“A violência histórica que nos constitui é matéria central na composição da ficção rural brasileira” | Fernando Gil Vencedor do Prêmio Jabuti Acadêmico na categoria Letras, Linguística e Estudos Literários, professor da UFPR fala sobre as conexões do regionalismo e da literatura rural com os processos de desenvolvimento da cultura e da sociedade brasileiras
Fernando Gil se interessou por estudar a literatura rural brasileira a partir das atividades de docência e do desejo de se aprofundar na representação dos pobres e da violência nessas narrativas. Foto: Marcos Solivan

Estilo literário que enuncia narrativas que se passam em lugares como o sertão, o pampa ou o cerrado brasileiro, o romance rural, surgido no século XIX, pode ser considerado uma noção com amplas conexões com aquilo que a crítica e a história da literatura denominaram “regionalismo”.  

Porém, não se trata apenas de narrar uma matéria que acontece em um espaço diferente do urbano. Na ideia de romance rural, observa-se um balanço entre o espaço rural, suas paisagens, suas figuras humanas e suas relações.  

Para o professor e pesquisador de literatura brasileira, Fernando Cerisara Gil, o romance rural configura um dispositivo narrativo específico, com mudanças formais ao longo do tempo, mas trazendo em si algumas constantes, entre as quais se destacam a violência como elemento central das ações e a presença do homem pobre rural como protagonista. 

Exemplos desse estilo literário podem ser encontrados em obras como O sertanejo e Til, de José de Alencar; Inocência, de Visconde de Taunay; e O cabeleira, de Franklin Távora; no século XIX; e nas narrativas Vidas secas, de Graciliano Ramos; e Grande sertão: veredas, de Guimarães Rosa, no século XX. Atualmente, o romance Torto arado, de Itamar Vieira Jr., também traz o gênero. 

Segundo o pesquisador, a apropriação do mundo rural deve ser entendida como incorporação do espaço e da matéria rurais à letra impressa, realizando-se a partir da violência, do poder patriarcal brutalizador e da pobreza.  

Gil, que é docente titular do Departamento de Literatura e Linguística (Dellin) da Universidade Federal do Paraná (UFPR), ainda chama atenção para outro elemento crucial na narrativa rural: o protagonista, geralmente retratado na figura do homem livre pobre, vivendo em um espaço de liberdade possível, porém com certo nível de constrição social de naturezas diversas.  

Recentemente, o livro Pelo prisma rural: ensaios de Literatura Brasileira, do professor Fernando Cerisara Gil, foi premiado na categoria Letras, Linguística e Estudos Literários na primeira edição do Prêmio Jabuti Acadêmico, da Câmara Brasileira do Livro (CBL). 

E para aprofundar esse assunto, que envolve as complexas relações entre literatura, cultura e sociedade no Brasil, Gil concedeu uma entrevista à Ciência UFPR. 

Como surgiu seu interesse pela pesquisa do tema rural na literatura?  


Fernando Cerisara Gil | Chega a uma certa altura da profissão que parece que tudo que se faz academicamente se torna tão coerente, possui uma unidade profunda de questões, de problemas, de objetos sobre os quais estudamos, que tudo parece fazer “grande sentido”. Em parte, claro, não deixa de ser assim mesmo.  

O acúmulo e o esforço intelectual que se faz ao longo de anos não têm como não trazer essa ilusão de continuidade e de identidade com os problemas, com os objetos e com um modo de encarar tudo isso. Faço todo esse preâmbulo apenas para dizer que o que me levou a estudar o tema rural na literatura brasileira foram as minhas atividades de professor em sala de aula.  

A leitura de romances do século XIX para a preparação de aulas foi o caminho que me conduziu a uma atenção maior ao que se chama de ficção rural.

Ao mesmo tempo, por formação e anos de pesquisa, eu tinha já uma série de questões que rondavam as minhas preocupações, algumas mais gerais e outras mais específicas: como o problema da configuração do narrador na literatura brasileira, a representação dos pobres e da violência, entre outros.   

O que é o Romance Rural e por que ele é considerado uma das linhagens constitutivas da ficção brasileira?  


