Foi ainda na infância que Olaf Mielke, de 84 anos, aprendeu a amar as borboletas. Nascido em Bonn, na Alemanha, em 12 de junho de 1941, o professor do Departamento de Zoologia da Universidade Federal do Paraná (UFPR), que acaba de receber o título de emérito da Instituição, cresceu acompanhando o pai taxidermista (profissional que preserva e monta animais mortos) na coleta de insetos e se apaixonou pelos lepidópteros (nome científico da ordem das borboletas).
“Uma vez estávamos no campo e meu pai começou a me dar borboletas para guardar em nossa coleção entomológica com alfinetes. De repente, eles acabaram e tivemos que usar os que estavam com os gafanhotos. Naquele momento, sem muita filosofia, eu, que era fã de gafanhotos, virei fã de borboletas”, diz.
A expedição com o pai foi o prenúncio de uma longa jornada de dedicação à ciência brasileira. Mielke veio para o Brasil com a família logo após a Segunda Guerra Mundial, começou a estagiar no Museu Nacional do Rio de Janeiro, estudando borboletas, e é hoje um dos principais especialistas no assunto do país.
GALERIA | O lugar de Mielke na UFPR
A vinda para Curitiba partiu de um convite do fundador do Departamento de Zoologia da Universidade Federal do Paraná (UFPR), Padre Jesus Santiago Moure (1912-2010). Mielke tinha 25 anos quando iniciou como técnico no laboratório da universidade em Curitiba, deixando um acervo com cerca de 500 lepidópteras no Museu Nacional.
Ao longo de sua carreira, o professor já identificou 318 espécies, 32 gêneros e três tribos de insetos, tendo passado por diversos estados como Rondônia, Mato Grosso e Amazonas, e diferentes países. “Na América do Sul, eu só não conheço as Guianas. Em todos os outros já fiz coletas”, diz.
Seus mais de 60 anos de dedicação à pesquisa, ensino e à difusão do conhecimento científico envolvem descobertas, mas também histórias como a do naufrágio de uma embarcação na fronteira do Brasil com a Venezuela, do qual se salvou por pouco. “Depois de dois ou três dias veio um barco buscar a gente, mas foi complicado”, lembra.
Nesta entrevista, Mielke detalha seu trabalho como pesquisador, comenta os desafios da profissão e analisa o atual panorama da entomologia no Brasil.
Como foi se naturalizar brasileiro em plena ditadura militar?
Olaf Mielke | Solicitei a minha naturalização e fui entrevistado por um delegado da Polícia Federal na praça Mauá, no Rio de Janeiro, em 1965. Ele me perguntou da minha formação e respondi que tinha formação superior. Ele então perguntou o curso que tinha feito. Respondi História Natural pela Universidade do Estado da Guanabara, atual Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Aí o delegado disse que isso não era curso superior.
Perguntei o que era curso superior e ele então mencionou medicina, direito, engenharia e talvez outros mais. Fiquei quieto, que era a melhor opção e fui naturalizado. Era um delegado meio burro mesmo.
Hoje, o senhor figura entre os principais pesquisadores de lepidópteros do Brasil. Como é coletar borboletas?
OM | Para coletar, a gente vai para um mato onde achamos que tem borboleta. Aí você leva sua rede entomológica, que tem mais ou menos 50 centímetros de diâmetro é própria para encontrar insetos.
Depois que você pega a borboleta com a rede, coloca dentro de um envelope entomológico com a pinça, sem tocar na asa para não afetar a escama. Daí, traz para o laboratório e ela é preparada daquele jeito que você deve conhecer, com as asas abertas em uma tábua de madeira específica para isso e colocada em uma gaveta.
Para guardar, usamos um alfinete entomológico, também próprio para esse trabalho, porque não oxida. Alemanha e República Tcheca têm os melhores alfinetes.
E o que mudou nessa tarefa ao longo dos seus 60 anos de carreira?
OM | Eu comecei fazendo minhas gavetas entomológicas, serrava madeira e fazia. Hoje, não é mais preciso. Aqui no Departamento, temos quase 8 mil gavetas de aço deslizante que foram mandadas fazer. Mas ainda faço minha rede entomológica com voal de tergal. Na Europa, há muitas empresas que fazem, mas é caro importar.
