Em um estudo sobre a complexidade climática da região Sul do Brasil, uma tese desenvolvida no Programa de Pós-Graduação em Geografia (PPGeo) da Universidade Federal do Paraná (UFPR) revelou padrões de precipitação variáveis ao longo do ano na área investigada, apontando influências que vão além do tradicional fenômeno El Niño.
Os resultados demonstram que, embora o clima dessa região apresente uma distribuição regular de precipitações ao longo do ano, há variações significativas entre as estações e as áreas, o que desafia as percepções já estabelecidas.
Além de confirmar o papel central do El Niño Oscilação Sul na modulação das chuvas, a pesquisa mostra que seus efeitos variam conforme diferentes áreas do Oceano Pacífico se aquecem ou se resfriam, estabelecendo novas perspectivas para entender as interações entre oceano e atmosfera no país.
Defendida por Gabriela Goudard, a tese recebeu menção honrosa no Prêmio Capes de Tese 2024.
Segundo a autora, a compreensão dos regimes de pluviosidade e de seus mecanismos geradores é fundamental para o monitoramento e a modelagem climática, bem como para minimizar potenciais impactos relacionados ao clima e às mudanças climáticas.
“O entendimento da pluviosidade possibilita ter uma melhor previsibilidade para fenômenos como secas prolongadas ou eventos extremos de precipitação, potenciais desencadeadores de desastres no Sul do Brasil”, diz à Ciência UFPR.
A influência do oceano no clima regional
Gabriela explica que, como os oceanos recobrem grande parte do planeta Terra, muitos processos que acontecem no clima podem ser explicados, direta ou indiretamente, pela interação que ocorre entre eles e a atmosfera.
“Algumas dessas interações se propagam pelo planeta, para regiões distantes do local onde surgem e, nesses casos, são denominadas teleconexões. Por meio delas, é possível compreender como um determinado fenômeno que ocorre em uma porção do planeta afeta o clima em locais distantes de sua origem. A temperatura da superfície do mar funciona como uma espécie de ‘gatilho’ nessas interações que acontecem entre o oceano e a atmosfera”.
Apesar de o El Niño-Oscilação Sul (ENOS) ser o principal modulador da pluviosidade — ou seja, da quantidade de chuva que cai em uma determinada região durante um período de tempo específico — no clima subtropical brasileiro, o estudo evidenciou relações com outros índices dos oceanos Pacífico, Atlântico, Antártico e Índico no recorte espacial da pesquisa, que abrange o Rio Grande do Sul, Santa Catarina, a maior parte do Paraná e o sudeste de São Paulo.
Para o orientador da tese e professor do Departamento de Geografia da UFPR, Francisco de Assis Mendonça, essas interações podem ser observadas pela sociedade para a prevenção de eventos climáticos extremos, sendo uma forma de evitar perdas de vidas e danos exagerados.
“O trabalho permite que, ao conhecer a situação climatológica atual, seja possível realizar análises de cenários presentes e futuros visando minimizar os impactos sobre as atividades humanas”.
El Niño afeta diretamente o clima subtropical brasileiro
O fenômeno climático El Niño-Oscilação do Sul (ENOS) é marcado pela alteração da temperatura do mar no oceano Pacífico Equatorial Centro-Leste e é composto por duas fases opostas: o El Niño e a La Niña. Enquanto o primeiro evento se refere à fase quente do fenômeno neste oceano, o segundo está atrelado à fase fria dessa região.
“De modo geral, em anos de El Niño, as precipitações são mais expressivas no clima subtropical em relação às médias do clima, produzindo anomalias positivas de chuvas (chuvas acima da média). Em contrapartida, em períodos de La Niña, as precipitações tendem a estar abaixo da média, produzindo anomalias negativas de precipitação no sul do Brasil. Dessa forma, em anos de El Niño, casos de inundações podem ser mais frequentes, ao passo que em contextos de La Niña, as secas e estiagens ganham mais destaque”, detalha Gabriela.
O estudo identificou que, enquanto o El Niño Leste apresenta as características clássicas desses eventos no Sul do Brasil, como aumentos de precipitação em todas as estações do ano, os El Niños Centrais promovem variações nesses padrões previamente conhecidos e amplamente estudados, com a predominância de anomalias pluviais negativas, sobretudo no outono do ano seguinte ao início do evento.
“Assim no contexto dos El Niños Centrais, condições de seca e estiagem se destacam no clima subtropical, refletindo um padrão oposto ao dos El Niños Leste. Portanto, o conhecimento destas dinâmicas possibilita ações de planejamento e gestão de riscos mais efetivas”, assinala a pesquisadora.
Já no caso das La Niñas, a pesquisa não observou mudanças de padrões, constatando o predomínio de chuvas abaixo da média na área de estudo independente da tipologia dos fenômenos. Contudo, foram observadas variações na intensidade das anomalias pluviais negativas no clima subtropical, sendo estas mais intensas no verão para as La Niñas Leste, na primavera para La Niñas Mix e no outono para La Niñas Centrais.
“Este fato também requer monitoramento, uma vez que a depender da tipologia da La Niña, as condições de estiagens e secas podem ser bem mais intensas no Sul do Brasil, possibilitando assim, medidas de planejamento mais efetivas em relação a essas dinâmicas”, relata Gabriela.
De acordo com Mendonça, a pesquisa contribui diretamente para a política de planejamento climático e para gestão de recursos hídricos, pois permite compreender melhor a dinâmica da influência dos oceanos e dos eventos climáticos com probabilidade maior ou menor de chuva nesses estados brasileiros.
Chuvas no Sul do Brasil não são homogêneas
A divisão do clima subtropical em nove regiões homogêneas realizada para a pesquisa permitiu verificar a existência de diferentes regimes de pluviosidade. Segundo a autora, na maior parte do Paraná e de Santa Catarina, o período de maior pluviosidade ocorre nos trimestres dezembro-janeiro-fevereiro e janeiro-fevereiro-março.
“O regime trimodal, com máximos de precipitações na primavera, verão e outono é verificado no noroeste do Rio Grande do Sul, oeste de Santa Catarina e sudoeste do Paraná. Em geral, a porção norte e leste do clima subtropical apresenta a precipitação mais marcada no verão, ao passo que no Rio Grande do Sul, a distribuição é mais regular ao longo do ano”, descreve a pesquisadora.
As análises possibilitaram o questionamento e a desconstrução da noção de homogeneidade pluvial no clima subtropical que é perpetuada na literatura clássica da climatologia e corroboraram com abordagens adotadas na meteorologia.
A descoberta tem relevância para políticas públicas, principalmente as que tratam da produção agrícola na região Sul.
“Os planejamentos agrícolas, urbanos e industriais da região sempre consideraram a pluviosidade local como um todo, de forma igual e uniforme. Mas a tese mostra que a quantidade de chuva ocorre de forma variada no tempo e no espaço”, enfatiza Mendonça.
Com o avanço da discussão sobre mudanças climáticas, dada a intensificação de fenômenos extremos que têm impactado a agricultura, a indústria, o meio urbano, a ecologia e até a saúde humana, os dados apontados no estudo revelam-se fundamentais para trabalhos relacionados à previsibilidade de condições climáticas e, consequentemente, à distribuição ou à escassez e excesso de água no sistema natural.
“Ter esse tipo de informação com antecedência permite influenciar as ações de previsão, bem como as ações de enfrentamento antecipadas aos desastres climáticos, auxiliando a sociedade a minimizar os impactos da seca, de inundações e dos demais eventos climáticos na região subtropical do Brasil”, finaliza o professor e pesquisador.