Seleção feminina de ginástica avança por talentos individuais, mas falta plano em longo prazo  Pesquisadores analisaram trajetória do esporte por meio do itinerário percorrido por atletas em 60 anos de competições internacionais
Em 2024, na Olimpíada de Paris, a seleção brasileira conquistou, pela primeira vez, uma medalha na modalidade por equipes. Da esquerda para a direita: Júlia Soares, Rebeca Andrade, Jade Barbosa, Lorrane Oliveira e Flávia Saraiva. Fotos: Willian Meira/Ministério do Esporte/Divulgação

A conquista da primeira medalha por equipes da ginástica artística na Olimpíada de 2024, em Paris, mostra que a trajetória das ginastas brasileiras em Jogos Olímpicos e campeonatos mundiais tem apresentado resultados progressivos desde os anos 1960, período em que o Brasil iniciou sua participação no cenário competitivo internacional, até a atualidade, momento que em que o país se destaca entre os melhores no esporte.  

Entretanto, durante muito tempo, os triunfos na modalidade foram baseados em iniciativas pessoais, principalmente de treinadores, clubes e familiares de ginastas. Após quase 60 anos de participações brasileiras em campeonatos internacionais, o sucesso recente não está condicionado ao desenvolvimento do esporte no contexto do país, que ainda carece de um plano de longo prazo e de políticas públicas que possam sustentar o desenvolvimento a nível nacional. 

Em um estudo, publicado no Science of Gymnastics Journal, envolvendo a revisão da trajetória das principais ginastas e de suas conquistas nos Campeonatos Mundiais e Jogos Olímpicos de 1966 a 2021, um grupo de pesquisadores realizou uma análise crítica da Ginástica Artística Feminina brasileira neste período e constatou que o investimento, no Brasil, está concentrado em ginastas de elite, principalmente na seleção olímpica, e o desenvolvimento está centralizado em poucos clubes, não havendo, ao longo do tempo, um aumento no número de clubes e de ginastas.   

Isso é reflexo de um período grande com infraestrutura, equipamentos e instalações inadequados, financiamento irregular, pouca valorização dos técnicos brasileiros, modelo de treinamento centralizado, entre outros aspectos que tornaram o processo de evolução do esporte mais lento.

Percurso tortuoso colocou o Brasil entre os melhores do mundo

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A primeira autora do artigo e docente do curso de Educação Física da Universidade Federal do Paraná (UFPR), Leticia Bartholomeu de Queiroz Lima, afirma que, apesar de todas as dificuldades enfrentadas, com o tempo, o esporte foi se aprimorando.

“Os treinadores brasileiros aperfeiçoaram suas habilidades por meio de programas de intercâmbio internacional e a chegada de treinadores estrangeiros também foi importante para o desenvolvimento dos técnicos e das ginastas”, diz à Ciência UFPR. 

O Centro de Excelência em Ginástica, instalado na sede da Confederação Brasileira de Ginástica (CBG) foi outra iniciativa que contribuiu para a relevância do projeto para uma ginástica nacional.

“As conquistas obtidas na década de 1990 foram baseadas em ginastas talentosas, treinadores bem preparados e melhores condições de treinamento, além da chegada da técnica ucraniana Iryna Ilyashenko, em 1999, para fazer parte da comissão técnica da Seleção Brasileira”, revela.

A partir daí, houve a introdução de um programa de treinamento centralizado, no Centro de Excelência de Curitiba, que gerou consequências importantes para a ginástica artística brasileira.   

“Outros dois treinadores da Ucrânia, Oleg e Nádia Ostapenko, chegaram ao Brasil para completar a comissão técnica daquela seleção brasileira permanente, inaugurando um sistema de treinamento semelhante aos internatos esportivos da antiga União Soviética, que durou dois ciclos olímpicos. Então, de 2001 em diante, as melhores ginastas do país passaram a treinar juntas em regime de tempo integral. Mesmo os clubes privados passaram a ceder suas melhores ginastas à seleção, sediada em Curitiba, situação que proporcionou muitos benefícios, mas também causou prejuízos ao esporte”, afirma o artigo. 

Foi nesse contexto que o Brasil alcançou sua melhor classificação no Campeonato Mundial até então, com Daniele Hypólito ficando em quarto lugar no individual geral.  A atleta ainda conquistou a primeira medalha brasileira dessa competição, com a prata na prova de solo, no 35º Campeonato Mundial em Ghent, Bélgica (2001). 

