A quem Machado de Assis dedicou seus primeiros poemas? Pesquisa genealógica de professor da UFPR investigou as relações sociais e familiares do escritor no Morro do Livramento, onde ele passou a infância, e paralelos com sua obra
Nomes e sobrenomes do Morro do Livramento, onde Machado de Assis nasceu no Rio de Janeiro, foram levantados nos estudos sociológicos que trazem novas informações à biografia do escritor. Foto: BN/Commons

A obra do escritor Machado de Assis, nascido em 21 de junho há 186 anos, é uma linha sólida da pesquisa literária no Brasil e no exterior. Sua vida, porém, também interessa a outras áreas de conhecimento, devido à peculiaridade das suas marcações e posicionamentos sociais — um homem negro, um dos raros alfabetizados, nascido em uma família de trabalhadores que transitava por classes sociais mais altas e, mais tarde, autor que se destaca pela evidente análise social crítica.  

Por conta disso, há anos o escritor é tema de pesquisas do professor Ricardo Costa de Oliveira, do Departamento de Sociologia da Universidade Federal do Paraná (UFPR), conhecido pelos estudos sobre a relação entre poder e genealogia no Brasil e coordenador do Núcleo de Estudos Paranaenses (NEP).  

O pesquisador investiga a Quinta do Livramento (também conhecida como Morro do Livramento), onde nasceu Machado de Assis, para entender como as relações sociais e ambiente social do autor levaram ele a escrever seus célebres trabalhos. 

As investigações do sociólogo estão compiladas em três publicações que se complementam, trazendo pesquisas sobre a família e genealogia de Machado de Assis. O trabalho, que está sendo uma das fontes da nova biografia do escritor que será lançada ainda este ano pelo escritor Cláudio Soares, revela algumas curiosidades, como a identidade das pessoas citadas nas primeiras dedicatórias de Machado em seu começo na poesia.  

Algumas dessas pessoas eram completamente desconhecidas até a pesquisa do professor Oliveira ser disponibilizada (veja na galeria de imagens). 

GALERIA | Dedicatórias em poemas revelam afetos
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Essa identificação foi feita por meio da prosopografia, uma área que estuda a biografia coletiva de um grupo de pessoas, a partir de suas relações familiares, para entender dinâmicas sociais em determinado contexto histórico. Tendo como objeto de estudo Machado de Assis, a pesquisa do sociólogo resultou na identificação de dezenas de pessoas que conviveram com o escritor e com seus familiares na Quinta do Livramento. 

Isso foi possível a partir de um trabalho minucioso, de meses, feito com o auxílio de recursos como a Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional, acervo online que reúne jornais, revistas e outras publicações periódicas digitalizadas, e o site Family Search, plataforma de pesquisa genealógica que conta com registros de batismos e casamentos feitos pela Igreja Católica. 

Para Oliveira, a posição do escritor na sociedade brasileira da época faz dos relacionamentos pessoais do jovem Machado de Assis um retrato social importante para a pesquisa sociológica.

“Como um dos maiores escritores brasileiros e mundiais, ele elabora uma verdadeira síntese de todas as relações humanas, estética, valores. Para nós sociólogos, é uma descrição social densa da sociedade brasileira do Rio de Janeiro”. 

No centro dessas relações está a Quinta do Livramento, uma grande chácara antigamente localizada no Centro do Rio de Janeiro, próximo à zona portuária. Era um local habitado por proprietários, escravizados e “agregados”, que seriam as famílias pobres que viviam no local em regime de dependência, em troca de serviços ou trabalho, como era o caso dos pais de Machado de Assis. 

Machado de Assis transitou entre classes no século XIX devido à situação familiar peculiar. Foto: BN/Commons

Na época de nascimento do escritor, em 1839, a chácara estava em meio ao centro político da Corte, ao lado do Cais do Valongo, que era um dos principais portos de entrada de africanos escravizados no Brasil, e era uma região movimentada cultural e socialmente. 

