O que mulheres camponesas da Irlanda e do interior do Paraná, no Brasil, têm em comum com mulheres quilombolas de Barra do Turvo, em São Paulo? As semelhanças perpassam a luta diária frente à colonialidade da natureza, do saber, do poder e do ser, e uma diversidade de ações de resistências cotidianas exibindo casos práticos e contundentes de feminismo.
As diferentes histórias dessas mulheres, suas famílias e comunidades foram registradas na tese de doutorado que Renata Borges Kempf defendeu no Programa de Pós-Graduação em Meio Ambiente e Desenvolvimento, da Universidade Federal do Paraná (UFPR). A pesquisa da economista, mestra em Desenvolvimento Regional e, agora, doutora, foi uma das contempladas no Prêmio Capes de Tese 2023, iniciativa da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior.
Durante alguns períodos, Renata observou a rotina das personagens e entrevistou, por meio de diálogos permanentes, as participantes da pesquisa. Através desse método de coleta de dados, chamado etnografia, e levando em consideração as diferenças de classe, raça, gênero e outros marcadores sociais, a pesquisadora identificou que nas suas formas de trabalho e de construção de conhecimento se encontram estratégias de resistência ao colonialismo, ao patriarcado e ao capitalismo.
Coletividade e respeito à natureza: uma forma de resistir
Em um mundo globalizado, de mercados de commodities para exportação e exploração aos recursos naturais visando à produção de capital, as camponesas e quilombolas mantêm relações de troca e de ajuda mútua, produzem alimentos saudáveis para suas famílias e comunidades e diversificam seus quintais e as agroflorestas, transformando-os em alternativas de produção de vida.
“Nessas formas cotidianas de resistência, as mulheres camponesas e quilombolas têm na coletividade, na produção de alimentos e nas relações harmônicas com a natureza, seus pilares principais”, revela Renata à Ciência UFPR.
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Ela ressalta que os três contextos estudados são muito diferentes e, portanto, seu trabalho não é comparativo. Apesar disso, os efeitos do patriarcado e do sistema capitalista são sentidos nos três espaços, em alguns mais do que outros. “Nos campos brasileiros a gente soma esse cenário à violência colonial nos processos de luta pela terra e, olhando para o quilombo, tudo isso se soma à questão racial”.
Segundo suas observações, na complexidade desses cenários, percebem-se estratégias de resistências semelhantes dessas mulheres.
“Um exemplo é que quando excluídas do mercado convencional, elas criam estratégias de comercialização em diferentes mercados priorizando trocas em cadeias curtas. Ainda, nos três contextos, as mulheres participantes da pesquisa demonstram uma preocupação expressiva com cuidado ambiental e essa relação com o ambiente no qual habitam se torna uma forma de resistência”.
Na Irlanda, há uma diferença no que diz respeito ao senso de comunidade, que se cria dentro dos coletivos dos quais as mulheres participam, como de feirantes ou de produtores orgânicos, mas não entre a vizinhança ou a comunidade rural, costume forte e de grande destaque no Brasil.
“No Brasil, mesmo enfrentando a desvalorização contínua e a invisibilização de seus trabalhos, elas persistem nessa batalha contínua por direitos. Essa luta é diária, mas também é coletiva, juntas essas mulheres resistem e lutam contra a pressão de um sistema que pressiona por seu desaparecimento. Em contraponto, na Irlanda, as organizações coletivas não são tão expressivas e predomina uma percepção generalizada de que as mulheres não fazem parte do universo agrário do país”, sinaliza a pesquisadora.
Guardiãs da natureza
Com seus quintais diversificados e tendo o cuidado ambiental como princípio, as mulheres camponesas e quilombolas se mostram guardiãs das sementes e da diversidade no meio rural em suas relações de afeto e cuidado, assim como nas relações econômicas. Em suas práticas cotidianas, elas defendem a natureza e a soberania alimentar.
