Perto de 80 mil indivíduos, pertencentes a cerca de 200 gêneros e mais de mil espécies diferentes, repousam nas 120 gavetas que compõem a coleção de formigas do Departamento de Zoologia da Universidade Federal do Paraná (UFPR). Há quatro anos, eram apenas quatro gavetas, com não mais do que mil indivíduos.
Sensíveis a perturbações ambientais, as formigas são importantes bioindicadores, que podem ser usados para entender a conservação do ecossistema
A expansão da coleção é uma das facetas de um projeto ambicioso que vem sendo desenvolvido na universidade: elaborar uma lista completa das espécies de formigas que ocorrem na região dos Campos Gerais paranaenses, preenchendo assim uma lacuna no conhecimento sobre a fauna do Estado, e fornecendo dados até agora desconhecidos pelos mirmecólogos.
O trabalho ainda está longe de ser concluído, mas apresenta resultados concretos. Até agora, foram reconhecidas pelo menos 40 espécies que a literatura ainda não mencionava como presentes no Paraná. Mais do que isso: 26 espécies são novas para a ciência, ou seja, ainda não haviam sido catalogadas.
“Ao final, deveremos pelo menos dobrar o número de espécies de formigas conhecidas no Paraná, em relação ao que se sabia no início da pesquisa, e contribuir para a ciência descrevendo dezenas de espécies novas”, afirma o professor e pesquisador Rodrigo Feitosa, que lidera o grupo de pesquisa.
Das 40 espécies de formiga que a pesquisa identificou até agora como presentes no Paraná, 26 eram novas para a ciência
A relevância do domínio do conhecimento sobre as formigas não é proporcional ao tamanho desses pequenos seres vivos, que podem medir menos de um milímetro e chegar no máximo a seis centímetros. Extremamente sensíveis a perturbações ambientais, as formigas são importantes bioindicadores, que podem ser usados, por exemplo, para inferências a respeito do status de conservação de um ambiente. A extensão de sua presença numa determinada região pode sofrer alterações decorrentes de fatores como a incidência de luz e calor, a oferta de alimento e o depósito de poluentes no solo ou na vegetação – e, assim, indicar se aquele ambiente está preservado ou sofre degradação.
Além disso, as formigas são fundamentais para o equilíbrio das redes tróficas, uma vez que participam de uma série de interações com outros organismos na natureza. Elas cumprem ainda papel importante na ciclagem de nutrientes no solo – ao revolver a terra para construir seus ninhos – e na dispersão de sementes de plantas.
Heterogeneidade de ambientes explica expectativa sobre novas espécies paranaenses
Cientistas estimam que apenas dois terços das espécies de formigas existentes no planeta Terra estejam descritas até agora. São 14 mil espécies, e haveria em torno de 7 mil ainda por classificar e descrever. Das espécies catalogadas, cerca de 20% ocorrem no Brasil – uma incidência explicada pela riqueza da biodiversidade do País, cujas dimensões continentais permitem abarcar diferentes faixas de temperatura e umidade.
“São poucos os estudos sobre animais invertebrados que ocorrem no Estado. Sobre as formigas, particularmente, o conhecimento era praticamente nulo”
Ao começar seus estudos de taxonomia, o professor Rodrigo Feitosa surpreendeu-se ao constatar quão escassos eram os estudos sobre ocorrência de formigas no Paraná. “O Paraná é um dos estados com maior heterogeneidade de ambientes no Sul/Sudeste. Só perde para Minas Gerais. Ainda assim, são poucos os estudos sobre animais invertebrados que ocorrem no Estado. Sobre as formigas, particularmente, o conhecimento era praticamente nulo”, afirma.
Ao ingressar como docente na UFPR, em 2012, Feitosa se dispôs a mudar esse cenário. Mestre e doutor em Entomologia pela USP, especializado em taxonomia de formigas, ele trouxe a experiência acumulada no Museu de Zoologia da instituição, que abriga a maior coleção de formigas da América Latina.
Feitosa começou pedindo doações de exemplares de formigas a colegas pesquisadores de outras instituições, para reforçar a coleção da universidade, de maneira a ampliar as referências disponíveis para o trabalho de pesquisa que pretendia realizar. Ao mesmo tempo, passou a direcionar estudantes de graduação e pós-graduação para a coleta de formigas.