O estudo menciona que, mesmo com as melhorias, o orçamento continuava limitado e poucos atletas tinham patrocinadores. A própria Daniele Hypólito só conseguiu viajar para a Bélgica com o apoio financeiro do jogador de futebol Ronaldo.  

Em 2003, no Campeonato Mundial pré-olímpico, nos Estados Unidos, Daiane dos Santos conquistou a primeira medalha de ouro do país nesse campeonato, no solo. Também pela primeira vez o Brasil classificou uma equipe inteira para competir em Jogos Olímpicos.  

Já na Olimpíada de Pequim, em 2008, o país disputou pela primeira vez uma final por equipes, terminando na oitava colocação. Esse ano ainda marcou o encerramento do sistema centralizado da seleção permanente e o desligamento dos treinadores Oleg e Nádia Ostapenko. 

Apesar de ter surtido bons resultados para o esporte, segundo o estudo, o formato centralizado enfrentava muitas oposições e apresentava aspectos negativos como treinamento rigoroso, monopolização de atletas, perda de ginastas talentosos que não se adaptaram ao sistema, desvalorização dos treinadores brasileiros, entre outros.

“Isso sugere que o modelo soviético não foi adaptado adequadamente à realidade da ginástica artística feminina no Brasil”, aponta o texto. 

O período seguinte foi marcado pelo aumento dos investimentos públicos e privados no esporte, com a implementação de leis e programas de incentivo. A partir daí, finais por equipes e finais por aparelhos individuais foram alcançadas, além de medalhas conquistadas em mundiais por Daniele Hypolito, Daiane dos Santos e Jade Barbosa. 

Os recursos mencionados possibilitaram à Federação Brasileira de Ginástica implementar iniciativas que contribuíram para o aprimoramento técnico da modalidade, dentre elas a contratação de treinadores estrangeiros e de equipe multidisciplinar, obtenção de equipamentos importados e oportunidades de treinamento no exterior. 

Em 2009, então, teve início um ciclo em que houve um afastamento da centralização das ginastas, que passaram a se reunir para treinar apenas nos períodos mais próximos das competições.

“Apesar do início promissor desta fase, os campeonatos subsequentes entre 2009 e 2012 não indicaram o desenvolvimento sustentado na era do sistema de treinamento centralizado. Foi um período marcado por lesões, desafios na renovação da equipe devido ao número limitado de atletas e questões políticas envolvendo uma das principais ginastas”, comentam os autores. 

Os anos seguintes não foram muito frutíferos para o esporte, que voltou a despontar em 2016, nos Jogos Olímpicos do Rio de Janeiro, agora já com Rebeca Andrade integrando a equipe e desempenhando papel fundamental para a classificação da seleção brasileira para a final. Mas até 2021, a modalidade enfrentou uma contínua desvalorização dos treinadores brasileiros, lesões recorrentes das atletas da seleção e a falta de ginastas aptas a competirem em nível internacional. 

A Olímpiada de Tóquio foi um marco para a ginástica artística brasileira que viu uma de suas atletas conquistar as primeiras medalhas olímpicas da modalidade, com Rebeca Andrade alcançando a prata na categoria individual geral e o ouro no salto. 

Apesar disso, um dos maiores problemas atuais consiste no fato de o Brasil possuir apenas seis ginastas de nível internacional, o que não acontece nos principais países que se destacam na modalidade, havendo uma substituição constante de atletas.

Embora essas seis ginastas recebam, atualmente, todo o apoio necessário em financiamento e infraestrutura, também é necessário apoio para o desenvolvimento de novas ginastas e para investir na formação de novos treinadores e na valorização desses profissionais”, revela Letícia. 

Os pesquisadores consideram que, ao longo de todo esse período, certamente houve uma melhora nos resultados das competições internacionais, mas a realidade local em todo o país não segue a mesma tendência.

“É possível melhorar em termos de governança, infraestrutura, formação e reconhecimento de treinadores, apoio de mídia, apoio a clubes locais e estaduais, transparência na gestão, entre outros aspectos”. 

