História evolutiva revela por que lagostins cavam tocas complexas Estudo inédito combina dados de mais de 150 espécies para compreender a origem e a diversidade do cuidado que esse crustáceo tem com os filhotes
Transição de ancestrais marinhos para ambientes de água doce reduziu a dependência das tocas e diversificou as estratégias de reprodução e proteção da prole. Fotos: Zackary Graham/Acervo Pessoal

O cuidado parental prolongado não é uma característica exclusiva dos seres humanos. Alguns animais também mantêm esse comportamento mesmo depois que os filhotes alcançam independência física. É o caso de espécies de lagostins, crustáceos de água doce que podem escavar tocas complexas, de mais de dois metros de profundidade, para proteger a prole, que muitas vezes permanece por perto mesmo após a fase juvenil. Esse comportamento é mais comum em lagostins que produzem menos ovos, mas cujas crias apresentam maiores chances de sobrevivência. 

Ao investigar melhor essa conduta, os pesquisadores descobriram que, ao contrário do esperado, essa não foi uma estratégia moldada ao longo da história evolutiva da espécie. O estudo internacional publicado na revista Systematic Biology mostra que, à medida que ancestrais marinhos migraram para ambientes de água doce, ocorreu justamente o oposto: a colonização de rios e lagos levou os lagostins a depender muito menos das tocas para sobreviver. 

A pesquisa, pioneira ao utilizar a história evolutiva como ferramenta para explicar a evolução do cuidado parental, analisou dados morfológicos, comportamentais e filogenéticos de 156 espécies de lagostins por meio de métodos comparativos e reconstruções ancestrais. Essa abordagem integrada permitiu traçar uma linha do tempo evolutiva detalhada, algo inédito para o grupo. 

GALERIA | Lagostins: história evolutiva e cuidado parental
Reconstruções evolutivas indicam que os primeiros lagostins de água doce provavelmente tinham ninhadas pequenas e ovos grandes, sem forte dependência de tocas.
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Reconstruções evolutivas indicam que os primeiros lagostins de água doce provavelmente tinham ninhadas pequenas e ovos grandes, sem forte dependência de tocas.
A escavação de tocas complexas evoluiu mais de 30 vezes ao longo da linhagem dos lagostins, com reversões para hábitos aquáticos em alguns casos.
Os lagostins que vivem em riachos e córregos geralmente oferecem cuidados mínimos para seus filhotes, enquanto algumas espécies constroem tocas e exibem cuidados prolongados, que podem durar até anos.
Todas as fêmeas de lagostim incubam ovos fertilizados que são expelidos e carregados para baixo de seus pleópodes (apêndices abdominais) até a eclosão.
Imediatamente após a eclosão, os lagostins recém-nascidos são incapazes de se alimentar e permanecem presos ao corpo de suas mães.
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O professor Alexandre Varaschin Palaoro, do Departamento de Zoologia da Universidade Federal do Paraná (UFPR), liderou o estudo. Ele explica que a reconstrução da história evolutiva revelou que os ancestrais dos lagostins já escavavam tocas. As principais mudanças ocorreram nos crustáceos de riacho, que produzem muito mais ovos como estratégia para equilibrar a sobrevivência da prole e da mãe — que gasta muita energia cuidando dos filhotes até que se tornem independentes. 

História evolutiva sugere mais variáveis no cuidado parental do lagostim

A partir da análise de fósseis, os pesquisadores identificaram que a maioria dos ancestrais vivia em tocas. A conclusão é que os lagostins sempre foram escavadores e permanecem assim até hoje, embora as espécies que habitam riachos escavem menos. 

“Ao longo da evolução desse grupo, a habilidade de escavar sempre esteve presente. Percebemos que a característica que está evoluindo é a ida para os riachos”, explica Palaoro. Essa mudança de ambiente tem alterado tanto a complexidade das tocas quanto o cuidado parental, já que, quanto mais os lagostins escavam, mais próximos de uma unidade familiar tendem a ficar.  

“O estudo traz evidências contrárias às hipóteses que associam o cuidado parental, como a construção de tocas, a investimentos em ovos maiores. O esperado seria que, à medida que os comportamentos parentais aumentassem, os ovos também se tornassem maiores, numa estratégia semelhante a concentrar todos os ovos numa única cesta. Mas demonstramos que, muitas vezes, as respostas estão na própria história evolutiva do grupo. Essa foi a primeira vez que a história evolutiva foi usada como mecanismo para explicar a evolução do cuidado parental”, detalha o professor à Ciência UFPR. 

