“Fui levada para uma cesariana de emergência, mas a cirurgia foi iniciada sem a anestesia correta. Senti dores fortes, gritei para pararem e mesmo assim o médico continuou. Desmaiei de dor e só recobrei a consciência já com meu bebê natimorto”. Relatos como o da empresária Beatriz* em um hospital particular de Curitiba são frequentes: uma em cada quatro mulheres no Brasil é vítima de violência obstétrica, segundo levantamento da Fundação Perseu Abramo.
Considerada uma forma de violência de gênero que ocorre durante a gestação, o parto e o puerpério (pós-parto), a violência obstétrica se manifesta por meio de práticas abusivas, desrespeitosas, coercitivas ou negligentes. Entre as condutas mais comuns estão gritos durante o parto, intervenções médicas desnecessárias, ausência de informação e de consentimento, além de agressões verbais e psicológicas.
Mesmo sendo uma violação dos direitos humanos das mulheres, capaz de gerar consequências físicas e psicológicas graves para mães e bebês, a violência obstétrica ainda não é definida por uma legislação federal, nem possui penalidades específicas para os responsáveis.
Com o objetivo de sensibilizar profissionais de saúde e garantir que as mulheres conheçam seus direitos, a mestranda Emmanuele Mainart Ildefonso, do Programa de Pós-Graduação Prática do Cuidado em Saúde da Universidade Federal do Paraná (UFPR), desenvolveu uma série de vídeos sobre as garantias das mulheres atendidas no Complexo Hospital de Clínicas (CHC) da UFPR durante o ciclo gravídico-puerperal e a prevenção da violência obstétrica institucional.
Silêncio contribui para naturalizar a violência obstétrica
Laura Christina Macedo, orientadora do projeto e professora do Departamento de Enfermagem da UFPR, explica que, assim como outras formas de violência contra a mulher, a violência obstétrica institucional é frequentemente naturalizada e, por isso, nem sempre reconhecida pela vítima.
“Ela acontece no ambiente dos serviços de saúde e é perpetrada por pessoas que deveriam estar cuidando da mulher. Muitas vezes vem disfarçada de ‘cuidado’, com a realização de um procedimento desnecessário ou a não aplicação de anestesia com a argumentação de que o recurso ‘prejudicará a evolução do parto’, por exemplo. É uma situação muito complexa porque acontece em um momento que a mulher está extremamente vulnerável e ela acaba aceitando aquela situação como sendo normal”, revela.
As formas de violência podem ocorrer desde o pré-natal até o pós-parto e vão desde a falta de informação; a negligência; o preconceito racial, cultural e religioso; o cerceamento da liberdade da mulher e da presença do acompanhante; até violências verbais, físicas, psicológicas; e a realização de intervenções desnecessárias.
Beatriz passou por quase todas elas. “Desde o início, meu pré-natal foi conduzido como se fosse uma gestação normal, mesmo com exames alterados que já indicavam risco de diabetes gestacional. O médico responsável não solicitou exames fundamentais e quando minha bolsa rompeu o médico me orientou a aguardar, mesmo após mais de 12 horas com perda contínua de líquido. Não houve orientação clara, nem acompanhamento adequado. No hospital, fui induzida ao parto sem estrutura apropriada e sem a devida monitorização fetal. Após horas de dor, pedi analgesia. O médico demorou a retornar e, depois que recebi a anestesia, ele só voltou quando já não ouvia mais os batimentos do meu bebê”.
É comum que a mulher só se dê conta da violência que viveu depois de sair daquela situação de vulnerabilidade e começar a refletir sobre o ocorrido. “É aí que, geralmente, ela toma consciência de que seu corpo e suas vontades foram desrespeitados”, afirma Laura.
A empresária conta que só com o passar do tempo percebeu que aquilo que aconteceu foi errado. “Somente ao escutar outros profissionais e relatos de mães atendidas pelo mesmo médico, comecei a compreender o que havia vivido”. Além de toda a violência pela qual ela passou, ainda não teve nenhum apoio do hospital. “A forma como trataram a perda do meu filho foi fria e burocrática e a promessa de abrir um protocolo para investigação nunca foi cumprida”.
Informação protege contra práticas desrespeitosas, avalia pesquisadora
O material produzido por Emmanuele em sua dissertação busca informar mulheres, familiares e acompanhantes sobre cada etapa do período gestacional, como forma de prevenir novos casos de violência obstétrica institucional.
“Uma mulher empoderada, com conhecimento sobre seus direitos, tende a gerar um alerta na equipe assistente e possivelmente evita práticas desrespeitosas”, destaca.
A série é composta por seis vídeos que abordam desde o pré-natal até a Unidade de Terapia Intensiva Neonatal. Os episódios explicam os direitos das mulheres em cada fase — do atendimento inicial ao pós-parto — e destacam situações que configuram violência obstétrica institucional.
Principalmente em um momento em que muitas informações não confiáveis são veiculadas em várias mídias e nas redes sociais, projetos como esse tentam ampliar o alcance das informações confiáveis.
“Um diferencial do projeto foi a participação ativa de profissionais de diferentes setores do CHC, que contribuíram com ideias e atuaram na produção dos vídeos. Isso ajuda a aproximar a equipe das usuárias e a desmistificar o hospital, muitas vezes visto como um ambiente desconhecido e hostil”, comenta a professora.
Emmanuele também acredita que, pelo fato de a construção ter sido coletiva, ela se torna muito mais rica. “Construímos algo que é de todos para todos. Esperamos poder contribuir para reduzir a violência obstétrica e proporcionar uma assistência segura, humanizada e respeitosa”.
Para Beatriz, iniciativas como essa são fundamentais.
“Muitas mulheres não sabem que têm direitos, que podem recusar procedimentos, que têm voz. Eu não sabia. Confiei em profissionais que agiram com descaso e paguei o preço mais alto: a perda do meu filho. Conscientizar é salvar vidas”.
Hoje grávida do terceiro filho, ela também transforma a dor em ação. Formalizou denúncias no Ministério Público e no Conselho Federal de Medicina e segue lutando para que sua história não seja esquecida, nem repetida. “Não faço isso apenas por mim ou porque acho que meu filho irá voltar. Faço por outras mulheres que também sofreram e por aquelas que ainda podem ser vítimas do mesmo sistema”.
➕ Leia o artigo “Violência obstétrica: reflexão sobre a notificação para alcance dos objetivos de desenvolvimento sustentável”, publicado na Revista Brasileira de Enfermagem
*Nome fictício para preservar a identidade da entrevistada