O controle das agências de inteligência dos Estados Unidos (CIA) e da Alemanha (BND) sobre a empresa suíça de criptografia Crypto AG foi chamado, em fevereiro, de “golpe de inteligência do século” pelo Washington Post. O diário trouxe à tona o arranjo que permitiu com que EUA e Alemanha tivessem acesso a informações de segurança nacional de países que eram clientes da empresa a partir dos anos 70 e durante mais de 50 anos, o que significou, para esses países, “pagar bom dinheiro aos EUA e à Alemanha Ocidental pelo privilégio de ter suas mensagens mais confidenciais lidas por pelo menos dois, ou até seis, outros países”. Um artigo publicado no periódico Cambridge Review of International Affairs no último dia 17, assinado por pesquisadores brasileiros, revela que, até então pouco conhecida, a atuação do Brasil no esquema foi intensa.
Segundo os autores, entre eles professores das universidades federais Fluminense (UFF) e do Paraná (UFPR), não só a ditadura militar brasileira ajudou a distribuir, por toda a América Latina, as máquinas de criptografia grampeadas, como a presença da Crypto AG no País adentrou o século XXI.
“Dependência tecnológica é o nome certo para designar tal processo histórico. Havia a necessidade de tecnologia em inteligência e a resposta para tal demanda foi buscada fora do país”
Em uma publicação de 2015, produzida pela própria empresa, ela descreve seu escritório no Brasil, com sede no Rio de Janeiro, como representante para toda a América Latina. “Além de hospedar a representação da empresa no continente, o Brasil continuou a fazer negócios com a Crypto AG até recentemente”, explica Dennison de Oliveira, professor titular do Departamento de História da UFPR. Por meio da ocultação dos verdadeiros mantenedores da empresa, os governos dos EUA e da Alemanha puderam ter controle sobre o design, os algoritmos e as vendas dessas máquinas diretamente.
Oliveira é coautor do artigo, chamado “Exploring the relationship between crypto AG and the CIA in the use of rigged encryption machines for espionage in Brazil”, juntamente com Vitelio Brustolin, líder da pesquisa, professor da UFF e das universidades de Harvard e de Columbia, e Alcides Peron, pós-doutorando no Departamento de Sociologia da Universidade de São Paulo (USP).
Distribuição a aliados da Operação Condor
O trabalho traz documentação da Agência de Segurança Nacional dos EUA (NSA), do Itamaraty e do Arquivo Nacional. Os registros apontam que o Brasil fez uso e distribuiu máquinas de criptografia que foram adulteradas para que o código das mensagens fosse facilmente quebrado pela CIA e pela BND. Diante disso, os documentos mostram que a inteligência estadunidense teve acesso a informações sobre as políticas econômica e de segurança dos países — incluindo as que abrangiam violações de direitos humanos. As negociações para compra das máquinas foi intermediada pelo governo suíço entre as décadas de 50 e 70.
Segundo o artigo, como integrante da Operação Condor, por meio da qual as ditaduras de Chile, Argentina, Bolívia, Paraguai, Uruguai e Brasil uniam esforços para se manter no poder, o Brasil atuou como fornecedor de equipamentos de criptografia para esses países em meados dos anos 70. A Argentina também teve esse papel. O trabalho científico relata, por exemplo, como um funcionário da Divisão de Comunicação e Arquivos (DCA) do Ministério das Relações Exteriores fez viagens por 12 países latino-americanos para oferecer a eles “meios modernos de criptografia”.
Segundo artigo, documentos mostram que o governo dos EUA tinha conhecimento das violações aos direitos humanos nas ditaduras latino-americanas. Na foto, manifestação de artistas contra a censura em 1968, na Câmara Municipal do Rio de Janeiro. Foto: Domínio público/Acervo Arquivo Nacional
“A pesquisa descobriu a compra de uma nova leva destas máquinas pelo governo brasileiro em 1971. Como se tratavam de máquinas adulteradas para terem seus códigos facilmente quebrados pelos EUA, isso comprova o fato de que funcionários do governo dos EUA e da Alemanha tiveram conhecimento dos sequestros, torturas e assassinatos cometidos pelas ditaduras participantes da Operação Condor”, lembra Oliveira.