A ginasta carioca Flávia Saraiva se apresenta na trave em Paris 2024
A ginasta carioca Flávia Saraiva se apresenta na trave em Paris 2024

Eles acreditam que ainda é necessário implementar mais programas de longo prazo, garantindo apoio aos clubes que atuam nas categorias de base e desenvolvendo programas que garantam suporte aos clubes e treinadores que formem as novas gerações de ginastas.

“Algumas reformas nas políticas públicas e um amplo programa de formação de gestores de federações estaduais poderiam ajudar nesse processo.  Por fim, o reconhecimento dos treinadores brasileiros no mesmo nível dos estrangeiros é urgente e necessário”, concluem. 

Olimpíada de Paris evidenciou investimento em nomes específicos

Depois dos Jogos Olímpicos do Rio de Janeiro, o Brasil passou a realizar parcerias que resultaram, por exemplo, na vinda de aparelhos homologados para as competições internacionais, o que facilitou imensamente o treinamento das atletas locais. A utilização de centros de treinamento com boas estruturas desenvolve o nível competitivo das ginastas em longo prazo e os resultados estão sendo observados atualmente. 

“Essa medalha por equipe é algo muito expressivo, pois medalhas individuais não significam, necessariamente, que o país está se desenvolvendo na modalidade. Já uma medalha por equipe mostra que o Brasil vem tendo uma preocupação maior e se desenvolvendo mais. Essa medalha é um indicativo de que o trabalho de muitos anos está sendo consolidado”, pontua Letícia. 

Segundo o árbitro internacional de Ginástica Artística Feminina e doutorando em Educação Física na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Mateus Henrique de Oliveira, contar com uma equipe de cinco meninas de diferentes lugares, que passaram por processos de treinamento distintos, com condição de apresentar séries no mais alto nível na maior competição internacional, significa que a modalidade tem se desenvolvido de forma expressiva no país. 

“Dá uma visibilidade muito grande para o país no cenário internacional, o que é muito interessante, porque tende a atrair mais olhares, mais pessoas praticando a modalidade e fazendo com que ela se desenvolva melhor”, indica Oliveira. 

As medalhas conquistadas por Rebeca Andrade também demonstram o quanto o Brasil tem talentos que, se bem lapidados, podem se destacar a nível mundial. Letícia afirma que a medalhista é uma ginasta acima da média e que se destaca pelo talento individual, pois o investimento nela passou a ser feito depois de seus primeiros êxitos. 

Com seis medalhas olímpicas no total, a paulista Rebeca Andrade é a maior medalhista da história do Brasil na competição

“O Brasil é muito meritocrata no esporte. Com os resultados expressivos, vieram mais investimentos na modalidade, mas esses investimentos vêm sendo feitos em um número pequeno de ginastas e nosso maior problema é que não vamos ter renovação. Então é necessário um investimento maior na base”, preocupa-se a pesquisadora. 

Para ela, a divulgação da modalidade e o empenho de colocá-la de forma gratuita e de fácil acesso para a população em diversos lugares é o que vai levar a criar uma cultura de mais crianças treinando e praticando.

“As conquistas da Rebeca terão consequências positivas, principalmente na divulgação da modalidade. A gente já tem visto, depois dos Jogos Olímpicos de Paris, várias escolinhas com lista de espera para as vagas. Mas também precisamos ter uma maior oferta e uma oferta de qualidade, ter ginásios bem equipados espalhados por vários lugares, ter programas de qualidade, sobretudo públicos, oferecidos para que as pessoas possam, de fato, treinar e permanecer na prática”. 

Oliveira cita a falta de assistência aos treinadores que trabalham com essa modalidade. Ele acredita que é necessário garantir que eles sejam mais capacitados e recebam as melhores informações sobre tendências mundiais no esporte, além de serem mais bem reconhecidos também financeiramente.

“O processo todo envolve muitas variáveis. As novas atletas precisam de uma assistência multidisciplinar e financeira desde a primeira idade competitiva, que inicia em torno dos nove anos, para que elas permaneçam no esporte. Além de melhores condições aos treinadores e centros de treinamento de qualidade. Só assim será possível trabalhar de forma mais apropriada para que as novas pequenas Rebecas sejam encontradas e lapidadas para brigar por mais medalhas no futuro”. 

➕ Leia detalhes no artigo “Women’s Artistic Gymnastics in Brazil: paths taken from 1966 to 2021“, publicado no periódico Science of Gymnastics Journal
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