“Agricultura é um modo de vida e a relação das mulheres com suas roças e quintais vão muito além da construção capitalista a respeito do trabalho. ‘Trabalho’, nesse contexto, é construção e manutenção de vida”, define Renata que também delineia a concepção de ‘natureza’, adotada em sua pesquisa: “por natureza, refiro-me a todas as atividades efetuadas de forma não destrutiva ao ambiente, às relações de afeto e proximidade desenvolvidas com seres humanos e não humanos e ao respeito e cuidado no processo de produção de alimentos que costumam ser produções agroecológicas”.
No Quilombo, por exemplo, a relação com a natureza se destaca ainda mais.
“Agroecologia é o nosso modo de vida”, comenta Nilce Pontes, liderança comunitária e de movimentos sociais e agricultora.
Na comunidade, a natureza não é vista como algo externo. A autora relata que “os animais entram e saem das casas livremente, a terra do quintal se assemelha à terra da cozinha de pau a pique, as frutas podem ser colhidas da janela, o pé de chuchu sobe pela lateral da casa até o fio de luz. A natureza está dentro de casa, está nas pessoas”.
“Nesses momentos, aprendi sobre a beleza do trabalho quando ele não tem como único foco o lucro, sobre a generosidade do processo de ensinar e sobre a forma de enxergar a natureza não como algo externo, mas como uma constelação de seres dos quais fazemos parte. Enfim, sobre como viver”, pontua a pesquisadora.
Dentre as falas das entrevistadas, várias despertaram em Renato um afeto especial, que fez com que aquilo que ouviu ecoasse por dias em sua cabeça. Principalmente aquelas mais simples, porém carregadas de significado.
É o exemplo da frase pronunciada por dona Almerina : “Cada um tem uma ciência”, que traz o uso da palavra ciência como sinônimo de “conhecimento” ou “forma de fazer” e sustenta uma interessante dimensão para um vocábulo que costuma ser visto como sinônimo de algo distante e institucionalizado. “Vi refletidas nessas falas centenas de páginas de livros e artigos questionando a ciência hegemônica colonial que conhecemos”, reflete.
Libertação ou prisão?
Outro trecho que merece destaque é o desabafo de Janete, que fala sobre como o leite se tornou sua libertação – referindo-se ao dinheiro conseguido com a venda do produto – mas também sua maior prisão – demonstrando a complexidade dessa atividade, assim como tantas outras no ramo da agricultura.
A autora explica, no trabalho, que o leite deve ser tirado duas vezes por dia todos os dias, sem exceção, pois não realizar a atividade um dia já pode ocasionar risco de mastite nas vacas, prejudicando os animais e a produção.
Assim, as famílias que trabalham com esse tipo de atividade, nunca podem viajar ou ficar fora de casa por mais de um dia. Em momentos extremos, como os de doença ou quando não há disponibilidade de ninguém da família para tirar o leite, eles precisam recorrer aos parentes mais distantes e aos vizinhos para não interromper a produção. Sem a ajuda da comunidade, esse tipo de operação, baseada unicamente na mão de obra familiar, não teria como se manter.
“Eu já digo que é uma prisão porque chega aquela hora você tem que estar ali, chega de noite, você tem que estar ali. A vida passa e nós não aproveitamos a nossa. A nossa vida é só trabalhar, nós nunca viajamos. Eu sei lá quando foi a última vez que eu almocei fora de casa, na casa de alguém. Toda vida em casa, nós nunca fomos almoçar num restaurante, numa churrascaria, ter um momento só nosso, nunca. Então é só na casa, é sempre aquela mesma rotina. Mas o que a gente vai fazer? É a vida da gente. E se você resolver fazer diferente e dá errado, você vai se sustentar com que?”, declara a moradora de Pinhão.
A tese premiada permite olhar para as formas de resistência das mulheres camponesas e quilombolas e demonstra que trazer luz a essas manifestações é essencial para que sejam pensadas políticas que compreendam a complexidade desse contexto rural — incluindo todas essas mulheres —, além de ser uma forma de dar voz a elas e valorizar sua capacidade organizacional e de ação, auxiliando na compreensão sobre diferentes formas de resistência e de feminismo.