O estudo encontrou indícios de que o arranjo acabava por expor outros países de fora do continente, incluindo os controladores da Crypto AG — um para o outro, no caso. “Outros acervos documentais recentemente liberados sugerem que os Estados Unidos usaram informações vazadas pelas máquinas de telecifragem da Crypto AG para espionar as negociações relacionadas com o programa nuclear brasileiro, resultado de uma parceria estabelecida com a Alemanha”.
O risco da dependência tecnológica
Além de o Brasil abrigar uma subsidiária da empresa suíça em seu território, o governo brasileiro ainda se manteve cliente da Crypto AG após a redemocratização. Os historiadores localizaram registros de compras pelo governo federal entre 2014 e 2019.
“Todas as encomendas, de plataformas de criptografia completas, incluindo o hardware, o software e a licença para uso do software, foram feitas pelo Ministério da Defesa e, em sua totalidade, pela Marinha do Brasil. O último pagamento do Brasil para a Crypto AG registrado até o momento ocorreu em 3 de dezembro de 2019. Tratava-se de sistemas destinados aos novos submarinos brasileiros do Posub [Programa de Desenvolvimento de Submarinos, parceria com a França firmada em 2008]. É uma descoberta chocante se levarmos em conta que a CIA continuou operando secretamente a empresa até 2018”, explica Oliveira.
O professor acredita que o governo brasileiro pode ter desconfiado do arranjo, mas provavelmente só teve certeza dele em 1982, com a criação do Centro de Pesquisa e Desenvolvimento para a Segurança das Comunicações (Cepesc), ligado à Agência Brasileira de Inteligência (Abin). Ainda assim, registros históricos indicam que a empresa suíça provavelmente foi a única fornecedora de equipamentos de criptografia para o Brasil por décadas.
O modelo CX-52 começou a ser fabricado pela Crypto AG nos anos 50 e era mecânico, mas com teclado elétrico. Nos anos 70, essa tecnologia estava muitos anos aquém do considerado avançado para a época. Teclados exigem que se digite a mensagem letra por letra e os modelos logo posteriores da Crypto AG resolviam esse problema. Em nível mundial, a empresa, dizem os pesquisadores, se manteve a principal fornecedora de criptografia até a telecifragem ser substituída por novas tecnologias de informação, nos anos 90.
“Dependência tecnológica é o nome certo para designar tal processo histórico. Havia a necessidade de mecanização dos processos de codificação e decodificação de mensagens e a resposta para tal demanda foi buscada fora do país”, avalia Oliveira.
No artigo, os pesquisadores incluíram um alerta sobre equipamentos da Crypto AG continuarem sendo usados por países clientes da empresa, extinta em 2018. Na soma, cerca de 120 países foram compradores da empresa. Os autores também apontam como as parcerias público-privadas têm sido a estratégia da CIA para interceptar informações essenciais para a segurança nacional de outros países.
“É importante deslanchar um extenso e profundo debate sobre o que acontecerá com o Brasil se seguirmos importando, para uso do governo e das Forças Armadas, equipamentos e sistemas de codificação e decodificação de mensagens desenvolvidos no estrangeiro”, ressalta o professor da UFPR.
(Por Camille Bropp e Aline Fernandes França)
Seria interessante que a matéria explicasse como tais códigos eram quebrados.
Olá, Anselmo, agradecemos a audiência. O texto traz dois links que podem aprofundar o tema, o da reportagem do Washington Post e o do artigo científico. Fizemos algumas alterações no texto para deixá-lo mais claro, mas basicamente os governos mencionados eram os reais mantenedores da empresa que produzia e vendia as máquinas de criptografia, o que garantia total controle sobre as mais diversas formas de interceptar as mensagens.