Pesquisador buscou compreensão da obra por meio da genealogia 

Integrante do conjunto de trabalhos de Oliveira sobre as relações do escritor no Morro do Livramento, o artigo “Primeiras dedicatórias de Machado de Assis” trata das primeiras dedicatórias de Machado de Assis em poemas publicados no Marmota Fluminense, um jornal de variedades, entre 1854 e 1855. As pesquisas resultaram em um capítulo do livro “Família, Política e Etnicidade” (Editora Liber Ars), lançado em conjunto com a pesquisadora Mônica Goulart, e no artigo “A Flor do Morro: As Famílias escravizadas, agregadas e senhoriais do Livramento e Valongo, Rio de Janeiro (Sec. XVIII-XIX)”. 

“Nesses trabalhos, é possível um acompanhamento da história familiar de Joaquim Machado Maria de Assis, desde as origens das bisavós escravizadas e as relações com o senhoriato [os proprietários da Quinta do livramento], de modo a entender quem era Machado de Assis e por que a obra dele é uma obra fenomenal, é uma obra enciclopédica”, afirma Oliveira. 

Com estas pesquisas, uma das respostas que Ricardo obteve é que os pais de Machado de Assis, uma portuguesa e um descendente de escravizados alforriados, tinham boas relações com os proprietários da chácara, mesmo sendo de famílias modestas. O jovem Machado, como registra sua biografia, tinha padrinhos importantes, o que, junto com o ambiente movimentado da Quinta do Livramento, pode contribuir com a educação e visão de mundo do escritor. Esta ideia está exposta pelo autor no livro Família, Política e Etnicidade: 

“Esta especificidade de ser um filho de agregados, alguém na fronteira social entre dois mundos, duas casas, duas famílias, alguém da periferia e que conhecia por dentro o mundo senhorial, o faria ‘desnaturalizar’ as relações sociais constituintes daquele mundo coletivo, o que permitiria a gênese de um pensamento social descritivo, analítico e crítico no Livramento, uma literatura a partir da base inicial e fundadora das relações sociais do Livramento. O resto seria com o próprio escritor, o ambiente progressista e modernizante, em várias esferas sociais e econômicas, do Rio de Janeiro, na virada do século XIX para o XX”. 

Vida social de Machado de Assis alinha-se com suas escolhas literárias 

Esta visão é compartilhada pelo professor Luis Goncales Bueno de Camargo, do Departamento de Literatura e Linguística da UFPR. O docente explica que, embora a abordagem dos estudos literários não relacione diretamente vida e obra, a vida social de Machado na Quinta do Livramento pode sim ter influenciado seus escritos futuros.  

“Pelo fato de ele ter vindo da base da pirâmide da sociedade e ter tido uma ascensão por meio do letramento, ele de fato pode ver a sociedade brasileira de maneira muito ampla”, afirma. “O Machado teve chance de experimentar isso ao mesmo tempo em que nessa época, ainda menino, quando morava no Morro do Livramento, ele teve condições de ir adquirindo letramento e estudando, e experimentando na pele como era estar daquele lado menos privilegiado da sociedade”. 

Os retratos que Machado de Assis fez da sociedade brasileira estão presentes principalmente nas obras da chamada “fase realista” do escritor, onde se encontram três das suas obras mais famosas: Memórias Póstumas de Brás Cubas (1881), Quincas Borba (1891) e Dom Casmurro (1899). Sem ser explicitamente direto, e muitas vezes usando a ironia e humor para fazer críticas sociais, o escritor abordou diversos temas que faziam parte de sua realidade na época, como as relações das elites e a escravidão. 

“No Dom Casmurro, os escravos não aparecem. Mas a gente sabe que o Bentinho tem uma vida tranquila. E tem um momento em que a gente fica sabendo que ele perdeu o pai, que tinha fazenda e escravaria grande. A mãe decidiu vender a propriedade, vendeu os escravos, só ficou com aqueles escravos. Ao dizer isso, o Machado não precisa fazer nenhum discurso para a gente entender que toda a arrogância do Bentinho vem dessa posição de classe dele, parecida com a do Brás Cubas”, diz Luis Camargo. 

