Caso da lei catarinense mostra como justificativas econômicas se sobrepõem a entendimentos jurídicos sobre animais serem sujeitos de direito e científicos quanto a eles terem senciência. Vídeo: Luca Marinuzzi/Pixabay
Caso da lei catarinense mostra como justificativas econômicas se sobrepõem a entendimentos jurídicos e científicos, avalia estudo. Vídeo: Luca Marinuzzi/Pixabay

Em maio de 2018, o governo catarinense publicou uma lei breve (a lei estadual nº 17.526/18) — que tinha como objetivo “excluir o termo cavalos” de outra lei, o Código Estadual de Proteção aos Animais, de 2003. Com isso, o Estado passou a desconsiderar os cavalos seres sencientes, ou seja, “sujeitos de direito, que sentem dor e angústia”, para limitar essa condição a gatos e cachorros. O motivo, segundo a justificativa do projeto de lei, era econômico: “prejuízo na interpretação da utilização de tais animais em atividades equestres”.

Mudança para declarar que apenas gatos e cachorros são sencientes contraria visões científicas, avalia estudo realizado no grupo de pesquisa Zoopolis, da UFPR

A crítica a esse ponto de vista é a base de um artigo científico desenvolvido no Programa de Direito Animal da Universidade Federal do Paraná (UFPR) que foi premiado no VII Congresso Mundial de Bioética e Direito Animal, do Instituto Abolicionista Animal (IAA), em outubro. A autora, Isabele Dellê Volpe, é aluna do quinto ano de Direito da UFPR, bolsista do Programa de Direito Animal e já tinha um Prêmio Tobias Barreto (título do prêmio do congresso), entregue em 2019. Também foram destacados outros dois artigos, assinados por Giovana Poker e por Evelyne Paludo, ambas pesquisadoras vinculadas ao programa da UFPR, que é coordenado pelo professor Vicente de Paula Ataide Junior.

No artigo “O princípio da vedação do retrocesso na natureza jurídica dos cavalos de Santa Catarina a partir da lei estadual n.º 17.526/18″, Isabele argumenta que a alteração da lei catarinense fere um princípio jurídico chamado de “vedação ao retrocesso”. Considerado implícito na Constituição Federal de 1988, esse princípio tem o objetivo de proteger o ganho de direitos essenciais e a aplicação de outros princípios. Entre eles está o da segurança jurídica, que é a confiança de que o sistema jurídico não mudará de uma hora para a outra, ou seja, de que haverá estabilidade nas relações orientadas por leis.

Emenda contraria princípios jurídicos, avalia estudo

Na visão da estudante, que foi orientada por Ataíde Junior, esse conjunto de entendimentos impediria que a situação dos cavalos retroagisse de sujeito (dono) de direitos reconhecidos para retornar ao status de coisa (bem móvel, no jargão jurídico). E isso ocorreu em apenas quatro meses — o tempo entre a aprovação da lei que reconheceu gatos, cachorros e cavalos como seres sencientes e a alteração que excluiu os cavalos dessa lista.

O artigo classifica o novo artigo como “especista” já na sua origem, uma vez que sempre limitou o número de espécies que considera sencientes, ou seja, com capacidade neurológica de ter consciência da própria existência — condição que, segundo cientistas, pode incluir até crustáceos.

Segundo o artigo, essa delimitação fez com que o artigo 34-A da lei seja de uma modalidade de especismo (discriminação em razão da espécie) em que os animais são “escolhidos” de acordo com o valor que os humanos dão a eles, o chamado especismo seletista. Na prática, é como se a lei atual dissesse que outros animais sencientes podem ser alvo de práticas cruéis quando houver interesse econômico na ausência de proteção a eles.

Produção científica subsidia projetos de lei sobre direitos dos animais

A inconstitucionalidade, porém, estaria no fato de os legisladores terem voltado atrás na decisão de reconhecer os direitos de uma espécie, o que contraria o princípio da vedação ao retrocesso.

“Reconhecer cães e gatos como sujeitos de direito é um avanço essencial, porque abre caminho para que outras espécies sejam reconhecidas depois. Mas é inconstitucional reconhecer determinada espécie como sujeito de direito e logo em seguida, uma lei posterior revogar o reconhecimento”, afirma a estudante.

Essas reflexões serão usadas pelo Programa de Direito Animal da UFPR na tentativa de revisar a lei catarinense. Segundo Ataíde Júnior, a ideia é representar junto ao Ministério Público de Santa Catarina (MPSC) contra a lei que excluiu cavalos da lista de animais sencientes e com direitos reconhecidos.

O professor afirma que os artigos premiados ajudam no objetivo do programa e do Zoopolis, que também buscam reconhecimento dos direitos dos animais. “Pretende-se sobretudo afirmar a autonomia científica do Direito Animal no Brasil, propiciando melhores condições para a proteção dos direitos animais em juízo ou mesmo na seara política e administrativa”.

↪️ Publicado originalmente no Portal da UFPR (www.ufpr.br).
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