Com diretrizes pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), que define o interesse da criança e do adolescente como o de mais peso no assunto, a regra para a adoção é que seja um processo em que a mãe biológica é uma figura envolta em sigilo. Fora o direito ao arrependimento — que a mulher deve manifestar antes de a guarda do filho ser entregue a outra família —, por lei ela não influi na escolha dessa família, que será a da lista do judiciário, nem em qualquer decisão posterior.
Ainda assim, fugiram à regra cerca de 800 situações de adoção registradas entre outubro de 2019 e maio de 2021 — uma fatia de um universo que soma, em média, 4,5 mil casos de adoção por ano. Esses são os dados do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) divulgados depois da substituição do Cadastro Nacional de Adoção (CNA) pelo Sistema Nacional de Adoção (SNA), em 2019, e analisados por pesquisadores da Universidade Federal do Paraná (UFPR).
Foram casos de adoção dirigida, também chamada de adoção por entrega direta. Ao contrário de outras modalidades de adoção que não usam o fluxo do SNA, esse não está regulado juridicamente, mas acontece no Brasil e não raramente acaba autorizada pela Justiça. Nessa situação, a entrega para adoção ocorre inicialmente fora do sistema judicial, quando uma família adotiva sem vínculos familiares com a biológica é escolhida diretamente por essa família de origem, geralmente pela genitora. Esse é um cenário distante do que o ECA prevê em relação à necessidade de existência de laços familiares para justificar a quebra da fila de adotantes.
Sendo complexas as questões de família, porém, os tribunais não têm um consenso sobre o assunto. Resolver a insegurança jurídica tem sido a principal justificativa das iniciativas pela regulamentação da adoção por entrega direta, que foi objeto de projetos de lei nos últimos anos. A posição majoritária do CNJ, expressa em pareceres apresentados sobre esses projetos, tem sido contrária à regulamentação por lei por considerá-la uma proposta oposta ao interesse de crianças e adolescentes, principalmente devido ao risco de fraudes.
Essa problemática tem sido investigada no Programa de Pós-Graduação em Direito da UFPR. Em um desses trabalhos, tocado no doutorado de Hermano Victor Faustino Câmara, o pesquisador defende a necessidade de o direito à adoção por entrega direta ser previsto em lei, visando garantir o melhor interesse das crianças e adolescentes adotados e aludindo ao direito da mulher genitora. Câmara menciona no estudo que as experiências de outros países apresentam modelos em que a mãe biológica pode escolher não ser apagada do processo em variados níveis.
A tese orientada pela professora Ana Carla Harmatiuk Matos, da UFPR, com co-orientação de Fernando Moreira Freitas da Silva, juiz da vara de infância no Tribunal do Mato Grosso do Sul, rendeu um artigo publicado na revista Civilistica.com.
Números colocam a adoção dirigida como realidade, avaliam pesquisadores
O ECA prevê hipóteses em que são legalmente aceitas as adoções fora do sistema judicial, sendo então os adotados direcionados a uma família específica. Essa modalidade de adoção é chamada intuitu personae (a expressão em latim quer dizer “em consideração à pessoa”, caracterizando com isso a adoção de criança ou adolescente previamente definido).
“Na entrega direta, a família substituta não integra essa lista, não tendo vínculos biológicos ou parentesco por afinidade com a criança”, afirma Ana Harmatiuk. “Nas tentativas legislativas de ampliação do rol para incluir a entrega direta na lei, os argumentos em contrário costumam girar em torno da defesa do SNA como política pública consolidada, e também do risco de a entrega direta mascarar uma suposta comercialização de crianças”.
Segundo nota técnica aprovada pelo conselho em 2020, em resposta a um dos projetos de lei sobre o assunto, à época em tramitação no Senado, regular a adoção por entrega direta traria a ameaça das fraudes para encobrir vendas de crianças e famílias acolhedoras (lares temporários) de fachada.
Outra consequência seria o rebaixamento do longo processo formal pelo qual candidatos a adotantes precisam se preparar para serem considerados aptos a ingressar no SNA. Nesse caso, a pressão está relacionada à divergência entre as escolhas dos adotantes do sistema (geralmente bebês de mesma raça, sem problemas de saúde ou irmãos) e as crianças disponíveis para adoção. É esse descompasso que explica por que existe uma fila represada de mais de 32,3 mil candidatos à adoção no sistema, enquanto cerca de 5,6 mil crianças e adolescentes permanecem sem famílias adotivas.
