Nos anos 1950 a sociedade brasileira passava por transformações culturais marcantes. As tensões entre instituições autoritárias e um novo estilo de vida, com maior liberdade, afetava principalmente os jovens das classes médias urbanas, que viviam tudo isso em seus cotidianos.

A literatura não passou incólume a essa tensão. O surgimento de um novo estilo de romance naquela década expressa os dilemas e conflitos de uma geração que buscava romper com o passado mas ainda não tinha ideia de que caminhos trilhar.

Um estudo desenvolvido no Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal do Paraná (UFPR) e publicado no periódico científico Remate de Males, analisou dois romances que se fixaram como marcos dessa mudança: O Ventre, de Carlos Heitor Cony, e O Encontro Marcado, de Fernando Sabino.

O artigo de autoria do professor Pedro Dolabela Chagas e do doutorando Luiz Guilherme de Oliveira revela como o tema da viagem é utilizado como uma metáfora para abordar o amadurecimento dos personagens, um artifício que expõe o processo de construção de sua personalidade, ou “formação do self”, como colocam os autores.

Para eles, essas obras representam o Bildungsroman (“romance de formação”) brasileiro, estilo de romance centrado no processo de formação da identidade e autoconsciência dos protagonistas.

“O conceito de Bildungsroman indica um romance em que é exposto, de forma pormenorizada, o processo de desenvolvimento físico, moral, psicológico, estético, social ou político de um personagem, geralmente desde a sua infância ou adolescência até um estado de maior maturidade”, explica Oliveira.

O trabalho avalia que os romances estudados refletem a passagem de uma sociedade hierárquica para uma sociedade mais permissiva onde os jovens estão em busca de se conhecer e o seu desenvolvimento aparece interligado à jornada que são forçados a fazer.

Transformação existencial acompanha deslocamentos territoriais dos personagens

Chagas explica que no processo de criação ficcional os elementos não aparecem por acaso e que em uma narrativa de ficção toda viagem tem significado, e reflete alguma coisa simbolicamente importante para o que está acontecendo naquele conto.

“Se o autor coloca os personagens para se deslocar no espaço, ele tem motivos para fazer isso”, completa.

Para os autores, as obras estudadas são representativas de uma geração de escritos brasileiros que expressam uma nova imagem do self em personagens inadaptados aos seus meios de origem e impelidos a processos conflitivos de afirmação existencial.

Carlos Heitor Cony, em retratos de 1964 e sem data; e Fernando Sabino, em fotos sem data. Fotos: Ana Paula Oliveira Migliari/EBC/TV Brasil; Commons; e @institutofernandosabino/Reprodução

Segundo Oliveira, esse novo estilo marca uma mudança fundamental no romance brasileiro que antes apresentavam menos variações em suas temáticas, era um romance mais sério com um objetivo social muito voltado para a interpretação do Brasil, na época um país ainda com capital no Rio de Janeiro e que chegava aos 60 milhões de habitantes.

O trabalho também aponta como a vivência dos leitores é incorporada na construção das obras literárias, que acabam tendo suas angústias, desejos e sonhos refletidos nos textos.

Na pesquisa eles buscaram entender como, nesse contexto, a função existencial da viagem, que ecoava valores inicialmente formulados no primeiro romantismo, readquiriram relevância no Brasil daqueles anos.

Temática inspirou escritores brasileiros contemporâneos

Os autores destacam assim a busca por maior autonomia e fuga da disciplina e da hierarquia que é representada pelo permanente deslocamento. A diferença com o primeiro romantismo aparece quando esses valores não conseguem ser expressos em um modo de vida generalizável.

O trabalho explica que isso é encontrado na valorização da arte e da vida imaginativa que ofereciam modelos de realização para todos que se identificassem com o sujeito romântico e sua inadaptação à sociedade contemporânea. Contudo, nos casos de Cony e Sabino essa identificação não existe, como expõe o artigo:

“O drama se verticaliza pela falta da ideação de qualquer modelo de vida alternativa generalizável: a trajetória do protagonista segue de sofrimento em sofrimento, sem identificar promessa de redenção em qualquer prática ou relação que ele viesse a conhecer”

O trabalho aponta que o Bildungsroman assumiu em nossa literatura um papel de relevância devido ao gênero dar expressão a angústias de uma juventude presa na transição entre modelos de vida fundados na obediência a instituições tradicionais e a plena legitimação da construção de novos modos de vida, que seriam estabelecidos apenas em gerações posteriores, o que vai marcar a evolução da literatura brasileira.

Em escritoras como Lygia Fagundes Telles a questão da formação já aparece mais desestruturada, com as mesmas relações sendo colocadas mas um self reagindo a si mesmo, como no romance A paixão segundo G.H. em que a trama se passa principalmente no fluxo de consciência da protagonista.

O trabalho explica que essa tendência se aprofunda posteriormente em autores como Jorge Mautner e João Gilberto Noll que não dramatizam mais a tensão entre inadaptação e adequação ao mundo: nada mais será buscado ou resolvido, o self agora está à deriva.

Assim o Bildungsroman perde o sentido de ser, com a formação do protagonista saindo de cena “a resposta seria a substituição da viagem pela inação, falta de propósito, falta de ancoragem atrelada à noção de que nenhuma ancoragem era possível, ou mesmo desejável”, como colocam os autores.

A conclusão é de que o drama da geração se perpetua, também pela instabilidade de suas decisões. “Não tomei resolução. Tomei um trem para Belo Horizonte”, escreve Cony sobre José Severo, o protagonista de O Ventre.

Por Felipe Reis e Rodrigo Choinski
Edição: Camille Bropp e Rodrigo Choinski
➕ Leia detalhes no artigo “Viagem e formação: notas sobre o self no romance brasileiro pós-1945, numa leitura de O Ventre e O Encontro Marcado“, publicado no periódico Remate de Males
➕ Acesse a tese “Personagens em movimento: a imaginação espacial do Brasil em romances dos anos 50 a partir do deslocamento de seus personagens”, defendida por Luiz Guilherme de Oliveira
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