, e meu marido esteve lá junto o tempo todo, participando ativamente. Então eu acho que sou privilegiada nesse aspecto, porque tenho um esposo que sempre esteve junto comigo e isso facilitou as coisas.
Desde o ensino fundamental você se interessou pela docência devido aos excelentes mestres que teve. Você busca incentivar esse mesmo caminho em seus alunos?
SNB | Eu gosto de dar aulas. Considero que, na minha carreira acadêmica, a minha primeira e mais importante função é ser professora, ser formadora de recursos humanos. Tanto sendo professora de estudantes de graduação, como sendo professora e orientadora de estudantes de pós-graduação, uma preocupação constante na minha carreira é a qualidade da formação dos estudantes, em todos os níveis.
Sempre me empenhei no sentido de tentar tornar as minhas aulas atrativas e reais para os meus estudantes. Mostrar o conteúdo químico a ser ensinado tentando correlacionar com aquilo que fazemos nos laboratórios de pesquisa, com as leituras dos artigos científicos que temos acesso, isso sempre foi um objetivo no preparo das minhas aulas.
“Na minha carreira acadêmica, a minha primeira e mais importante função é ser professora, ser formadora de recursos humanos.”
Em sala de aula, eu sou bem clara com os meus alunos sobre nossos papéis. Eu sou professora e eles são estudantes. O meu papel é ensinar aquele conteúdo para o qual eu fui designada e o papel deles é tentar apreender aquele conteúdo. Então, eles têm a responsabilidade de estudar e eu, de ministrar a melhor aula possível.
Eu gostaria que os meus estudantes saíssem das minhas disciplinas, do meu laboratório, do mestrado, do doutorado e da iniciação científica tendo em mim um exemplo de profissional. Eu quero ser conhecida como uma professora que dá a sua aula e desempenha o seu papel da melhor maneira possível. Se isso inspira as pessoas, eu não sei, eu espero que inspire.
Qual sua forma de pensar sobre a Química, de um modo geral, e sobre o aspecto científico e acadêmico desse campo?
SNB | A química é uma ciência essencial para o entendimento e manutenção da vida e, portanto, para o desenvolvimento da humanidade. Essa ciência estuda os compostos químicos, as substâncias compostas por moléculas e átomos. Então, essencialmente, a química é uma ciência central presente em tudo que nos cerca. Temos moléculas químicas na nossa mesa, na nossa roupa, no nosso corpo, no ar que respiramos, nas plantas e em todas as coisas visíveis e invisíveis aos nossos olhos.
Entender os processos químicos e como a química está presente em tudo que nos cerca é importante para podermos melhorar a produção de alimentos, os meios de transporte, a produção de energia, entre outras coisas que precisamos para viver e para promover o bem-estar das pessoas.
Entendendo como as moléculas se constroem, como elas se mantêm unidas e interagem entre si, o profissional da química pode desenhar e idealizar novas moléculas ou novos sistemas moleculares que vão ter, em última instancia, uma utilidade em benefício da humanidade.