Em 2014, o CNPq aprovou financiamento para o projeto Formigas dos Campos Gerais Paranaenses, dando impulso à pesquisa no Laboratório de Sistemática e Biologia de Formigas (FeitosaLab), que conta com o suporte de outra unidade da UFPR, o Laboratório de Dinâmica Evolutiva e Sistemas Complexos (Pielab).
A etapa do trabalho de campo terminou em janeiro. Pesquisadores de graduação e pós-graduação percorreram trechos do Parque Estadual do Cerrado, em Jaguariaíva; do Parque Estadual do Guartelá, em Tibagi; do Parque Estadual de Vila Velha, em Ponta Grossa; e do Refúgio de Vida Silvestre dos Campos de Palmas. Centenas de milhares de indivíduos foram capturados em armadilhas montadas com copos descartáveis e uma solução com água e detergente. As armadilhas foram instaladas seguindo um protocolo padrão, a fim de garantir comparações com dados coletados em outras regiões do Brasil.
Agora, a equipe do laboratório de Feitosa dedica-se à tarefa mais difícil: classificar e descrever cada indivíduo capturado. Essa etapa começa com uma triagem que separa as formigas de outros insetos apanhados nas armadilhas. Depois, vem a morfoespeciação, um procedimento feito sob a lupa eletrônica para separar grupos de espécies. São selecionados de dois a três indivíduos de cada espécie para montagem na coleção, cada um com um rótulo que o identifica.
O processo de identificação das formigas é minucioso. Os pesquisadores utilizam chaves de identificação – roteiros baseados em características de cada gênero e espécie – e comparações diretas com fotografias, bancos de dados on-line e exemplares disponíveis na coleção da UFPR.
Análises morfológicas e genéticas confirmam espécies
O trabalho é dividido em várias linhas, que se tornam objeto de projetos de iniciação científica, mestrado e doutorado. De uma dessas frentes sairá em breve a publicação da primeira lista de espécies de formigas do Paraná – resultado de um levantamento feito pela bióloga Juliana Calixto como projeto de mestrado. A pesquisadora abordou o tema ainda na graduação em Ciências Biológicas, com a monografia “Lista preliminar das espécies de formigas (Hymenoptera: Formicidae) do estado do Paraná“.
Juliana, que está de mudança para os Estados Unidos, onde fará o doutorado na Universidade do Estado do Arizona, elaborou a lista com base num levantamento bibliográfico, associado às novas informações coletadas pelo grupo de pesquisa de Feitosa. Desde 2012, pesquisadores do grupo já publicaram 46 artigos científicos, três livros, dez capítulos de livros e oito monografias e dissertações.
O mestrando em Entomologia Alexandre Ferreira pesquisa o gênero de formigas Pheidole, que é um dos maiores em número de indivíduos. São mais de mil espécies descritas, das quais 630 ocorrem nas Américas. Alexandre já catalogou 17 espécies novas para a ciência. “É um trabalho confuso no início e que exige conhecimento taxonômico do gênero. Meu esforço é para deixar um estudo bastante aprofundado para o Paraná”, afirma Alexandre.
A doutoranda Gabriela Procópio Camacho trabalha com taxonomia e sistemática do gênero Gnamptogenys, formigas pequenas e relativamente pouco conhecidas, que no Brasil podem ser encontradas em ambientes diversos – de áreas abertas de cerrado e caatinga a florestas como a Mata Atlântica e a Amazônia. Seu foco é descobrir e descrever espécies e as relações entre elas.
“A ciência ainda sabe muito pouco sobre a biologia desse gênero. Ainda não sabemos, por exemplo, qual a principal fonte de alimento dessas formigas nem como elas constroem seus ninhos”, afirma Gabriela.
O trabalho da doutoranda utiliza uma combinação de morfologia com dados como a biologia molecular. “A primeira fase é a análise morfológica. Depois, separamos indivíduos que podem ser estudados molecularmente para o sequenciamento de DNA”, explica. Ela já concluiu o sequenciamento de pelo menos 80 espécies, das quais apenas uma estava disponível anteriormente no GenBank – um banco de dados colaborativo que abriga sequências genéticas de aproximadamente 260 mil espécies. Gabriela encontrou até agora quatro novas espécies de formigas.
“É um gênero com morfologia muito diversa e até o fim do trabalho a gente espera entender quais espécies compõem o gênero, como se delimitam, se há mais espécies do que se imaginava conhecer, ou até mesmo se esse gênero é apenas um, ou se existe mais um gênero dentro dele”, resume Gabriela.
