Como a ressonância magnética nuclear ajudou a desmascarar manteiga falsificada Análises foram conduzidas pelo Centro de Ciências Forenses da UFPR, que une 15 grupos de pesquisa para apoiar investigações policiais
Laboratório de RMN da UFPR em Curitiba (1). Foto: Leo Bettinelli/Sucom/UFPR

A fraude alimentar é um problema global que movimenta um mercado bilionário. E o crescimento do consumo de laticínios no Brasil acende um alerta sobre a adulteração nesse tipo de produto. Uma das práticas consiste em substituir a gordura do leite, ingrediente nobre e nutritivo, por alternativas mais baratas, como óleo de palma, margarina ou até banha de porco, criando sérios riscos à saúde.  

Em uma operação no estado de Minas Gerais, a Polícia Federal apreendeu lotes de uma marca de manteiga vendida em supermercados sob suspeita de adulteração. Para desvendar a fraude, peritos recorreram a uma parceria com cientistas da Universidade Federal do Paraná (UFPR), que utilizaram uma tecnologia de ponta para a investigação.

“Qualquer tipo de adulteração, falsificação ou alteração, como no caso da manteiga, corresponde à prática de procedimentos não controlados, sem garantias, podendo colocar em risco a saúde humana”, diz o perito da Polícia Federal Ricardo de Oliveira Mascarenhas, que atua na área há 17 anos. “O produto perde sua certificação e segurança. Acrescenta-se ainda que a adição de componentes exógenos à manteiga implica em prejuízos à saúde, principalmente de pessoas que necessitam de alimentação restritiva”.  

As 20 amostras apreendidas pela Polícia Federal, junto a matérias-primas como óleo de palma e aromatizantes encontrados nos locais de produção, foram levadas ao Laboratório Multiusuário de Ressonância Magnética Nuclear (RMN) da UFPR.  

A principal ferramenta utilizada na investigação foi a espectroscopia de Ressonância Magnética Nuclear (RMN), técnica que funciona como uma espécie de “impressão digital química”. Ela analisa a composição química de qualquer material e revela seus componentes, sendo ideal para detectar adulterações.  

Por meio dos espectros de RMN, os pesquisadores verificaram a adulteração dos produtos.“Empregando a técnica de RMN e de análise isotópica (que identifica a composição de substâncias pela proporção de isótopos presentes), averiguamos que as amostras a serem comercializadas estavam adulteradas pelo emprego de materiais como óleo vegetal e aromatizantes”, diz Leice Novais, estagiária de pós-doutorado e autora principal do estudo. Legalmente, a manteiga só pode conter gordura láctea.  

O docente Andersson Barison, vinculado ao Laboratório Multiusuário de RMN da UFPR, explica que a técnica permite analisar a composição química de qualquer tipo de amostra, até por exemplo saber se uma batata é ou não de produção orgânica. 

De acordo com Novais, o Laboratório de RMN se fundamenta na necessidade de capacitar peritos para que eles mesmos possam desenvolver suas análises utilizando o equipamento de RMN, tanto a parte técnica quanto a discussão dos resultados nos laudos apreciados por eles. Por isso, as análises foram desenvolvidas pela pesquisadora e pelo perito criminal responsável, que esteve presente em todo o período experimental. 

Após a conclusão das análises, a equipe da UFPR se reuniu com os peritos criminais para interpretação e discussão dos dados que subsidiaram a elaboração do laudo pericial. 

Alimentação do gado traz pistas à investigação

Para uma contraprova definitiva, a equipe recorreu a uma segunda técnica: a Análise de Razão de Isótopos Estáveis de Carbono (SCIRA), realizada no Instituto Nacional de Criminalística (INC), em Brasília. 

No Brasil, o gado é alimentado principalmente com plantas do tipo C4, como pastagens tropicais, que deixam uma marca isotópica específica no leite e na manteiga. Já os óleos vegetais, como o de palma, vêm de plantas do tipo C3, com uma assinatura completamente diferente. O método utilizado na pesquisa consegue, portanto, identificar informações sobre a dieta do gado. 

Os resultados foram nítidos: as manteigas comerciais de referência apresentaram a assinatura isotópica esperada para produtos lácteos brasileiros e as amostras apreendidas tinham valores consistentes com fontes vegetais puras.  

A conclusão, reforçada pela Análise de Componentes Principais (PCA), um método estatístico que agrupou visualmente as amostras adulteradas, foi de que os produtos fraudulentos continham uma quantidade mínima ou nenhuma de gordura do leite. 

Ciência a serviço da sociedade 

A colaboração entre a UFPR e a Polícia Federal culminou na criação do Centro de Ciências Forenses (CCF) da universidade em 2020. O Centro, que atuou na investigação, é pioneiro no país. “Somos o primeiro e único CCF na configuração que temos. Reunimos 15 grupos de pesquisa de áreas diferentes, que vão desde a autenticação de obras de arte até a identificação de novas substâncias psicoativas”, diz a pesquisadora Caroline D’Oca, docente do Departamento de Química da UFPR e uma das supervisoras do trabalho.  

A pesquisa “Investigation of fraud in the production of butter: a forensic case study of criminal association”, publicada na revista científica internacional Food Additives & Contaminants, é um dos frutos do CCF. 

“A interação entre a UFPR e as forças de segurança existe há muitos anos, porque o trabalho dos peritos é científico e precisa de apoio em infraestrutura, metodologia e pesquisa. O CCF deu um caráter oficial a essas parcerias, por meio das quais compartilhamos conhecimento e conseguimos contribuir com o trabalho desses profissionais”, diz a professora. 

A parceria representa como a ciência pode impactar diretamente a vida da população. “Somos pagos pela sociedade e os equipamentos que usamos foram comprados com recursos públicos. Então, é um dever nosso devolver à sociedade todo o investimento que ela faz na universidade pública. Essa parceria ajuda a tirar de circulação produtos adulterados que iriam prejudicar a saúde de nossa população, além de combater a criminalidade”, diz Barison. 

Entre os trabalhos desenvolvidos ao longo dos anos, destacam-se a identificação de Novas Substâncias Psicoativas, a quantificação de etanol em amostras de álcool gel, por ocasião da Operação “Aquagel” em 2020, período da pandemia, e a identificação de amostras de mel adulteradas, durante a deflagração da Operação Xaropel, em 2021.  

Para o perito Ricardo Mascarenhas, a infraestrutura laboratorial e a experiência dos pesquisadores auxiliam na execução de análises e na elaboração de laudos periciais que são importantes para as investigações. “Um dos benefícios é a otimização de recursos públicos, permitindo que técnicas analíticas de alto custo sejam utilizadas em diferentes aplicações sem a necessidade de replicação do parque analítico. Do ponto de vista da segurança pública, a parceria com a universidade robustece a prova pericial, colaborando tanto com as investigações policiais quanto com as decisões judiciais”, conclui.

➕ Leia o artigo “Investigation of fraud in the production of butter: a forensic case study of criminal association”, publicado na Food Additives & Contaminants: Part A 
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