Como reverter o apagamento das culturas indígenas nos currículos escolares Estudo realizado na UFPR registra o que estudantes da educação básica deixam de aprender sobre esses povos tradicionais, mas aponta que docentes podem romper com o pensamento colonial por meio de uma educação antirracista baseada em epistemologias indígenas
Tese em Educação da pesquisadora Flávia Nascimento parte de vivências com artistas e intelectuais indígenas para propor uma formação docente crítica e anticolonial. Fotos: Arquivo Pessoal

De incontestável importância para o Brasil, as histórias e culturas dos povos indígenas ainda padecem de um silenciamento nas matrizes curriculares do país, mesmo após a promulgação da Lei nº 11.645/2008, que amplia a obrigatoriedade do ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Indígena nos estabelecimentos de ensino fundamental e de ensino médio. 

Esse fenômeno é descrito pelo artista indígena Gustavo Caboco, do povo Wapichana, por meio do conceito de “coma colonial” — uma expressão que se refere ao apagamento das lutas indígenas, históricas e contemporâneas, nos arquivos ocidentais, bibliotecas, museus e demais repositórios de conhecimento. 

Sendo professora de futuros professores, a doutoranda em Educação na Universidade Federal do Paraná (UFPR) Flávia Gisele Nascimento diz ter acordado desse “sono profundo” a partir de experiências acumuladas na sua atuação como docente de licenciatura em Artes Visuais. Desde então, ela se comprometeu a estudar de forma mais aprofundada as culturas indígenas, africanas e afro-brasileiras, além da questão de gênero na arte. 

Nesse percurso a pesquisadora se deparou com filósofos, fotógrafos, cineastas, dentre outros profissionais, em especial, artistas indígenas dos quais nunca tinha ouvido falar nos mais diferentes espaços que frequentou, desde escola até museus, teatros e cinemas. 

GALERIA | Vivências artísticas e culturais com povos indígenas
Flávia Nascimento visitando a Exposição Mahku, em 2023, no Museu de Arte de São Paulo
Apresentação do povo Kariri Xoko no Festival de Inverno da UFPR em 2023
Conversa com a escritora indígena Auritha Tabajara (esquerda)
Visita da turma de extensão da Unespar à Caixa Cultural
Peça de teatro "Nhandereko"
Encontros na Faculdade de Artes do Paraná (Unespar)
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Flávia Nascimento visitando a Exposição Mahku, em 2023, no Museu de Arte de São Paulo
Apresentação do povo Kariri Xoko no Festival de Inverno da UFPR em 2023
Conversa com a escritora indígena Auritha Tabajara (esquerda)
Visita da turma de extensão da Unespar à Caixa Cultural
Peça de teatro "Nhandereko"
Encontros na  Faculdade de Artes do Paraná (Unespar)
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Motivada por essas lacunas, Flávia desenvolveu um projeto de extensão na Universidade Estadual do Paraná (Unespar), inspirado na produção contemporânea de artistas e escritores indígenas.

A iniciativa deu origem à sua tese de doutorado e revelou que metade dos participantes do curso de extensão não aprenderam nada ou quase nada sobre a temática indígena na escola e na universidade — e, quando o tema foi abordado na educação básica, muitas vezes ocorreu de forma estereotipada e colonial. 

Durante a apuração, Flávia também analisou o acervo da biblioteca da UFPR, que possui mais de trezentos mil títulos, dos quais apenas oito são de autoria indígena. Outra investigação foi no portal do Programa de Pós-Graduação em Educação (PPGE), nota máxima na última avaliação quadrienal da Capes, mas que, em 2022, apresentava uma lista de 115 disciplinas, das quais só uma indicava nas referências uma teórica indígena. 

“Constatei que há um desconhecimento não só das instituições de ensino, mas de boa parte da população brasileira em relação aos povos indígenas. Como muitos docentes não tiveram formação voltada à temática indígena, existe um receio de abordar esse assunto em sala de aula, tanto na educação básica como no ensino superior”, afirma a pesquisadora. 

Prática pedagógica com enfoque indígena 

De acordo com Flávia, após o encerramento da formação, os participantes passaram a buscar novos conhecimentos sobre a temática indígena, frequentar outros cursos, vivências e eventos, além de incorporar as discussões em suas práticas profissionais. 