Novos dados disponibilizados pelo CNJ, porém, mostram que essa forma de adoção é mais comum do que se imagina. Até 2019, os dados sobre adoção intuito personae não constavam no CNA. Só foram incluídos após a substituição deste pelo SNA. Por conta disso, os dados atuais sobre este tipo de adoção não são acurados — há uma subnotificação dos processos anteriores a esse período.
No relatório da pesquisa “Destituição do poder familiar e adoção de crianças”, do CNJ, consta que entre outubro de 2019 e maio de 2021 houve registro de 3.217 crianças adotadas pela modalidade intuitu personae no SNA. Deste número, há 799 crianças adotadas com motivo “Hipótese Excepcional/Outros”, 583 adoções com motivo “Parentes”, 1.101 adoções com motivo “Guardiões Judiciais” e 734 adoções com motivo “Unilateral”.
As adoções por entrega direta estariam incluídas no rol do motivo “hipótese excepcional/outros”, mostrando significativa ocorrência dentro do universo das adoções intuitu personae, segundo Harmatiuk.
“Graças à inclusão desses dados no SNA, é possível identificar que a adoção pela entrega direta é uma realidade no Brasil. Ocorre em todo o país, e inclusive está em tendência de crescimento. Não que não houvesse antes — mas havia uma invisibilidade dessa estatística”, explica. “Com os dados sistematizados pelo sistema, é possível pensarmos reformulações da política da adoção, afinal há uma realidade que agora se conhece, e que precisa ser considerada”.
Pela falta de dados precisos e principalmente pela falta de uma regularização pela lei, os pesquisadores entendem que não há critérios específicos para a homologação de casos de adoção por entrega direta. Alguns são reconhecidos pela Justiça, outros não. Para a docente da UFPR, a insegurança jurídica da situação é “gritante”.
“Já houve caso em que se determinou busca e apreensão da criança ainda durante a gestação, e a criança foi retirada da genitora logo após o parto, como punição pela tentativa de adoção ‘irregular’. Não é a tendência jurisprudencial majoritária, mas a falta de uma previsão legislativa, ou mesmo de uma tese de repercussão geral sobre o assunto, gera essa grave situação de insegurança jurídica”.
Caminhos para a regulamentação e o respeito aos direitos da mulher
Os projetos de lei que visaram regulamentar a adoção por entrega direta encontram-se atualmente arquivados. Além do risco de fraudes, as justificativas para a não aceitação da pauta passam pela necessidade de proteger o sistema de cadastros, abrangendo também o argumento de que a adoção pela entrega direta seria injusta com os pretendentes cadastrados no SNA, ou seja, “furaria a fila”.
Os pesquisadores da UFPR afirmam, porém, que o critério cronológico do SNA não é absoluto, e que ele não compreende plenamente o melhor interesse da criança adotada.
“No modelo que defendemos, caberia ao Poder Judiciário a homologação da entrega direta, como inclusive já ocorre nas modalidades legais de adoção intuitu personae. Dessa forma, haveria um controle dos casos e uma análise prévia, afastando os problemas apontados”, afirma Ana Carla Harmatiuk Matos.
Hermano Faustino Câmara, pesquisador cuja tese deu origem ao artigo, opina que não acredita em um projeto de lei que possa regulamentar a adoção por entrega direta, mas vê possibilidade de um outro caminho.
“Já teve seis projetos de lei que foram arquivados, objetando isso. Penso que a sociedade tem uma dificuldade de pautar esse assunto. Na minha visão pessoal, acreditaria em uma repercussão geral de uma decisão jurídica de um tribunal, como o STJ ou STF, dando repercussão geral ao tema da doação intuito personae”, afirma. “Nisso eu acredito, em uma jurisprudência que pudesse tornar isso um padrão, a exemplo do que acontece com o Tema 622 [entendimento do Supremo Tribunal Federal] e a multiparentalidade. Isso se alcançou através de uma decisão com repercussão geral, então eu acredito que a adoção intuitu personae poderia ser regulamentada através desse formato”.
Apesar de no momento não haver caminhos imediatos que poderiam resolver a insegurança jurídica da adoção por entrega direta, o artigo reflete que mudanças legais que passaram a considerar mais a genitora no processo de adoção podem colaborar para que essa forma de adoção seja reconhecida.