Mas estes retratos sociais não estão presentes apenas na fase realista de Machado, como afirma o docente da UFPR. Até mesmo na fase dita romântica, que onde se encontram os romances “Ressurreição” (1872), “A Mão e a Luva” (1874), “Helena” (1876) e “Iaiá Garcia” (1878), o escritor já trazia personagens que eram atravessados por situações de classe. 

Os três últimos, por exemplo, trazem como protagonistas mulheres pobres, que embora vivam temas ligados ao Romantismo, como família e amor, elas passam por situações em que convivem com pessoas mais ricas e também com escravizados. Já no primeiro livro, “Ressureição”, que tem como personagem principal Félix, um médico rico que vive um conflito amoroso, é possível observar uma crítica ao comportamento da elite. 

Essas características das obras de Machado dentro do Romantismo são o tema de uma pesquisa atual de Luis Gonçales Bueno de Camargo. O professor considera que, embora tenha dialogado com a novela romântica, ele nunca foi um “romântico” propriamente dito. Sua fase mais romântica se encontra nos poemas, feitos em sua maioria no início de seu trabalho como escritor, como os abordados na pesquisa do professor Ricardo Costa de Oliveira. 

“O Machado nunca foi um autor que seguiu alguma moda ou alguma escola ou alguma tendência. Ele sempre tensionou. Mesmo depois quando ele vai para a fase chamada realista, ele nunca praticou o Realismo de escola”, explica.

“A fase da qual o professor Ricardo trata é uma fase ainda, digamos, amadora do Machado. É um menino, um adolescente que está escrevendo. A partir de um momento em que ele atinge uma maturidade, ele vai escrever poesia muito eventualmente. O que não significa que ele não considerasse a sua obra de poeta, porque no fim da vida ele vai reuni-la”. 

Toda a obra de Machado de Assis está disponível em domínio público em uma plataforma criada em 2008 pelo Ministério da Educação, em comemoração ao aniversário de 100 anos da morte do escritor. Mesmo 186 anos após seu nascimento, Machado continua inspirando leitores e acadêmicos, sendo tema de pesquisas em diferentes abordagens, como a do professor Ricardo Costa de Oliveira. 

“Quanto mais envelhecemos, mais a gente descobre coisas na obra do Machado. Eu já estou indo para 61 anos, leio Machado desde a adolescência, e cada vez eu descubro mais coisas. Até um novo conto que eu ainda não tinha visto, uma questão que o Machado está querendo construir literariamente de uma outra maneira. Então, quero dizer, a obra é um universo”, afirma. 

Para Luis de Camargo, o escritor continua sendo tão relevante e aclamado pela forma com que trouxe para os livros tantos temas sociais. 

“Ele tratou de questões que eram do tempo dele, que são da sociedade brasileira, que são do lugar que a gente ocupa no mundo, que é sobre o mundo como um todo, as condições, as tensões, e conseguiu encontrar uma forma literária para onde tudo isso convergiu”, diz. Os problemas do tempo do Machado não são exatamente os nossos problemas. Mas quando a gente vai ler um autor que consegue dar essa tridimensionalidade, essa complexidade ao assunto que ele está tratando, isso vai para além do que ele está dizendo com essa forma de dizer, na qual a gente também pode projetar as nossas próprias preocupações”. 

➕ Leia detalhes no artigo “Primeiras dedicatórias de Machado de Assis”, publicado na revista Machado de Assis em Linha (aberto; em português) 
➕ Confira o artigo “A Flor do Morro: as famílias escravizadas, agregadas e senhoriais do Livramento e Valongo, Rio de Janeiro (Sec. XVIII-XIX)”, publicado na Revista do Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro (aberto; em português) 

 

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