BOLETIM UFPR | A formiga que ficou conhecida como “infernal” por conta de suas grandes mandíbulas
“Vampiras”, “mortais” e, por fim, “formigas do inferno” são apelidos já usados para descrever um grupo de formigas que viveu no cretáceo, período pré-histórico ocorrido há cerca de 100 milhões de anos — o que faz delas contemporâneas dos dinossauros. Tanto terror viria do fato de que o inseto (embora pequeno) possuía mandíbulas grandes em relação ao corpo e com as pontas voltadas para cima. Algumas espécies portavam ainda um tipo de chifre na cabeça. Todos esses são fatores que deixam as formigas com aparência agressiva mesmo para quem as observa como fósseis conservados há muito tempo. No entanto, dois professores do Departamento de Zoologia da Universidade Federal do Paraná (UFPR) que estudaram três espécies de “hell ants” avaliam que essa subfamília de formigas extintas pode ser mais diversa e especializada do que se tem notícia.
Para eles, o mais provável é que as grandes mandíbulas de espécies da subfamília Haidomyrmecinae (o grupo das “hell ants”) não eram tão fortes como aparentam, o que sugere que seriam usadas para carregar seiva de árvores, como uma grande pinça. Assim sendo, essa parte da cabeça dos insetos serviria mais como um aparato hidráulico do que como uma terrível arma para empalar presas. A consideração está no artigo “New haidomyrmecine ants (Hymenoptera: Formicidae) from mid-Cretaceous amber of northern Myanmar”, publicado na última edição da revista Cretaceous Research, da Elsevier.
“As mandíbulas dessas formigas são muito incomuns, não existe nada parecido hoje. Disso veio a fama de ‘infernais’, mas a descrição dessas espécies mostra que nem todas eram assim”
“As mandíbulas dessas formigas são muito incomuns, não existe nada parecido hoje. Isso deu origem a muitas especulações sobre como elas caçavam, que movimentos faziam. Disso veio a fama de ‘infernais’, mas a descrição dessas espécies mostra que nem todas eram assim”, explica John Lattke, do Departamento de Zoologia da UFPR, que assina o artigo e é especialista em formigas (ou mirmecólogo).
Também o tal chifre dessas espécies não parece capaz de servir de arma. “Estruturalmente o chifre era muito fraco e rombudo para funcionar como uma lança capaz de golpear presas, como muitos propõem”, avalia Lattke. Outro motivo para duvidar do uso como lança é o movimento que a formiga teria que fazer, na vertical (para cima e para baixo), que é raro para esse tipo de inseto e incondizente com a estrutura da cabeça das espécies estudadas.
Para os autores, as descobertas mostram que é equivocado associar morfologias primitivas às formas de vida que existiam antes da extinção em massa ocorrida há cerca de 65 milhões de anos. “Existe talvez uma tendência em pensar que todos os bichos que conviveram com as ‘hell ants’ eram grandes predadores, como muitos dinossauros, e desprezar a biodiversidade da época, que já era bem notável”, avalia o professor Gabriel Melo, também autor do artigo.
Mais uma empilhadeira do que uma lança
A metodologia usada para chegar a essas conclusões foi a comparação morfológica entre essas formigas já extintas e as atuais. A partir da descrição das características de exemplares de “hell ants” preservados em âmbar, provenientes de Mianmar, no Sudeste Asiático, e o que elas diziam sobre os hábitos desses insetos, os cientistas analisaram os hábitos das formigas atuais no que o ambiente delas tem a ver com o do cretáceo. Há 100 milhões de anos, por exemplo, já existiam plantas angiospermas (frutíferas) e insetos sugadores de seiva doce. Esses insetos, entre os quais a cochonilha, são hoje uma das principais fontes de alimento das formigas predadoras.
Os pesquisadores concluíram que, apesar de haver indícios de que essas formigas eram mesmo predadoras (havia vestígios de presas na boca dos insetos descritos), nem todas as espécies de Haidomyrmecinae usavam suas grandes mandíbulas para imobilizar as presas para serem “empaladas”, como faria um escorpião. O mais plausível é que essas três espécies estudadas, por exemplo, caçassem insetos à procura de hemolinfa como alimento, mas as mandíbulas seriam facilitadoras na caça — além de ferramentas para carregar secreções ou exsudatos doces de plantas ou de insetos sugadores de seiva.
“Existe talvez uma tendência em pensar que todos os bichos que conviveram com as ‘hell ants’ eram grandes predadores, como muitos dinossauros, e desprezar a biodiversidade da época, que já era bem notável”
“Essa formigas também têm algo que não é achado em formigas modernas, que são as espículas, pequenos pares de pelos duros sobre a boca. Eles seriam capazes de perfurar um exoesqueleto mais macio das presas. As mandíbulas ajudariam a pressionar de forma persistente até que a presa ‘sangrasse’”, explica Lattke.
Depois de se alimentar, elas usariam as mandíbulas para carregar gotas de hemolinfa e demais exsudatos (líquidos orgânicos “vazados”) para o formigueiro. Tudo indica que as três espécies analisadas são sociais, uma vez que grupos de fósseis delas já foram encontrados conservados em uma mesma peça de âmbar — o que indica também que elas subiam em árvores. Para um pesquisador da área, o fóssil conservado em âmbar traz informações importantes para a recriação da morfologia e dos hábitos das espécies. “Esses fósseis são sensacionais porque são como momentos paralisados no tempo. É como ver a imagem de uma formiga extinta como ela era”, diz Lattke.
O contraponto é que o fato de esses fósseis serem os principais registros das “hell ants” impede que se saiba se elas viveram no continente sul-americano. As árvores que produzem as resinas que dão origem ao âmbar estavam na região, mas ainda não foram encontrados depósitos do cretáceo. Até agora, sabe-se que essas formigas existiram no que hoje é a Ásia, a Europa e o Canadá.
Coleção de fósseis de insetos em âmbar
O estudo foi viabilizado por meio de uma coleção de fósseis de insetos que vem crescendo no Departamento de Zoologia da UFPR, sob a curadoria de diversos professores, entre eles Gabriel Melo. Especialista em abelhas e vespas, Melo tem adquirido as peças em lojas especializadas que comercializam fósseis desses insetos. Também se interessa, porém, por achados de outras famílias de insetos — caso das três espécies de “hel ants”. Os fósseis usados no estudo vêm de uma região no nordeste de Mianmar, já conhecida por ser uma fornecedora para cientistas e amadores.
Para John Lattke, a pesquisa sobre fósseis de insetos traz reflexões relevantes sobre biodiversidade e manutenção de ecossistemas. Ao que tudo indica, essas formigas não sucumbiram por não conseguirem se adaptar ao ambiente, mas talvez pela mudança na vegetação com o crescente domínio das angiospermas ou mesmo por um evento drástico, que por sua vez não foi uma sentença de morte para a natureza.
“O fósseis permitem testemunhar que, embora grandes ecossistemas possam sumir e grandes fatias da biodiversidade irem embora, eventualmente elas serão substituídas por outros atores. Nós, os humanos somos uma espécie, um ator, nós também podemos sumir. Para a natureza somos um recurso para ser utilizado, que o diga o novo coronavírus. A natureza não precisa dos humanos, mas nós sim precisamos da natureza”.