Ao analisar a linhagem da espécie, os pesquisadores identificaram aspectos da transição de ancestrais marinhos para ambientes de água doce. “A colonização de rios e lagos exigiu adaptações como ovos grandes, que garantem sobrevivência sem estágios larvais. A independência das tocas surgiu muito depois na linhagem dos lagostins”, explica Palaoro. 

Escavação é estratégia para conservação da espécie ameaçada por mudanças climáticas

Exemplo de uma toca semi-terrestre que alcança águas subterrâneas. Ilustração: Sam Wilson (WLU)

Existem mais de 700 espécies de lagostins no mundo, das quais a maioria constrói tocas rudimentares em corpos d’água superficiais permanentes. Outras, porém, dependem da escavação de tocas semi-terrestres complexas que alcançam águas subterrâneas. Essas estruturas podem chegar a vários metros de profundidade e criam um ambiente controlado e estável, habitado pelos animais durante a maior parte da vida. 

Embora ambos os grupos exibam formas de cuidado parental, o grau desse cuidado varia. Todas as fêmeas, independentemente de escavarem mais ou menos, incubam ovos fertilizados que são transportados até a eclosão. As espécies mais escavadoras costumam apresentar níveis mais elevados de cuidado após a oviposição em comparação às de escavação reduzida. 

Esse é um dos pontos mais relevantes da pesquisa no que se refere às estratégias de conservação da espécie.

“O trabalho mostra o quão variáveis são as estratégias parentais dos lagostins. Algumas espécies podem produzir apenas uma dúzia de ovos por vez, enquanto outras chegam a milhares. Essa é uma variação considerável que ainda não é amplamente reconhecida. Espécies que vivem mais tempo e produzem menos ovos também tendem a enfrentar mais problemas de conservação, porque não se reproduzem com tanta frequência nem crescem tão rapidamente”, afirma Zackary Graham, professor de Biologia da West Liberty University e coautor do estudo. 

Para Palaoro, trata-se de um equilíbrio entre a sobrevivência da prole e a do indivíduo. “O ambiente em que cada lagostim vive molda o cuidado com os filhotes, pois o animal depende das condições disponíveis naquele espaço. Esse equilíbrio é o que faz, de fato, essas características evoluírem, já que, dependendo do ambiente e da história evolutiva, um lado da balança tende a pesar mais”. 

Outro fator que interfere na conservação da espécie e, consequentemente, no cuidado parental, está ligado às mudanças ambientais. No Brasil, por exemplo, existem espécies de lagostins mais escavadoras, que dependem de áreas alagadas para construir suas tocas. Se as alterações climáticas tornam essas áreas mais secas, as chances de sobrevivência da espécie diminuem. 

Em outros países, como Estados Unidos e Austrália, as espécies de riacho são mais comuns. A interferência nesses ambientes, como o uso de agrotóxicos, também afeta a sobrevivência dos indivíduos. “O trabalho abre portas para estudos sobre como mudanças ambientais influenciam a evolução de comportamentos parentais e a morfologia em crustáceos”, complementa Palaoro. 

Métodos filogenéticos possibilitam avançar no conhecimento sobre espécies

A pesquisa também ressalta a relevância de métodos filogenéticos — técnicas usadas para estimar as relações evolutivas entre espécies ou genes — na compreensão de padrões complexos da natureza. Mostra ainda como a combinação de múltiplas abordagens, informadas por filogenia, pode esclarecer a origem e a evolução das características da história de vida. 

Para Graham, o estudo demonstra a importância de construir uma linha do tempo evolutiva para compreender como e por que certas estratégias de cuidado parental surgem.

“Essa perspectiva histórica ajuda a identificar o mecanismo exato pelo qual essas estratégias se desenvolveram, pois é essencial contar com informações sobre os ancestrais do grupo em estudo. Escolhemos os lagostins porque consideramos que eram um bom grupo para investigar essas questões, mas métodos semelhantes podem ser aplicados a qualquer grupo de animais”. 

➕ Mais detalhes no artigo “Evolutionary Timelines Help Explain the Evolution of Parental Care Strategies”, publicado no periódico Systematic Biology, da Oxford Academic (em inglês; fechado)
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