Em suas coletas, o senhor já percebeu alguma transformação nos animais que possa estar relacionada às mudanças climáticas?
OM | Olha, todo mundo me pergunta isso, mas sinceramente eu não sei, porque as borboletas mudam sempre. Como o tema das mudanças climáticas está em alta, muita gente direciona suas pesquisas para questões como essa, mas nem tudo tem a ver com aquecimento global e é preciso ter honestidade intelectual para não cair em respostas fáceis. Tudo deve ser estudado caso a caso.
Em suas expedições, o senhor chegou a descobrir espécies. Quantas foram e como é esse trabalho?
OM | Quando a gente vai para o mato e coleta alguma coisa, tentamos identificá-la pela literatura do momento. E se a gente não consegue, é porque provavelmente aquela é uma espécie nova. Então, descrevemos e publicamos numa revista científica.
A gente tem que ir descobrindo. Devagarinho, vai. Assim a gente já descobriu muitas. Foram 318 espécies, 32 gêneros e três tribos.
Muitas coleções de insetos são feitas por particulares. Qual a proporção entre o que é coletado por colecionadores independentes e por pesquisadores especializados?
OM | O grosso das coleções de borboletas e besouros no mundo vem de autônomos. Porque eles podem até ter pouco dinheiro, mas moram na região e coletam com frequência. Já o cientista tem horário de trabalho e limitações temporais. Enquanto uma expedição científica coleta animais por um período específico, a pessoa que mora no local está o ano inteiro coletando e vai muito mais para o mato do que o cientista profissional.
Para você ter uma ideia, a coleção do Museu Nacional — coitado, pegou fogo — tinha mais de 180 mil peças, das quais 160 mil eram provenientes de coleções entomológicas particulares. É a mesma coisa no Museu Britânico, no Museu de Paris e no Museu de Munique. Juntos, eles têm mais de 10 milhões de exemplares e por volta de 90% disso são de coleções autônomas cujos donos faleceram e deixaram seu acervo.
Na nossa universidade, estamos com 350 mil exemplares de insetos. Desses, uns 150 mil mais ou menos são provenientes de coleções de autônomos. Eles gastam dinheiro, fazem a coleção, depois vendem ou doam. A maioria das nossas foram compradas pelo governo federal.
E quanto custam?
OM | Chegamos a comprar uma coleção grande por 2 dólares cada bicho. Quanto é isso hoje? Dá R$ 10, R$ 12. Para uma coleção feita durante 130, 140 anos, isso é muito barato. Mas frequentemente há unidades vendidas em feiras por 100 dólares ou mais, a depender da raridade, beleza, o encanto e o gosto e disposição do autônomo em querer pagar, né?
Muito interessante isso. Eu já vi uma borboleta sendo vendida em Paris por mil euros porque era metade macho, metade fêmea. Isso acontece uma vez em um milhão de bichos que nascem por aí. Alguém teve a sorte de pegar.
Eu sei que muita gente tem raiva de autônomos, porque muitos não dão acesso aos seus acervos. Mas também tem muito cientista que aparece para roubar bicho. Então, sabendo disso, eles não dão acesso mesmo. Tem essas coisas de passar um para trás, sabe? Histórias que nem dá para contar, mas correm. Eu nunca tive problema, mas sei que é difícil.
Existe uma crítica de que esse tipo de coleta e acervo pode extinguir animais, comprometendo a biodiversidade. Qual a sua posição quanto a isso?
OM | Falando em invertebrados, isso é absolutamente infundado. Sabe quantos insetos os passarinhos comem por mês? Na Alemanha, filmaram um ninho de passarinhos com dois filhotes. Em 30 dias, cada filhote comeu duas mil larvas de borboleta. A gente nunca vai coletar tudo isso nesse curto espaço de tempo. Então, é ridículo pensar que afeta a biodiversidade.
O que afeta a biodiversidade invertebrada é a devastação da vegetação natural, a destruição do hábitat. Nos Estados Unidos, por exemplo, os carros matam 22 milhões de borboletas em uma semana.
E quanto tempo pode durar uma coleção de borboletas?
OM | Olha, muito tempo. Eu já examinei bichos em perfeito estado coletados em 1690. O Museu Nacional tinha coleção de 1920. Isso não estraga nunca.
