Gratinadas, ao vapor, utilizadas na composição de pratos à base de frutos do mar ou in natura, as ostras são uma iguaria venerada por muitos, mas mesmo esses não deixam de questionar a origem delas antes de apreciá-las. Classificadas como filtradores (animais aquáticos que se alimentam de partículas suspensas no mar), esses moluscos, se cultivados em ambientes poluídos, podem causar contaminação. A questão tem impacto econômico no Brasil: segundo a Pesquisa Pecuária Municipal de 2016, do IBGE, a produção de ostras, vieiras e mexilhões movimenta R$ 68,5 milhões por ano no país, onde são produzidas quase 21 mil toneladas desses moluscos.

Processo permite identificar as até 900 bactérias da carne das ostras com apenas uma análise, capaz de substituir centenas de avaliações

Tendo a qualidade das ostras como foco, uma pesquisa desenvolvida no Programa de Pós-Graduação em Zoologia (PPGZoo) da Universidade Federal do Paraná (UFPR) criou um método inovador para monitorar a qualidade de lotes destinados ao consumo humano – e que permite identificar centenas de bactérias em uma única unidade do molusco. Os resultados da pesquisa realizada entre 2013 e 2017 vêm sendo aplicados por criadores brasileiros a fim de reduzir a quantidade de bactérias encontradas nas ostras. Ao microscópio, esses molusco chamam a atenção pela elevada quantidade de bactérias que apresentam, ainda que a maioria desses micro-organismos não transmita doenças se ingerida.

“Entretanto, com base em levantamentos bibliográficos, constatou-se que bactérias potencialmente patogênicas para humanos não constam na legislação brasileira, o que pode ser um problema”, observa a bióloga Aline Horodesky, autora da tese de doutorado “Influência de fatores físicos, químicos e biológicos sobre a sobrevivência e sobre a qualidade sanitária de ostras (Crassostrea spp.) em diferentes regiões do Brasil“, pelo qual o método foi desenvolvido. A legislação exige que a carne de moluscos bivalves – caracterizados pela presença de uma concha de carbonato de cálcio formada por duas metades — e as águas da região onde são cultivados sejam periodicamente monitoradas para conhecimento do nível de bactérias patogênicas.

Segundo o professor e pesquisador do Departamento de Zootecnia da UFPR, Antonio Ostrensky Neto, orientador da tese, as análises costumam ser realizadas por culturas bacterianas. A amostra de carne ou de água é colocada em um meio de cultura para que os microrganismos se desenvolvam e seja possível mensurar a quantidade de colônias ou o número provável de bactérias no material. O método tem como base análise genética: por meio dele, é possível identificar as bactérias presentes na carne das ostras (entre 800 e 900 espécies) com uma análise.

“Antes seriam necessárias centenas de análises para se chegar a esse resultado”, conta o pesquisador, que coordena o Grupo Integrado de Aquicultura e Estudos Ambientais (GIA), criado em 1997. O trabalho desenvolvido na UFPR foi o primeiro do Brasil a utilizar o sequenciamento de nova geração para identificar bactérias presentes em moluscos bivalves – como ostras, mexilhões e vieiras.

Visitas a fazendas onde são cultivadas duas espécies de ostras

O estudo investigou a influência de fatores físicos, químicos e biológicos sobre a sobrevivência e sobre a qualidade sanitária de ostras em diferentes regiões do Brasil. Levantamento bibliográfico e entrevistas com produtores de ostras foram os primeiros passos da investigação. “A partir disso, surgiu a ideia de juntar essas informações e realizar estudos para chegar a resultados práticos que tanto produtores como comerciantes e governantes pudessem utilizar, de forma prática”, relembra a pesquisadora.

A segunda etapa compreendeu visitas a campo para o recolhimento de amostras de ostras do litoral do Paraná e do litoral do Nordeste.

A pesquisa monitorou a qualidade higiênico-sanitária de ostras cultivadas na Baía de Guaratuba e na Baía de Paranaguá. Duas espécies são comercializadas no litoral paranaense: a ostra-de-mangue — Crassostrea rizophorae — e a chamada ostra-de-pedra, Crassostrea gazar, objeto do estudo. “Durante a pesquisa, mantivemos ostras vivas em Curitiba. Também analisamos a qualidade higiênico-sanitária de moluscos congelados e de pratos feitos à base do alimento e comercializados no Paraná — além de estudos da qualidade das ostras vendidas na região Nordeste”, afirma o oceanólogo. Parte dos estudos foi realizada no Laboratório de Pesquisa com Organismos Aquáticos (Lapoa) da UFPR, localizado na capital.

Processo foi repetido no Paraná e em quatro estados do Nordeste, para confirmar aplicabilidade em diferentes ambientes e estruturas

Cultivos artesanais dos estados de Alagoas, Sergipe, Rio Grande do Norte e Paraíba também foram monitorados. “Monitorar esses locais foi importante para que pudéssemos desenvolver e testar o método e validar sua eficiência em diferentes realidades, em diferentes condições ambientais e operacionais”, esclarece Ostrensky Neto.

