Presença de variante genética pode estar associada a casos assintomáticos de covid-19 Pessoas com um alelo do gene estudado foram 2,4 vezes mais propensas a serem assintomáticas em relação as que não tem o gene, aqueles com dois alelos foram 9 vezes mais propensas
Representação gráfica da molécula HLA-B*15:01 em interação com um peptídeo artificial - Imagem: Protein Data Bank (doi: 10.1093/nar/gkab314)

Um estudo com mais de 29 mil voluntários deu um passo importante para compreender o processo que leva a casos assintomáticos da infecção pelo vírus Sars-CoV-2, que causa a covid-19. A descoberta envolve um locus (local específico numa cadeia de DNA) de um conjunto de genes que regulam o sistema imunológico, conhecido como HLA (do inglês, Human Leukocyte Antigen). A pesquisa indica que pessoas com a variedade HLA-B*15:01 tem 2,4 vezes menos chances de desenvolver sintomas quando infectadas. A associação é ainda melhor para aqueles que apresentam duas cópias dessa variante, apresentando quase 9 vezes menos chances de apresentar sintomas.

Representação do cromossomo humano número 6 onde se localiza o HLA-B. Ilustração original: M.D. Shahinyan

O professor do Laboratório de Genética Molecular Humana da UFPR (LGMH), Danillo Augusto, explica que os genes HLA são fundamentais para a defesa do nosso organismo, pois controlam um mecanismo de memória relacionado às infecções. Esse conjunto de genes apresenta para um tipo específico de célula de defesa, chamada de Célula T, um antígeno, que são partes de vírus, bactérias ou protozoários que infectaram nossas células, para que a partir dessa informação essas células possam produzir anticorpos específicos para combater estes antígenos e assim possam debelar essas infecções.

O professor explica que “devido a essa função central na imunidade, os genes que codificam essas moléculas estão entre os mais estudados do genoma e estão entre os mais relevantes na medicina. São esses mesmos genes, por exemplo, que permitem a compatibilidade de um transplante de órgãos ou tecidos, e por isso precisam ser analisados em cada indivíduo que precisa de um transplante e seu potencial doador”.

Augusto fez parte do grupo de pesquisadores que está por trás do estudo que fez a descoberta, coordenado pela Universidade da Califórnia em São Francisco (UCSF). Os resultados da pesquisa estão descritos no artigo “HLA-B*15:01 is associated with asymptomatic SARS-CoV-2 infection“, publicado na plataforma MedRxiv.

Os seres humanos apresentam uma diversidade enorme de genes para o locus HLA-B, sequência de DNA que indica o local específico onde podemos encontrar essas variantes no cromossomo humano de número seis. O que determina qual variante estará nesse locus é a herança genética que recebemos de nossos pais biológicos, o asterisco seguido de um número indica uma variante específica (chamada alelo), nesse caso o HLA-B*15:01.

Esse código trata de um tipo de sequência de DNA que indica um gene específico, a primeira parte (HLA-B) indica o locus e a segunda parte, depois do asterisco, indica a variedade que ocupa aquele locus. Augusto explica que esta variante é considerada comum e encontrada com frequência relativamente alta na maior parte das populações mundiais.

“Todos os indivíduos produzem moléculas HLA, mas a diferença de sequência dos alelos altera a proteína e determina especificidade de cada molécula HLA. Cada molécula HLA pode apresentar um conjunto diferente de moléculas para as células T. Por isso, uma mesma variante HLA pode conferir maior proteção a certas doenças ao mesmo tempo que confere um maior risco para outras.” completa Augusto.

Informações genéticas de candidatos a doadores de medula óssea foram essenciais para a pesquisa

O estudo utilizou um banco de dados que conta com informações de pessoas que fazem parte do programa dos Estados Unidos de doadores de medula óssea. “O motivo de focarmos nesses indivíduos é que todos os que são registrados como doador voluntário de medula óssea têm seus genes HLA analisados e essa informação é guardada no banco de dados para encontrar um par doador-receptor compatível”, aponta Augusto.