FCG | Como tudo na vida acadêmica, e nos estudos literários não seria diferente, estamos diante de categorias, conceitos, que tentam dar conta de certos fenômenos, no caso, literários, culturais, em sentido amplo.  

A ideia de romance rural não é minha. Entre outros críticos, ela se encontra, por exemplo, no livro clássico de Antonio Candido, Formação da literatura brasileira 

Em um certo sentido, podemos dizer que a noção de romance rural é prima menor de outra noção, que é a de regionalismo. Com o binômio regionalismo/romance rural temos várias e complexas questões imbricadas.

Uma delas é o fato de que boa parte da crítica e da historiografia estabeleceu a distinção entre literatura urbana e literatura rural como forma de compreensão da literatura brasileira, ou se quiser, como linhagens constitutivas da literatura brasileira.  

Diga-se de passagem que regionalismo não é expressão nativa. Ele transita por outras literaturas, com as suas especificidades literárias e culturais. A diferença primeira entre ambas, a urbana e a rural, refere-se ao espaço social, cultural, natural e geográfico, onde se desdobram as ações e a relação dos personagens com todo o seu entorno, urbano ou rural.  

Há críticos que argumentam que não haveria muita distinção entre o romance urbano e rural, sobretudo no século XIX. Minha posição é um tanto diferente. Há todo um sistema de valores e de dispositivos narrativos que o romance rural do XIX encarna e põe em movimento que não se faz presente no romance ambientado na cidade.

O grau de violência, a função do amor como elemento moderno e desorganizador da lógica patriarcal, para citar apenas alguns aspectos, estão presente num romance rural como Inocência, e não parece haver nada semelhante no romance romântico urbano. 

Por que considera a noção que se tem de literatura regionalista como negativa? 


FCG | Diria que a ideia de regionalismo, desde o começo, quando ela surgiu, ali no início do século XX, ingressou na crítica não propriamente como uma categoria explicativa da literatura, no Brasil, mas como uma categoria de avaliação, de ajuizamento negativo da literatura rural, aquela cuja história se passa no sertão, no pampa, no cerrado, ou como se dizia antigamente, nos grotões do Brasil.  

Os romances e os contos rurais de José de Alencar, Franklin Távora, Bernardo Guimarães, Inglês de Sousa, Domingos Olimpo, Manuel de Oliveira Paiva, Hugo de Carvalho Ramos, Simões Lopes Neto,  Rachel de Queiroz, entre tantos outros nos mais diferentes momentos, essa literatura, dita regionalista, foi vista como pitoresca, artificial, localista, documental.

Ou na maldosa expressão do mestre Candido, uma literatura que reduzia o sofrimento e a paixão do homem rural e das “populações de cor” a equivalentes de mamões e abacaxis.

Com o tempo, regionalismo também demarcou a disputa pela hegemonia do campo literário em que Rio de Janeiro, desde o século XIX, como centro político, administrativo e cultural do país, e depois São Paulo, dos anos 20 em diante no século XX, davam as cartas do que era ou não “a boa literatura”. E de formas diferentes podemos dizer que a estética dominante que os dois centros hegemônicos reivindicavam como “boa literatura” era aquela ligada aos valores urbanos, cosmopolitas.  

A perspectiva muda um tanto com autores como Graciliano Ramos e, depois, mais expressivamente, com Guimarães Rosa. No caso desse, não é que a crítica redimensionou e repensou em novos termos o regionalismo.

Mais do que tudo, a obra de Rosa foi compreendida a partir, não da tradição do regionalismo, mas sobretudo da linhagem conceitual urbano-cosmopolita, digamos. Rosa foi visto, na média da crítica, como algo fora da curva e não como processo complexo e contraditório do aspecto evolutivo da forma romance no Brasil, incluído o que se chama de regionalismo.   

Qual o papel da violência nas obras de romance rural? 


FCG | É no romance rural que a violência se apresenta pela primeira vez de maneira escancarada na literatura brasileira.

Temos algo da brutalidade à brasileira em alguns poemas de Castro Alves e em alguns indianistas de Gonçalves Dias. Mas é no romance rural que a sua presença se faz abrangente, sistemática e central.  