A água do mar foi captada no litoral do estado e tratada pela estrutura no Centro de Aquicultura Marinha e Repovoamento (Camar) da UFPR, em Pontal do Paraná. “Um caminhão pipa trazia essa água tratada até Curitiba, onde era armazenada e utilizada nos experimentos com as ostras”, detalha o pesquisador. O monitoramento de ostras é apenas uma das ações desenvolvidas pelo grupo de pesquisa, que tem como prioridade pesquisar e desenvolver novas tecnologias relacionadas a ecossistemas e à produção de organismos aquáticos. Em conjunto com a Universidade de Maryland, nos Estados Unidos, o grupo desenvolve tecnologias para o cultivo de siris. Pelo Camar, tão são realizadas pesquisas sobre o cultivo de espécies nativas de camarões marinhos.

Ponto de partida para uma análise mais prática e viável

O método desenvolvido a partir da pesquisa foi incorporado aos procedimentos analíticos de rotina dos laboratórios utilizados pelo GIA. “Os resultados são recentes. Estamos publicando-os, na forma de artigos científicos, juntamente com a descrição do método. A ciência funciona assim, a partir da divulgação dos resultados, outras pessoas passam a estudar mais, a aprimorar e a utilizar os resultados obtidos”, informa Ostrensky.

O método metagenômico permite a caracterização de comunidades microbianas sem a necessidade de isolar ou cultivar bactérias específicas

A fase laboratorial iniciou em 2015 e levou cerca de um ano para ser finalizada, estima Aline. “O desenvolvimento de um método tem suas etapas ‘complicadas’, que demoram mais tempo e demandam uma certa insistência em testar vários procedimentos para chegar a um resultado correto e confiável”. Após as análises, a tese começou a ser redigida. Os cinco capítulos abordam questões ecológicas, de manejo do molusco, referentes à qualidade dos ambientes de cultivo e a formas de armazenamento para minimizar a contaminação. O trabalho também explana sobre a qualidade das ostras comercializadas no Paraná.

Persistência e dedicação foram necessárias para refinar o método. “Os ajustes do método para análise de metagenômica de ostras demandaram um maior tempo e uma grande quantidade de testes, que nem sempre eram positivos. Por isso, acabaram sendo um tanto laboriosos, mas, com um pouco de curiosidade, insistência e muito estudo, chegamos a um resultado interessante e confiável”, avalia a bióloga. A metagenômica é um método que permite a caracterização de comunidades microbianas sem a necessidade de isolar ou cultivar bactérias específicas.

A pesquisa está em processo de desenvolvimento, no âmbito de um projeto de pesquisa financiado pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Os pesquisadores também atuam para aprimorar o sequenciamento de nova geração e testam novos procedimentos para que a análise se torne cada vez mais prática e viável, tanto para o monitoramento da qualidade das ostras como para as áreas em que o laboratório do GIA atua. O sequenciamento de nova geração, procedimento citado por Aline, foi desenvolvido em 2005 e é utilizado em diversos países para análises moleculares em diferentes animais.

Novas aplicações da técnica em estudo sobre biodiversidade

O método pode ainda ser aplicado a análises que tenham como objetivo fazer o mapeamento completo de bactérias ou de outros microrganismos. Segundo os pesquisadores da UFPR, a utilização da nova ferramenta vem ganhando espaço, com análises mais baratas, seguras e que demandam menos tempo em campanhas de campo em busca de respostas.

No próprio GIA, um projeto em fase inicial, em parceria com a hidrelétrica Itaipu Binacional, utilizará o sequenciamento de nova geração para monitorar a biodiversidade de peixes no canal de piracema da usina.

O trabalho desenvolvido na UFPR foi o primeiro do Brasil a utilizar o sequenciamento de nova geração para identificar bactérias presentes em moluscos bivalves — como ostras, mexilhões e vieiras. Com projeto de pós-doutorado em andamento na mesma linha de pesquisa, Aline agora explora outro tema. “Meu trabalho visa desenvolver métodos moleculares de última geração para identificação, quantificação e monitoramento da presença de espécies invasoras em reservatórios de usinas hidrelétricas”.

O Laboratório de Histologia e Microbiologia (LHM), base operacional do GIA, também foi utilizado para as análises. Os experimentos foram realizados em parceria com o Laboratório de Bioquímica e com o Laboratório de Dinâmica Evolutiva e Sistemas Complexos da UFPR. Todas as estruturas estão localizadas em Curitiba.

Cultivos no Paraná recebem orientações de pesquisadores e do Sebrae

O monitoramento com o novo método foi realizado nos principais cultivos onde o Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae) atua no Nordeste — nas cidades de Macau (RN), Tibau do Sul (RN), Marcação (PB), Passo de Camaragibe (AL), Barra de São Miguel (AL), Brejo Grande (SE) e Indiaroba (SE). O controle também foi feito em ostras cultivadas no litoral do Paraná e em ostras processadas e comercializadas em dez cidades do estado — Curitiba, Guaratuba, Paranaguá, Matinhos, Maringá, Campo Mourão, Guarapuava, Francisco Beltrão, Toledo e Foz do Iguaçu.