Objetivo final é ajudar a fundamentar políticas públicas de preservação
De acordo com o professor Rodrigo Feitosa, todas essas frentes de trabalho compõem por enquanto um painel fragmentado. “O passo final será juntar tudo, o que nos dará informações valiosas”, afirma.
Na esfera local, diz Feitosa, a intenção é fornecer às agências ambientais subsídios para a elaboração de políticas públicas de conservação. “Uma espécie nunca está sozinha num ambiente. Ela é um elo numa cadeia de interações. Assim, preservar uma espécie é preservar toda uma cadeia. E só se pode preservar o que se conhece. Daí a importância de conhecer a fauna e a diversidade de um ambiente, como indicadores de quão ameaçado ele está”.
Para além disso, o grupo do Laboratório de Sistemática e Biologia de Formigas da UFPR quer dar sua contribuição para a Mirmecologia, como explica Feitosa. “Trabalhamos para preencher uma lacuna de conhecimento a respeito da variedade de formigas no Paraná. Mas formigas não conhecem fronteiras geopolíticas. Então, na verdade estamos focados em formigas. Queremos dar nossa contribuição para responder à questão: quais são, onde estão e como se distribuem as formigas no mundo”.
UMA FAMÍLIA NUMEROSA E COMPLEXA
Ao lado dos cupins, as formigas são o grupo de insetos mais abundante no planeta – estima-se que, juntos, representem cerca de 2% do total de espécies de insetos descritas, o que significa algo em torno de 26 mil espécies. Numa floresta tropical, eles podem representar 75% da biomassa, ou seja, do peso corporal somado de todos os indivíduos que ali vivem.
Formigas podem representar 75% da soma do peso corporal dos indivíduos de uma floresta tropical
Além da abundância, formigas e cupins têm em comum o fato de serem insetos sociais. Pertencentes à família Formicidae, as formigas vivem em sociedades organizadas e complexas. Dividem o trabalho nas colônias por critérios reprodutivos (há uma casta de reprodutores formada pelos machos e rainhas, e uma casta estéril, formada pelas operárias) e, em alguns grupos, por atividade: enquanto um grupo cuida da manutenção da colônia – cuidando da prole e buscando alimento, por exemplo –, outro grupo dedica-se à defesa.
As colônias são baseadas no sexo feminino. Os machos surgem apenas no período reprodutivo e morrem logo após o acasalamento.
“A pesquisa sobre formigas é apaixonante”, afirma o professor Rodrigo Feitosa. Ao lado de dois outros pesquisadores da área – os ecólogos Fernando Schmidt, da Universidade Federal do Acre, e Carla Ribas, da Universidade Federal de Lavras (MG) –, ele organizada desde 2012 o curso Formigas do Brasil, voltado para estudantes de graduação, pós-graduação e profissionais interessados em Mirmecologia. Os participantes aprendem a identificar subfamílias, gêneros e espécies, têm contato com métodos de coleta e informações sobre a importância das formigas.
O curso teve três edições até agora e a próxima está prevista para 2018, no Espírito Santo.
UFPR ORGANIZA XXIII SIMPÓSIO DE MIRMECOLOGIA
Curitiba vai sediar, de 23 a 27 de outubro, o XXIII Simpósio de Mirmecologia, que deverá reunir especialistas brasileiros e estrangeiros em insetos sociais, especialmente formigas. É a primeira vez que o evento acontece na capital do Paraná. A expectativa é que ele contribua para consolidar o Brasil como polo de pesquisa e desenvolvimento na área de Mirmecologia, e de maneira mais geral, da área de ecologia e conservação
Cerca de 400 participantes são esperados para o simpósio, que, entre outros objetivos, pretende integrar as várias áreas do conhecimento científico que contribuem para o avanço do estudo da biologia de insetos sociais, fomentar o intercâmbio de conhecimentos entre pesquisadores de diferentes regiões do país e também de outros países e estimular o estabelecimento de parcerias técnico-científicas e de arranjos multi-institucionais de pesquisa, pelo contato direto entre os pesquisadores.
O simpósio acontecerá no Setor de Ciências Sociais Aplicadas da UFPR. Além da universidade, participam da organização a Embrapa Florestas e a Sociedade Brasileira de Entomologia.