Pode estar presente nas ações e nas relações dos personagens; pode ser marca do passado que determina os acontecimentos no presente; pode surgir como forma de caracterização do modo de ser de um personagem.

Os “ajustes das relações” entre os personagens e, portanto, em algum nível do entrecho, passam por algum tipo de violência, que toma as formas mais diversas em cada obra.

A violência histórica que nos constitui, desde a escravidão e a que dela derivou, é matéria central na composição da ficção rural.

Algo no imaginário cultural e social dos nossos escritores, no século XIX, fazia do espaço rural terra de ninguém, sem freios, sem normas. Ao contrário da representação da cidade e de seus personagens no romance urbano, em que há uma espécie de decoro, de verniz civilizatório que barra, em um certo grau, a violência histórica e social intrínseca à sociedade brasileira.

Em certo sentido, O cortiço, de Aluísio Azevedo, e Bom crioulo, de Adolfo Caminha, são exceções da presença da violência no romance urbano brasileiro do século XIX. Já no século XX, a partir dos anos trinta e depois, a cena vai mudando radicalmente e a violência passa ser um dos elementos centrais da literatura como um todo, e não só dela.   

De que modo a noção de regionalismo literário e cultural está vinculada com a formação política do Brasil republicano no quadro das disputas políticas regionais e o centro de poder?  


FCG | A noção de regionalismo literário e cultural me parece estar umbilicalmente vinculada à formação política e social brasileira. Iria mais adiante e diria que o próprio conceito de regionalismo somente surgiu à consciência da crítica e dos nossos escritores em um processo e em um momento de regionalização, de descentramento do sistema de poder político, social e econômico.  

O sistema de poder político no Brasil oscilou, historicamente, em uma tensão e em um conflito entre centralização e descentralização, entre poderes com força centrífuga e centrípeta, ao longo do tempo e de diversas formas.

Após décadas de um poder dominante centralizador no Império, o contexto republicano e federalista, no final do século XIX e nos primeiros anos do século XX, significou um rearranjo do poder das classes dominantes com tendência a uma regionalização das formas de expressão de poder. Isso, evidente, não significa inexistência de hegemonia de certas classes dominantes no plano nacional, o que ocorrerá via oligarquia paulista e mineira.

É nesse contexto que surge a demanda de valorização e de busca/criação de identidades culturais e literária locais, provinciais, regionais. Pactuação federalista no âmbito político e econômico e reivindicação valorativa locais/regionais andam de mãos dadas. A revolução de 30 e Getúlio Vargas vão bagunçar novamente o cenário, repondo as formas de centralização do Estado brasileiro. 

De que forma a ficção brasileira deu forma e voz à matéria rural?  


FCG | Essa é uma questão complexa. Tentei estudar isso nos livros A matéria rural e formação do romance brasileira: configurações do romance rural (2020) e Pelo prisma rural: ensaios de literatura brasileira (2023).  

No caso do primeiro, detive-me na formação do romance rural no século XIX; no segundo, ingressei no exame da ficção rural brasileira no século XX e com alguma pitada no século XXI. A constituição da voz narrativa rural é um arco variado e que foi se complexificando ao longo do tempo em razão da modernização das técnicas e dos procedimentos narrativos.  

De modo muito esquemático e superficial, podemos dizer que a evolução da narrativa rural tendeu da passagem de uma linguagem que falava o mundo rural de “fora” para uma linguagem que tentou enunciar o mundo rural a partir de “dentro”. Um espectro ficcional cheio de nuances e variações que vai de José de Alencar e o Visconde de Taunay, passa por Simões Lopes Neto e Monteiro Lobato, chega em José Lins do Rego e Graciliano Ramos, e segue com Guimarães Rosa, e vai bater na praia perto de nós, hoje, na ficção de Ronaldo Correia de Brito e Itamar Vieira Jr. Apenas para citar alguns nomes dessa tradição, que poderiam ser outros.  

