A dificuldade de colher material genético preservado em cadáveres em de composição faz com que muitos crimes de natureza sexual fiquem sem solução. Mas o Laboratório de Genética Molecular Humana da Universidade Federal do Paraná (UFPR) está desenvolvendo pesquisas que poderão contribuir para esclarecer casos assim.
Os projetos ocorrem em parceria com o Instituto de Criminalística do Paraná. Uma das pesquisas em curso no laboratório, que é ligado ao Departamento de Genética, tem como foco a obtenção de DNA humano a partir de larvas de dípteros necrófagos (moscas) encontradas em corpos em decomposição.
A intenção do estudo é viabilizar um método de identificação de vítimas e agressores de crimes sexuais, que consegue extrair DNA humano num contexto em que os tradicionais meios de identificação não obtêm sucesso.
Normalmente a identificação de vítimas é feita pela técnica de papiloscopia, que utiliza as papilas dérmicas existentes na palma das mãos e na sola dos pés da vítima, e é mais conhecida pelo estudo das impressões digitais. Outra forma de identificação é por arcada dentária. Os dentes constituem elementos preciosos no reconhecimento, e seus dados anatômicos são analisados pelos peritos.

Quando essas técnicas não permitem uma conclusão, outro processo usado é a análise do DNA – que pode ficar prejudicada se o corpo estiver em processo de decomposição. É neste ponto que entra a contribuição do estudo realizado pelos pesquisadores da UFPR: proporcionar à Ciência Forense mais uma possibilidade de identificação do DNA em casos em que houver dificuldade de recuperação de material suficiente para investigação.
A Genética Forense, que faz uso dos conhecimentos e técnicas de genética e de biologia molecular para auxiliar a Justiça, aponta os dípteros como os principais insetos necrófagos para auxiliar na investigação, porque eles são os primeiros a colonizar os cadáveres, sendo atraídos de grandes distâncias pelo odor liberado do corpo em decomposição. O trabalho do laboratório é recuperar material humano a partir destas larvas e analisá-lo para traçar um perfil da vítima e, principalmente, do criminoso.
Ideia surgiu do estudo de mosca necrófaga comum no Sul do país
A primeira parte da pesquisa, fruto da monografia de Rafael Roberto Kirsten Luiz, na época aluno do curso de Ciências Biológicas e hoje mestrando em Genética, estudou um tipo específico de larva, da mosca Sarconesiachlorogaster, que é muito comum no sul do País.
No caso dos crimes sexuais em que há o óbito da vítima, essas larvas nutrem se, por exemplo, dos fluídos do agressor, entre eles o sêmen. Dessa forma, o DNA humano é preservado dentro das larvas e pode ficar por mais tempo livre das interferências externas e dos elementos químicos que atrapalham as análises da de composição cadavérica.
Por um processo de maceração, recolhe-se das larvas material genético que viabiliza a identificação de DNA humano, que, em casos de crime sexual, ajudaria na determinação da vítima e do agressor.
“As larvas das moscas do tipo díptero necrófagos se alimentam do cadáver em de composição e assim acabam ‘arquivando’ o DNA humano em seu corpo”, explica a professora responsável pela pesquisa, Danielle Malheiros Ferreira.
Parceria com perícia criminal permite testes com casos reais
Se as moscas necrófagas tiverem se ali mentado de sêmen do agressor, e o pro cesso for feito em tempo hábil – já que algumas moscas produzem enzimas que podem decompor o sêmen num processo mais acelerado –, pode-se chegar ao criminoso rapidamente.
Em fase de desenvolvimento dos projetos, Danielle e a equipe que trabalha no desdobramento das pesquisas têm se reunido frequentemente com peritos do Instituto de Criminalística do Paraná, para integrar o conhecimento acadêmico com a prática diária dos casos reais.
Segundo o perito criminal do Instituto de Criminalística Leonardo Arduino Marano, que acompanha o projeto de pesquisa em parceria com a UFPR, o trabalho de perícia científica dá base para a investigação do caso.
“Quanto mais evidências conseguimos, melhor para que a investigação ocorra”, diz.
“Esse método tem uma abordagem diferente. Em geral, a coleta de evidências de estupro é feita pela vagina ou ânus e, costuma ser o único material que temos da vítima, além das roupas. Esse é o padrão de coleta de material. As larvas serviriam como uma nova amostra. Funcionariam como mais uma forma de tentar conseguir evidências, principalmente quando não é possível, pela condição da vítima, obter material suficiente”, completa.
Banco de dados deve permitir comparação de material genético
As ciências forenses são de grande utilidade para a resolução de crimes que anteriormente não poderiam ser solucionados. No entanto, ainda hoje, com diversas técnicas disponíveis, em alguns casos as condições ambientais e do corpo da vítima tornam difícil preservar material genético suficiente para identificação do agressor.
A análise genética pode auxiliar nos casos em que os corpos estão em estado avançado de decomposição ou quando não há a possibilidade de identificação por outros métodos, tais como a papiloscopia. Já a entomologia, que é a parte da biologia que estuda os insetos, pode contribuir com dados sobre a possível movimentação de corpos em locais de crime e o cálculo do tempo passado desde a morte.
“As larvas das moscas do tipo díptero necrófagos se alimentam do cadáver em decomposição e assim acabam ‘arquivando’ o DNA humano em seu corpo.”
A pesquisa da UFPR uniu essas duas áreas, entomologia e análise genética, com o objetivo de recuperar DNA humano a partir de larvas da mosca Sarconesiachlorogaster. Apesar de o estudo ser promissor e suprir uma lacuna no processo de identificação por DNA, a extração e análise do material genético só tem real utilidade na resolução dos crimes quando há materiais genéticos para a comparação. Ou seja, os pesquisadores apresentaram um método que é eficiente e, na prática, realmente ajudaria na investigação de crimes.
Bancos genéticos criados no Brasil carecem de investimentos
O potencial do método é tanto mais relevante para a perícia criminal quanto maior for o banco de dados de perfis genéticos no País. O Brasil criou em 2009 a Rede Integrada de Bancos de Perfis Genéticos (RIBPG), que reúne indícios coletados em locais de crimes e perfis genéticos de condenados por crimes violentos ou hediondos, para os quais a extração de DNA é obrigatória, de acordo com o artigo 9º da Lei de Execução Penal – aspecto que atualmente é objeto de discussão no Supremo Tribunal Federal (STF).
O perito Leonardo Marano, que é o administrador do Banco Nacional de Perfis Genéticos no Paraná, diz que a Rede é um avanço e inseriu o Brasil no grupo de pouco mais de 60 países que utilizam o banco de dados de DNA como ferramenta de investigação. Hoje, 19 laboratórios fazem parte da Rede Integrada, o que a torna uma das maiores redes de laboratórios de perícia oficial do mundo. O número de amostras no Banco Nacional aumentou de 329, em 2013, para perto de 9 mil, em maio deste ano – data do último relatório.
No entanto, a área ainda carece de investimentos. Vários esta dos até hoje não possuem laboratórios de genética no âmbito da política científica ou civil – o que faz com que a ferramenta ainda seja subaproveitada para investigações.