Assim que começou a lecionar Filosofia em escolas, Luís Thiago Freire Dantas avaliou que havia uma dissociação entre o que aprendeu sobre metodologia de ensino da disciplina e a realidade dos alunos. “‘Para que estudar Filosofia?’ foi uma das perguntas que mais ouvi dos alunos de ensino médio”, conta. “Percebi que na licenciatura se aprende uma Filosofia que é acadêmica, pouco dialoga com as comunidades em que os alunos estão inseridos, principalmente porque possui uma prenoção eurocentrada”.
Essa percepção de que delimitar o ensino de Filosofia às teorias clássicas significa negar a existência de intelectualidade fora do Norte do mundo se tornou a tese de doutorado de Dantas, apresentada no Programa de Pós-Graduação em Filosofia da UFPR em fevereiro. O pesquisador também propôs formas de intervenção para a inclusão da Filosofia Africana na educação básica e na licenciatura.
“Minha ideia era mostrar que preconceito e falta de diálogo geram obstáculos à Filosofia Africana. Sócrates não deixou produção escrita, então oralidade não é problema, e filósofos africanos escreveram em Português”
Dantas partiu da ideia de que um dos princípios relacionados à filosofia, a universalidade, que determina que o ensino deve ser pautado pelo que é de “compartilhamento universal”, tem efeito diverso do pretendido. Citando o filósofo sul-africano Mogobe Ramose, a tese defende que, nas condições da “filosofia universal” (sem cultura, sexo, religião, história ou cor), a particularidade é um ponto de partida, mesmo que não se reconheça isso.
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Para dar força a esse argumento, Dantas reuniu pensamentos de autores-chave da filosofia moderna, como Immanuel Kant, que confessaram abertamente, em seus escritos, acreditar que negros africanos eram inferiores. Assim, o pesquisador construiu duas premissas: a de que negar a Filosofia Africana é uma estratégia para categorizar povos e seus conhecimentos; e a de que a imagem do que é um filósofo parte de uma visão eurocêntrica.
O ensino da filosofia marcado pelo eurocentrismo
A tese menciona, por exemplo, que, apesar de não serem encaixados no posto de filósofos, pensadores aymara (povo pré-colombiano) tinham uma palavra equivalente à filosofia (do grego “amor à sabedoria”), tlamachilia (pensar bem), como exposto pelo argentino Walter Mignolo.
Dantas ref

Foto: Samira Chami Neves
orça que essas concepções, que poderiam espelhar a diversidade das salas de aula, não chegam às diretrizes de educação devido a prejulgamentos infundados. Um exemplo está no próprio Paraná, onde as diretrizes para ensino de Filosofia na educação básica, expressas em documento de 2008, listam como empecilhos à abordagem da Filosofia Africana o fato de parte dela ter natureza oral e ser escrita em idiomas estrangeiros.
Segundo o professor, tais argumentos são precipitados e não se sustentam diante de uma reflexão mais abrangente. “Sócrates não deixou produção escrita, o que mostra que a oralidade não é um problema. E vários filósofos africanos escreveram em línguas colonizadas, até mesmo em português, como os moçambicanos”, diz Dantas. “Minha ideia era mostrar que existe preconceito e falta de diálogo, que são o que gera esses obstáculos”.
Para explicar como se deu a categorização da Filosofia Africana, Dantas aborda em sua tese conceitos como o de especismo humanista e o de colonização humanista. Também adentra questões sobre o conceito de raça e as formas aceitas de resistência à imposição de ideias colonialistas. Para isso, usa autores como Sueli Carneiro, que revisa o biopoder (o tipo de poder que chega ao domínio da vida) de Michel Foucault para apresentar a negritude como símbolo de morte, e o camaronês Achille Mbembe, que propôs o conceito de necropolítica. Por esse termo, Mbembe se refere à expressão maior da soberania, que é a possibilidade de o soberano escolher “quem pode viver e quem deve morrer”.
Silenciamento e a necessidade de diversidade na filosofia
Na parte que trata do direcionamento dos estudos acadêmicos, o pesquisador ressalta as reflexões de Grada Kilomba, estudiosa de questões de gênero portuguesa. Segundo Grada, é comum que o corpo negro que está “fora de lugar” seja “convidado a voltar para casa”. E esse “fora de lugar”, segundo ela, inclui a academia.
Em sua defesa, Dantas lembrou ainda que existe uma “crítica à militância” dentro do universo acadêmico, onde é exigida uma suposta “neutralidade de pensamento”. Na sua avaliação, isso impacta negativamente na produção científica que aborda propostas não eurocêntricas. Nesse sentido, ele aludiu ao filósofo Euclides André Mance para lembrar que o silenciamento no âmbito epistêmico funciona por retroação: a deficiência presente alimenta a deficiência do futuro.
“Assim, não se pode abordar certos assuntos em pesquisas porque não tem orientador. Ao mesmo tempo, não há incentivo para que se tenha orientadores no futuro”, exemplificou.
Dantas sustenta que a filosofia que não é diversa depara-se com conflitos, não só porque os modelos teóricos da disciplina não refletem a vivência dos alunos, mas porque o colonialismo se mantém “interno aos próprios sujeitos”. Por isso, concluiu sua tese apontando propostas para uma “atividade filosófica descolonial libertária”. Entre elas, uma revisão nos currículos desde a educação básica até a licenciatura, a fim de promover uma descolonização do ensino; e uma política de ensino em Filosofia Africana. “Dessa forma seria possível articular o ensino com a vivência da escola”, acredita.
Dantas conclui seu trabalho afirmando que considera a superação da “filosofia universal” e, consequentemente, a conquista de espaço para a “filosofia desde África”, uma perspectiva que “possui enorme contribuição para a potencialidade da filosofia da ‘Améfrica [as regiões do continente americano profundamente marcadas pela presença de africanos]’”. Trata-se, a seu ver, de uma forma de libertação “que inclui África não apenas como horizonte de atividade filosófica, mas como projeção de relações para todo encontro filosófico possível”.