Como é que não estragam?
OM | Bom, nós, seres humanos, temos um esqueleto interno, o endoesqueleto, e o esqueleto é durável. No inseto, essa carapaça dura é externa, eles têm exoesqueleto. Então, a parte de dentro seca e a parte externa se mantém forte.
É importante apenas utilizar técnicas para cuidar desses animais: manter a sala fechada para prevenir a entrada de pragas; evitar luz para proteger a cor; usar os materiais adequados para evitar oxidação; cuidar da instalação elétrica e infraestrutura para prevenir incêndios e por aí vai.
Nossa coleção, por exemplo, está dentro de uma sala de concreto e os armários são todos de ferro. Então, há um risco menor de danos. E tem que ter manutenção. Tem sido assim que a coleção de insetos da UFPR vem chegando aos 65 anos.
Hoje, a coleção entomológica da UFPR é aberta apenas a cientistas. Como fazer com que esse conhecimento chegue à comunidade?
OM | A entrada do nosso acervo é controlada para podermos preservá-lo e entendemos também que disponibilizar uma coleção de 350 mil espécies para visitação não é interessante para a comunidade do ponto de vista da educação científica. Seria cansativo e pouco eficiente olhar 350 mil animais.
Mas poderiam ser organizadas exposições com exemplares específicos de forma estratégica e didática, com textos curtos e interessantes, para que as pessoas soubessem a importância das borboletas. Elas são símbolos de ressurreição, fundamentais na polinização, além da beleza que a gente conhece. O povo tem que saber das coisas que existem no mundo.
A tecnologia também é um caminho a se pensar. Tem algo sendo feito para digitalizar esse acervo?
OM | Isso é difícil hoje porque temos apenas três pesquisadores aqui e um acervo de 350 mil animais. Nossa rotina envolve dar aulas, responder e-mails, dar entrevistas, escrever artigos e aí faltam pessoas e sobretudo dinheiro para informatizar esse material.
Mas essa dificuldade é no Brasil inteiro. Temos por volta de 10 ou 12 pesquisadores lepidópteros no Brasil para uma fauna de 15 a 20 mil espécies. É muito pouco. Precisamos de mais pesquisadores, com apoio de tecnologistas e mais dinheiro. Muitas coisas básicas a gente acaba pagando do próprio bolso porque a Universidade não tem recursos e há muita burocracia para conseguir coisas pequenas até. Mas ainda bem que dá pra fazer de alguma forma. A gente se diverte.
Durante a última década, vivemos um período de desmonte das universidades públicas com cortes de recursos e ataques à pesquisa. Como vê isso na entomologia e como evitar que esses ataques ameacem o conhecimento científico que o senhor vem ajudando a construir?
OM | A minha impressão é que o sucesso das universidades ainda é muito medido pelo número de estudantes da graduação, nunca pela pesquisa, embora o texto do nosso estatuto preze por ensino pesquisa e extensão. Isso que é o triste.
E o problema da entomologia e da ciência básica é que hoje elas não dão muito dinheiro, né? Estudar melhoria da soja, por exemplo, dá dinheiro, e recebe mais investimento do que nós. Só que a entomologia é fundamental para entender problemas da vida, pensar a dinâmica dos ecossistemas, a gente tem muitos insetos que oferecem princípio-ativo para tratar doenças e ainda não sabemos, então, é fundamental estudar mais.
Mas aí entramos numa questão que é a falta de dinheiro: pessoas qualificadas para trabalhar nós temos, o difícil é pagar essas pessoas para estarem com a gente. Nosso curso de pós-graduação consegue formar em torno de 25 doutores por ano, mas depois não têm emprego para eles. Nem metade desses egressos é aproveitada.
Acredito que a gente precise dar apoio a esses pesquisadores durante a pós-graduação, mas também pensar “a pós-pós graduação”, acompanhando a inserção dessas pessoas no mercado. Mas não sei, isso vai depender dos nossos superiores que estão lá em cima, né? Ainda venho trabalhar todos os dias, mas ando meio às avessas com essas situações. Apesar disso, eu me divirto. Como a gente gosta de estudar borboletas, a gente tem respaldo dos colegas e é isso que importa.