De acordo com a docente da UFPR, no Brasil a adoção fechada é o padrão e há tabus na discussão sobre adoção aberta, onde a origem biológica dos adotados é conhecida. Em alguns países a adoção aberta é uma possibilidade e a escolha da família substituta é um direito, que Ana Harmatiuk entende como garantia da dignidade e do protagonismo da mulher no processo.
“Esse [processo da adoção fechada] é um padrão que protege o interesse da família adotante: em vários países há estudos que demonstram que os adotantes preferem a adoção fechada, para aproximar a sensação da filiação adotiva à da filiação biológica, ‘apagando’ a origem da pessoa adotada. Esse padrão aniquila não só o direito da pessoa adotada, mas também impõe o apagamento da mulher que opta pela desistência da maternidade”, diz.
Em sua tese de doutorado, Hermano Faustino Câmara abordou a adoção por entrega direta como um direito da mulher. O pesquisador dá como exemplo os Estados Unidos, onde a mulher que entrega a criança para a adoção tem direito de escolher a família ou de participar dessa escolha, ou até mesmo de manter contato com a criança se for aceito pela família substituta.
“A gente entende que há uma lacuna de direitos dessa mulher no Brasil, porque ela é condenada à invisibilidade. A gente entende que, se a adoção para família substituta é um caminho para a realização de um projeto familiar, para a mulher que entrega também é, porque o projeto familiar pode incluir o direito de não ser mãe contra a própria vontade. Isso é um direito, que precisa ser recheado de prerrogativas de acolhimento de respeito. E não é o que acontece hoje na nossa visão”, afirma.
Alterações recentes no ECA contém algumas prerrogativas que ampliaram os direitos da genitora no momento da renúncia à maternidade, como atendimento psicológico, acolhimento e entrevista para verificação de seu consentimento. Os autores do artigo concluem no texto que isso é aponta para uma tendência de reconhecer o direito à escolha da família substituta:
“Esse direito, cujas tentativas de inserção na lei não restaram aprovadas, já vem sendo judicialmente reconhecido em casos específicos. Convém fortalecer-se esse debate, a fim de seu reconhecimento em perspectiva ampliada – seja por meio da alteração legal para ampliação do rol do ECA, nos moldes já tentados, ou pela via de precedentes, assegurando à mulher o direito à entrega direta para fins de adoção intuitu personae”.
Impactos da adoção direta ainda precisam ser medidos
Na adoção por entrega direta, a escolha da família que vai adotar a criança é feita de forma consensual entre a genitora (ou genitores) e os adotantes, excluindo do processo os outros atores – Poder Judiciário, Ministério Público e pretendentes cadastrados no SNA. De acordo com a psicóloga Renata Pauliv, especialista em adoção e membro do Grupo de Estudos e Apoio à Adoção Florescer, vários fatores podem levar à ocorrência desta forma de adoção.
“Pode ser porque existe uma ligação de amizade ou porque a pessoa é conhecida da família ou de alguém próximo. Às vezes, por entender que a criança terá um futuro garantido. Do outro lado, aos que recebem a criança em adoção, há uma busca desta modalidade de adoção para se evitar a ‘burocracia’ do processo de uma adoção legal”, afirma.
Por não estar prevista em lei, a entrega direta de crianças e adolescentes pode gerar riscos que impactam diretamente os adotantes e adotados, especialmente relativos à falta de preparo da adoção. Para a psicóloga, isso engloba questões emocionais tanto dos filhos como dos pais adotivos, e pode gerar questões como a criança adotada ser tratada diferente, sofrer rejeição ou ficar fora de heranças, por exemplo.
“Essas e outras situações nem sempre são pensadas numa adoção direta e muitas vezes a criança fica vulnerável a elas, sem nenhum tipo de amparo legal”, explica. “Também a genitora pode se arrepender da entrega da criança e esse direito não ser respeitado, ou os pais adotivos serem surpreendidos com uma ação da genitora requerendo a guarda da criança, desfazendo os laços da família adotiva. Além disso, como não há um critério de seleção desta nova família, a criança poderá vivenciar situações de violências, negligência, maus-tratos, discriminações no ambiente familiar”.
Muitos casos homologados, de acordo com Renata, ocorrem pensando nos vínculos estabelecidos pelos adotantes e adotados e no melhor para a criança. Mas nem sempre isto é reconhecido pela autoridade judicial, e os laços acabam sendo rompidos pela autoridade legal.