No centro do problema da enunciação do mundo rural estão vinculadas as formas diversas de experiências de oralização da linguagem literária, na perspectiva do que chamei da “fala de dentro” desse mundo rural. Entre outros, Simões Lopes Neto, Graciliano Ramos, Ruth Guimarães, Guimarães Rosa e João Ubaldo Ribeiro se alinham a experiência literárias de linguagem desse tipo.   

Então a tradição rural teve continuidade e desdobramentos, na literatura brasileira, para além do século XIX? 


FCG | Foi muito além do XIX e está presente até hoje. Porém, observando as coisas pelo contexto literário e cultural contemporâneo, não faz mais sentido em se falar de regionalismo e nos problemas e questões a ele relacionado até, digamos, a metade do século XX.  

O capital e o capitalismo no Brasil, e não somente nele, homogeneizou parte expressiva da vida social. As questões que se colocam, hoje, são outras e, em certo sentido, dizem respeito a um aparente paradoxo: como a matéria rural se faz presente na ficção brasileira (e ela se faz através dos autores a que referi, além de outros) numa sociedade que já não é mais rural, mas sim predominantemente urbana, digital e tecnológica?  

O agronegócio prova que o mundo rural é e pode ser digital e tecnológico, constituindo parte avançada, para o bem ou para mal, do desenvolvimento do capitalismo do Brasil, ao mesmo tempo em que continua a nos colocar, desde a colônia, como simples, velhos e tradicionais exportadores de commodities, que é o lugar que o Brasil nunca conseguiu ultrapassar nos limites do capitalismo globalizado.  

A permanência da matéria rural neste novo contexto traz outras novas e instigantes questões que, por exemplo, presentes em um livro de narrativas como Erva Brava, de Paulliny Tort, estão a pedir estudos.  

De que forma você trata esse tema na docência e qual é a receptividade dos alunos com relação a ele?  


FCG | Minha intenção é sempre mostrar, por um lado, que o estudo da ficção rural, do regionalismo, do romance rural possui o seu campo de problemas específicos, com uma série de questões, de reflexão e sistematização já acumuladas ao longo tempo. Compreendê-la como parte de uma dinâmica literária muito complexa e variada ao longo do tempo, dentro disso que ainda conseguimos, por ora, chamar de literatura brasileira.  

Por outro, procuro ver como tal dinâmica e seus diferentes estágios estão relacionados à matéria social brasileira, histórica e socialmente não menos mutante. As questões literárias são elas mesmas questões materiais e históricas, e é nesse sentido que procuro compreendê-las.  

Quanto à receptividade dos alunos, sou suspeito para falar, mas tenho a impressão de que eles se espantam com o grau variado de problemas e questões implicados no estudo da “literatura rural”, desde as experiências diversas dos dispositivos narrativos para fazer falar literariamente o mundo rural até a presença do pobre e da pobreza como um dos elementos centrais dessa ficção. Sem deixar de lado a violência que perpassa a constituição ficcional desse mundo. Parece haver certo encantando com uma descoberta e, em um mesmo passo, uma espécie de mal-estar por colocá-los frente a frente com iniquidades e brutalidades conhecidas, mas com alguns ângulos que podem parecer insuspeitos ou inusitados para quem souber ver – ou ler.    

Com relação às suas pesquisas, o que mais você possui como objeto de investigação nesta área?  


FCG | No momento, saí parcialmente do estudo da prosa de ficção rural e estou examinando como os nossos escritores percebiam o pobre e a pobreza na passagem do final do século XIX para os primeiros decênios do século XX, seja na cidade, seja no campo.  

O estudo do pobre e da pobreza sempre esteve no meu horizonte de preocupação, só que agora investigo a reflexão dos nossos escritores sobre esse tema a partir de ensaios, de crônicas, de artigos de jornal, de depoimentos, feitos geralmente na imprensa da época. 

Tenho para mim que é nesse momento que os nossos escritores, aqueles que produziam literatura e que também participavam do debate público via imprensa, começam a se atentar para a presença dos pobres e da pobreza na sociedade brasileira. Uma espécie de consciência histórica sugere emergir, nesse momento, para o bem ou para o mal. Estou tentado entender os contornos deste problema, por agora.  

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