“Indivíduos infectados por SARS-CoV-2 que apresentam uma cópia desse alelo tem cerca de 2,4 vezes mais chance de permanecerem assintomáticos enquanto indivíduos com duas cópias apresentam quase 9 vezes mais chance”

Danillo Augusto, Laboratório de Genética Molecular Humana da UFPR (LGMH)

Os pesquisadores desenvolveram um aplicativo de celular para levantar informações sobre sintomas e evolução da covid-19 e convidaram os cadastrados no programa a participar. A iniciativa, batizada de “Covid-19 citizen science” (“Ciência cidadã covid-19”, em tradução livre), permitia que os participantes respondessem semanalmente se haviam feito testes da doença, se o teste foi positivo ou negativo, quais sintomas apresentaram, entre outras informações relacionadas. Cerca de 30 mil voluntários aceitaram o convite dos pesquisadores e 21.893 deles forneceram informações completas para a pesquisa, que puderam ser comparadas com as informações genéticas previamente levantadas.

Dentre os participantes até janeiro de 2021, foram identificados 640 indivíduos que testaram positivo pra o SARS-CoV-2, dentre os quais 90 indivíduos permaneceram assintomáticos. Augusto explica que o cruzamento dos dados e uma análise estatística rigorosa mostrou que o HLA-B*15:01 aparecia com uma frequência significativamente maior no grupo dos assintomáticos. Para tornar o estudo mais robusto, ele foi repetido com participantes registrados a partir de fevereiro de 2021. Nesse novo grupo, 788 testaram positivo para o vírus, dentre os quais 46 permaneceram assintomáticos. Novamente a presença do HLA-B*15:01 foi associada à infecção assintomática.

“Nós observamos que a frequência de HLA-B*15:01 era significativamente maior em indivíduos assintomáticos, e isso não poderia ser explicado pelo acaso. Então, nós concluímos que a presença de HLA-B*15:01 está associada com infeção assintomática”, conclui o pesquisador.

Augusto explica ainda que para avaliar se o método de recolha das informações do aplicativo eram confiáveis, foram levantadas informações comprobatórias de um grupo de respondentes, o que obteve resultados satisfatórios. “Uma amostra de indivíduos foi convidada a enviar documentos comprobatórios, como por exemplo, resultado de exames e laudos médicos, e houve uma alta correlação entre os dados autodeclarados com os dados confirmados através do histórico médico”, completa.

Resposta imunológica está diretamente ligada à evolução da covid-19

A função específica do gene na atuação de combate a doenças também deve ser levada em conta para esta conclusão. O professor Breno Castello Branco Beirão, do Departamento de Patologia Básica da UFPR, que trabalha no desenvolvimento de uma vacina para a covid-19, ainda em fase de testes, explica que os casos assintomáticos da covid-19 estão ligados a uma resposta mais certeira do sistema imunológico ao vírus.

“A resposta imune corresponde a parte importante da doença. As formas mais graves ocorrem não só por causa dos efeitos do vírus sobre a pessoa, mas também porque há uma intensa inflamação nesses indivíduos. Normalmente, a inflamação é desejada porque ajuda o sistema imune na sua função de neutralizar o vírus. Contudo, em algumas pessoas a inflamação vai além do necessário e passa a ser deletéria. Nesses indivíduos, a própria resposta inflamatória causa dano aos pulmões, por exemplo, agravando os efeitos virais” aponta Beirão.

O professor explica que nos casos assintomáticos acontece o contrário: “a pessoa consegue impedir o avanço do vírus com um mínimo de resposta inflamatória. Isso ocorre porque essas pessoas têm uma resposta imune bem direcionada, contra partes importantes do vírus. Assim que têm contato com o vírus, esses indivíduos logo o bloqueiam e impedem que progrida no corpo”. É justamente nessa resposta que atua os genes HLA.

Resultados podem ajudar a descobrir como melhor combater o vírus

Identificar as variantes genéticas associadas a infecção assintomática traz informação relevante sobre os mecanismos que o organismo usa para rapidamente eliminar o vírus antes que ele se reproduza a ponto de causar sintomas, explica Augusto. Essas informações podem ser essenciais para a descoberta de novas formas de combate ao vírus.

“Nossa hipótese é que essa molécula HLA é capaz de produzir uma resposta inicial mais efetiva contra SARS-CoV-2 e investigar esse mecanismo pode levar a descoberta de mecanismos desconhecidos de proteção contra o vírus, além de identificar alvos para possíveis tratamentos ou produção de vacinas mais específicas”, relata o pesquisador. Ele explica que o grupo já se debruça sobre esses possíveis mecanismos e espera trazer boas notícias em breve sobre novas formas de atacar a doença.

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