Pesquisa deu origem a uma série de manuais com informações sobre sanidade e profilaxia de ostras nativas

O trabalho regular de monitoramento da qualidade higiênico-sanitária das ostras pelos produtores ligados à Associação Guaratubana de Maricultura (Aguamar) é feito de acordo com normativas do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa). Por esse motivo, as análises convencionais continuam sendo realizadas nas ostras cultivadas na cidade.

“Essas normas não têm exatamente os mesmos objetivos da técnica desenvolvida por meio da nossa pesquisa”, explica Ostrensky. O professor justifica a ausência de dados referentes ao volume da produção na região. “Muitas pessoas desenvolvem a atividade de forma absolutamente informal e sem controle. Por isso, a importância de monitorarmos e garantirmos a qualidade das ostras”.

A pesquisa deu origem a uma série de manuais com informações sobre sanidade e profilaxia de ostras nativas; com fundamentos e recomendações técnicas para a rastreabilidade dos moluscos; com fichas técnicas para identificação de organismos que podem prejudicar o cultivo; com boas práticas para qualidade e segurança na realização de negócios com ostras nativas.

O público-alvo do material produzido em parceria com o Sebrae são produtores de ostras e gestores que atuam na área. Os arquivos estão disponíveis para download no site do GIA (https://gia.org.br/portal/loja/).

CULTIMAR LEVA RESULTADOS DAS PESQUISAS DA UFPR A OSTREICULTORES

Os resultados da pesquisa sobre qualidade das ostras são aplicados por meio do Cultimar, iniciativa desenvolvida desde 2005 com o objetivo de fomentar a ostreicultura no litoral paranaense. Há 14 anos, o projeto de extensão da UFPR promove ações com foco social, ambiental, técnico, tecnológico e econômico junto às comunidades. O projeto incentiva a geração de renda a partir da maricultura, por meio da produção e comercialização de ostras e de camarões para isca-viva. A Baía de Paranaguá e o estado da Bahia receberam ações do projeto, hoje restrito à região de Guaratuba.

“Mais do que um projeto, ele representa um conceito, uma forma de trabalhar e uma forma de encarar o desenvolvimento sustentável”, explica o professor Antonio Ostrensky Neto, coordenador das atividades. Isso significa que o plano possui diversas frentes de atuação, entre elas a conscientização sobre o ramo turístico, as ações de marketing, o desenvolvimento do artesanato, a educação ambiental, a melhoria nas técnicas de produção e o incentivo à participação dos produtores em feiras. Hamilton de Moura Kirchner cultiva ostras há 23 anos e toda a sua família está envolvida com a atividade.

O ostreicultor e dono de restaurante, que nasceu em Brasília, mas se considera caiçara, identifica impactos positivos do projeto. “O Cultimar foi um parceiro importante para a aquicultura estadual chegar aonde está. Acelerou o desenvolvimento socioeconômico, especialmente das comunidades envolvidas na cadeia produtiva da ostra”.

Kirchner diz que foi no trato com os cientistas que descobriu o porquê do sabor especial das ostras da região. “São inúmeros fatores, desde a espécie, a água, o clima, o trabalho. Eu me sinto orgulhoso por meu trabalho ter se tornado uma referência de qualidade, ter sido responsável por uma revolução socioeconômica na nossa região”.

As fazendas vinculadas ao projeto Cultimar receberam a visita de especialistas e pesquisadores de universidades americanas e inglesas. A qualidade das ostras chamou a atenção. “Trouxemos pessoas da Noruega, da Coreia do Sul. Algumas até trabalharam como voluntárias no projeto. O fato ‘histórico’ foi uma visita, em 2010, de pesquisadores japoneses que estavam escrevendo um livro sobre ostras de todo o mundo. Quando provaram as de Guaratuba, afirmaram que estavam entre as melhores que já haviam provado. Os produtores ficaram tão orgulhosos da frase que passaram a usá-la quase que como um mantra”, comenta o professor.

O Cultimar recebeu, em 2012, o Prêmio de Inovação da Financiadora de Inovação e Pesquisa (Finep) como melhor projeto do Sul do Brasil pelo trabalho com a maricultura associado a ações de educação, valorização da cultura local e capacitação técnica e para o turismo. O reconhecimento também veio por meio de premiações, como o prêmio internacional entregue pelo Instituto HSBC Solidariedade (IHS).

O projeto conta com convênio com a Aguamar para monitoramento higiênico-sanitário das ostras produzidas pelos associados. O acompanhamento é feito sem custos à Aguamar, que, em contrapartida, fornece ostras e disponibiliza estruturas e local de pesquisas para pós-graduandos vinculados ao GIA. “Nossos projetos sempre têm como objetivo fazer com que os resultados das pesquisas cheguem à sociedade de uma forma geral e não se limitem à comunidade acadêmica”, afirma Ostrensky.

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