“Se as pessoas negras não têm acesso à universidade, como é que você está aqui?”. Não foram poucas as vezes em que Dora Lúcia de Lima Bertúlio (1949-2025) ouviu provocações assim enquanto se dedicava à luta por cotas raciais na Universidade Federal do Paraná (UFPR), onde ingressou como aluna nos anos 1960 e atuou como procuradora e pesquisadora nas últimas três décadas.
Nascida em Itajaí (SC), foi peça-chave na implementação da política que fez da instituição a segunda universidade federal brasileira a adotar a ação afirmativa, em 2005. Bertúlio sabia do seu papel transformador, mas também entendia que ser uma em milhões não supria a urgência por mudanças estruturais.
Seu olhar para questões sociais começou em casa. Seu pai, o operário da construção civil José Adil de Lima, era comunista e foi preso pela Ditadura Militar várias vezes; e a mãe, Teodora de Lima, sempre lembrava que a educação tinha o poder de mudar destinos. O debate racial também fazia parte das conversas na infância: o casal sempre reforçava que a negritude não podia ser motivo de vergonha.
Nos anos 1960, a família precisou se mudar para Curitiba (PR), devido ãs perseguições políticas sofridas por Adil. Na capital paranaense, Bertúlio cursou segundo grau na UFPR e decidiu iniciar graduação em Direito na mesma instituição. “Só tive coragem de entrar pela porta da frente quando ingressei como acadêmica”, lembrou em entrevista a UFPR TV.
Ela era a única mulher negra em uma turma de 100 alunos. “A maioria dos estudantes era de classe media alta e sobrenome elegante”, disse. Em pouco tempo, começou a atuar no Centro Acadêmico, aprimorando na prática seu viés político. Após se formar em Direito, assumiu o cargo de assistente jurídica da Universidade Federal do Mato Grosso (UFMT), em Cuiabá.
Nos anos 1980, cursou mestrado na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e defendeu a dissertação “Direito e relações raciais: uma introdução crítica ao racismo”. Em seguida, foi aluna visitante na Harvard Law School, em Cambridge (Massachusetts, EUA), o que a levou a conhecer os principais debates em ascensão nos Estados Unidos sobre politicas raciais.
“No inicio, eu nao queria pesquisar no berço do imperialismo, mas depois me encantei com os estudos que estavam desenvolvendo”.
Toda a bagagem crítica e teórica adquirida lá fora foi fundamental para sua atuação no enfrentamento a desigualdade racial por aqui. De volta ao Brasil, Bertúlio coordenou um fórum com o apoio da Fundacao Ford que reuniu profissionais negros do Direito do Brasil e dos Estados Unidos durante uma semana de estudos.
Em 2001, Bertulio participou da Conferencia de Durban, a Terceira Conferência Mundial contra o Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerâncias Correlatas, realizada na África do Sul. O evento resultou em uma declaração da Organização das Naçoes Unidas (ONU) com propostas globais para combater o racismo. Em 2002, assumiu a chefia da procuradoria da UFPR com amplo acumulo técnico, teórico e político para fortalecer ações afirmativas na UFPR.
Durante os anos 2000, foram promovidos inúmeros debates dentro e fora da universidade. Pessoas negras assumiam seus cabelos, pessoas brancas acessavam debates sobre demandas da população negra e a UFPR vivenciava um período de intensos debates e efervescência politica. Foi nesse período que a universidade passou a debater que o vestibular destinasse 20% das suas vagas para pessoas negras.
“Quando você diz que na Medicina, das 100 vagas, 20 serão para negros, a sociedade cai”, argumentou. Segundo a procuradora, as pessoas confundiam cotas sociais com cotas raciais e era comum chegarem criticas de quem não sabia ou sabia muito pouco da importância da medida.
“Se eu não conheço de febre aftosa, eu não vou falar disso com propriedade. Mas pessoas que não entendiam nada sobre cotas queriam dar sua opinião. A branquitude traz essa prepotência”.
Assim, em 2004, os Conselhos Superiores da UFPR aprovaram um plano de metas para a inclusão racial e social. No ano seguinte, a instituição realizou seu primeiro vestibular com cotas: 20% das vagas foram reservadas para candidatos negros e outros 20% para egressos de escolas públicas, marcando um passo histórico na promoção da igualdade no ensino superior. “Não ganhamos por unanimidade, mas ganhamos no argumento”, disse.
Alem de atuar como procuradora na UFPR, Bertúlio foi procuradora da Fundação Cultural Palmares entre 2009 e 2016, foi homenageada como personalidade Afro-Paranaense pelo Governo do Estado do Paraná, e recebeu o título de cidadã honorária da Câmara Municipal de Curitiba. Também foi cofundadora do Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros da UFPR e se aposentou em agosto de 2023. Morreu em 14 de fevereiro de 2025, mas seu legado segue vivo.