Foi o caso da professora de Sociologia Ana Paula Pacheco Palmeiro, que, após concluir o curso, aplicou o aprendizado com seus alunos. “Pela primeira vez, aqueles estudantes do segundo ano do ensino médio tiveram contato com escritores e artistas indígenas”. 

Ana destaca que a recepção dos estudantes foi um dos momentos mais significativos da experiência. “Muitos questionaram a relação dos povos tradicionais com o meio ambiente. O resultado superou as expectativas, pois despertou o interesse em conhecer as culturas indígenas e romper com uma visão tradicional de educação, centrada em um pensamento colonial e etnocêntrico”, afirma.  

Para a professora, entre os principais desafios enfrentados pela educação básica no que diz respeito a esse cenário estão a efetivação da legislação e a consolidação de políticas públicas de formação continuada para educadores. 

 “O currículo no Paraná é voltado para o cumprimento de metas para atingir índices de qualidade da educação. Com isso, as temáticas que tratam dos povos originários são deixadas de lado. Soma-se a isso o preconceito presente no senso comum da comunidade escolar, que muitas vezes manifesta resistência ou intolerância religiosa em relação às culturas indígenas”, observa. 

Pesquisa tecida com saberes indígenas e produção artística 

A tese de Flávia pretende compreender como a formação de educadores, fundamentada na Lei nº 11.645/2008, pode estimular a pensar por outras perspectivas as artes, as histórias e as culturas dos povos indígenas e foi intitulada de Krigkrig – espalhar, semear: trançados entre as artes e histórias dos povos indígenas e a formação de educadores (as). O trançado a que se refere faz alusão à confecção da cestaria, que é uma prática milenar, ensinada de geração para geração.  

O trançar envolve muitos saberes, técnicas e paciência. “Na educação indígena, o tempo não é o do relógio, mas o da natureza. Escutar o rio, os pássaros, a floresta. É uma educação coletiva, afetiva, de aprendizado com os mais velhos. Muito diferente da lógica ocidental, baseada na competição, no individualismo e na aceleração do tempo, que vê a terra como recurso, e não como mãe, como bem descreve o escritor Ailton Krenak”, ressalta a autora. 

Esse foi um dos ensinamentos que ela incorporou ao seu cotidiano após vivenciar o dia a dia em contextos indígenas. “Tenho reduzido o consumo e a geração de resíduos, priorizado o comércio local e autoral, e praticado turismo sustentável e comunitário”, exemplifica. 

No campo acadêmico, a pesquisadora afirma que tem buscado multiplicar outras formas de ver, pensar e sentir o mundo. “A principal transformação que vivi no doutorado foi aprender a escutar mais, a promover encontros e alianças afetivas, e a desenvolver uma postura mais crítica frente ao sistema colonial, capitalista e racista que estrutura a sociedade.” 

Para educadores que desejam iniciar um trabalho mais comprometido com a temática indígena, respeitando a legislação, Flávia recomenda o contato direto com produções desses povos.

“Ler livros de autores indígenas, assistir a filmes dirigidos por cineastas indígenas, visitar exposições e espetáculos protagonizados por artistas indígenas são passos importantes para construir uma prática docente baseada nas epistemologias desses povos”, orienta. 

Reunindo diálogos com mais de 90 intelectuais pertencentes aos povos originários, a tese é composta por textos acadêmicos e ainda por produções artísticas, como bordados, poesias, músicas, filmes, fotografias e imagens de obras de arte. A defesa, realizada em março de 2025, contou com uma banca formada exclusivamente por mulheres, incluindo três intelectuais indígenas: Alva Rosa Tukano, Annie Martins Afonso e Márcia Wayna Kambeba.  

A pesquisa do PPGE não só revelou o apagamento e o silenciamento dos corpos e das epistemologias indígenas nos diferentes espaços sociais, mas também apontou caminhos para que Estado, universidade e escola colaborem de forma mais efetiva na implementação da Lei n° 11.645/08 e para a formação de educadores comprometidos com uma educação antirracista e plural. 

➕ Leia com mais detalhes na tese “Krigkrig – espalhar, semear: trançados entre as artes e histórias dos povos indígenas e a formação de educadores (as)“, defendida no Programa de Pós-Graduação em Educação da UFPR por Flávia Nascimento, sob orientação de Michelle Bocchi Gonçalves
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